domingo, 9 de abril de 2023

Ai de ti, Tiguera: uma semana santa diferente

 Ai de ti Tiguera: Uma semana santa diferente

Faustino Teixeira

IHU / UFJF

 

 

Essa foi uma semana santa muito estranha em minha vida. Não pude curtir com alegria a passagem de sexta feira santa para o domingo de páscoa, que é hoje, 09 de abril de 2023. Lembro-me quando jovem, ao ler o livro de Roger Garaudy, Do anátema ao diálogo (1966), estranhei o fato dele dizer que a sexta feira santa do marxista não vem amenizada por nenhum domingo de páscoa. Ou seja, como ele diz: “Vivemos, sem dúvida, cristãos e marxistas, a exigência do mesmo infinito, mas o vosso é presença, e o nosso é ausência”.

 

Vendo as fotos de amigos cristãos celebrando a data, com mesas enfeitadas e celebrações bonitas, também textos de amigos exaltando a força da ressurreição; vendo também fotos de festa familiar, onde o ritmo era de alegria, vivenciei uma experiência diversa, que foi de penumbra e dor, preocupação intensa com um futuro que se aproxima, que vem marcado pelo desgaste da compaixão.

 

E aqui digo a compaixão pelas espécies companheiras, no meu caso particular, pelas irmãs-árvores. Falava ontem com um filho, que só quem vivenciou a virada animal e vegetal é capaz de compreender a minha dor. E vejo com cada vez mais clareza que passo por essa experiência-cume. Muitos não e entendem ou aceitam, incapazes de captar o alcance do que essa virada significa na minha vida. 

 

Quando leio uma passagem da reflexão de Ailton Krenak, num livro de entrevistas com ele, sinto a mesma sensação descrita: A natureza “existe em cada um dos pequenos, no ar que eu respiro, naquelas plantinhas que estão ali no quintal, na chuva que cai, nos raios de sol que atravessam todos esses concretos e cimentos que passam por este buraquinho na janela aqui”. Essa foi uma reflexão de Krenak quando estava em São Paulo. E ele mostrou com clareza, que carrega sempre consigo a natureza. Ela faz parte dele. Qualquer violência que se cometa contra ela, ele vive nele a violência, com intensidade igual. Foi o que ele sentiu com muita dor, ao ver seu rio em Minas Gerais contaminado com os descasos de uma empresa mineradora.

 

Fui educado na tradição cristã, e me considero ainda vivamente cristão, embora conectado com vigor num ritmo dialogal com todas as outras tradições religiosas. Em geral, quando estamos vinculados a uma determinada tradição religiosa somos tomados pela cadência do exclusivismo. Como diz Freud, “quando amo sou exclusivista”. No meu caso de relação com o cristianismo, o exclusivismo não se dá... e cada vez menos.

 

Voltando à minha dor dessa páscoa, explico a principal razão. Ela se dá no contexto em que aqui em meu condomínio, onde habito desde 1992, mas que habita o meu imaginário muito tempo antes, desde que meu pai comprou um terreno aqui, quando ainda era menino. Vinha com minha mãe e meus irmãos de ônibus apreciar essa beleza única. No cenário estavam majestosos eucaliptos-limão (Eucalyptus citriodora), com seu perfume único, que nunca saiu de minha memória. E desde o dia 04 de abril, que foi o início da semana santa, esses eucaliptos começaram a ser devastados impiedosamente, com os mais diversos argumentos, fundados na percepção de alguns moradores.

 

No segundo dia dos cortes, ao visitar o local, pude observar aquele aroma que encantava e embalava minha juventude agora irradiado de fora ainda mais viva por todo canto. Ao chão, ramos inteiros de folhas da árvore, com suas delicadas flores brancas. E estavam ali, jogadas sem piedade nas pedras da rua, sobre o óleo derramado do caminhão com sua grua, contratado pelo condomínio, com autorização da prefeitura, para exercer o serviço. Os moradores que decidiram em assembleia estavam tranquilos em suas casas, preparando-se para o grande evento pascal. Eu, ao contrário, como alguns outros, estávamos tomados pela dor de uma semana “santa” que se anunciava desta vez sangrenta e impiedosa.

 

Os grandes especialistas no campo da biologia justificavam o corte com palavras de indiferença. Para eles, os eucaliptos são árvores invasoras, estranhas ao bioma da Mata Atlântica. Seu corte vinha justificado sem qualquer drama de consciência. Nem sequer consideravam que aquelas majestosas e imponentes árvores estavam aqui no condomínio há mais de oitenta anos, encantando o imaginário das crianças, com seu perfume e beleza. 

 

Veio-me então na memória uma passagem do evangelho que admiro desde jovem: “O que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é...”. Foi assim que compreendi as razões do corte e as motivações evangélicas para a minha iracúndia sagrada: Deus escolheu o que é vil e desprezado e o glorifica e bem-diz.

 

Eu aqui, neste domingo de páscoa presto a minha homenagem a esta árvore desprezada por tantos, e os grandes especialistas. Esta árvore estrangeira, de origem australiana, que vem recusada como hostil por nós brasileiros. Uma árvore que se adaptou tão bem entre nós, amplamente cultivada para o reflorestamento e utilizada “na arborização de caminhos e estradas em áreas rurais”, e “particularmente apreciada pelo aroma agradável que libera”.

 

A memória desse aroma ninguém poderá roubar de nós. E isto me faz lembrar Proust, em seu livro Em busca do tempo perdido(No caminho de Swann). Aquele sabor da Madeleine, aquele sabor que subsiste ao tempo, para além “da morte das criaturas e a destruição da coisas”. O aroma do eucalipto e o sabor da Madeleine são, sem dúvida “frágeis”, mas “vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis”, e tem o dom de durar permanentemente, “ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.

 

Essa foi a minha semana este ano, depois de minha virada animal e vegetal. Fico feliz e tranquilo por fazer a minha parte na luta em favor da preservação da natureza, por toda parte e com o mesmo e sagrado sentimento. A minha dor é semelhante aos ribeirinhos do rio doce, com toda a devastação produzida pelo afã necrófilo do minério, ou os ribeirinho que foram engolidos por Belo Monte. E me irmano com a dor de Eliane Brum, que continua no Sumaúma, a defender essa causa nobre e denunciar sempre “a irrupção da violência do acontecimento Belo Monte”, que “corroeu e corrói a saúde mental da comunidade cujos laços foram rompidos”. 

 

Concluo com a oração pela fúria, de Denise Fraga:

 

Oração pela fúria

 

Santo Deus

Não aplaque a minha fúria

Proteja a minha indignação dos dias iguais

Dos dias banais

Renove a minha perplexidade diante do absurdo

Deus, meu pai

Mantenha aceso o fogo que incendeia a minha alma

Para que eu possa forjar o magma da minha fúria

Em assertividade e paixão

Canalize o jorro da minha indignação furiosa

Em gotas de lucidez implacável

Para a minha luta diária

A caminho da verdade e da liberdade

 

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