sexta-feira, 14 de abril de 2023

A insustentável leveza do ser: reflexões sobre um filme e um livro

 A insustentável leveza do ser: reflexões sobre um filme e um livro

 

Faustino Teixeira

IHU / UFJF

 

Na quarta feira passada, no IHU, comentei o filme de Philip Kaufman: A insustentável leveza do ser, baseado no livro de mesmo nome, do grande escritor Milan Kundera. O filme é de 1988 e o romance de 1984. Tinha visto o filme e lido o livro há tanto tempo e essa retomada foi esplendorosa para mim. Fiquei comovido como se tivesse fazendo pela primeira vez essa linda experiência estética. Vale a pena.

 

Há tanta coisa bonita no filme, e já começo falando da precisa direção de Kaufmann, que também fez o roteiro junto com Jean-Claude Carrière, conhecido por suas preciosas colaborações com o diretor Luis Buñuel, em particular o maravilhoso “Discreto charme da burguesia”. Na direção de fotografia, o grande parceiro de Ingmar Bergman, Sven Nykvist. No elenco, só figuras de peso, como Juliete Binoche, Daniel Day-Lewis (ganhador do Oscar por sua brilhante interpretação de Lincoln, em 2012 – além de dois outros), e Lena Olin, outra querida de Bergman, que trabalho no maravilhoso “Fanny e Alexander”.

 

Os protagonistas são Tomas (interpretado por Daniel Day-Lewis), Tereza (interpretada por Juliette Binoche, então com 24 anos) e Sabina (interpretada por Lena Olin). Há também o professor suiço Franz (interpretado por Derek de Lint). Não posso também deixar de mencionar a bela trilha sonora do filme.

 

Não vou-me deter apenas no filme, mas também no livro, que traz passagens maravilhosas, que não poderia deixar de mencionar aqui nessa minha reflexão.

 

O filme nos remete a um dos clássicos triângulos amorosos do cinema mundial. Uma história que nos encanta com mudanças diversificadas, passagens de extraordinária criatividade e maravilhamento.

 

Tudo começa em Praga, onde viviam os personagens principais, Tomas e Sabina. Ali perto, cerca de duzentos quilômetros, morava Tereza. Tomas era um reconhecido médico cirurgião. Sabina era uma pintora e Tereza trabalhava num bar em sua cidadezinha.

 

Por uma coincidência da vida, Tomas entra em contato com Tereza, por ocasião de sua presença num SPA, onde foi operar um paciente. Ela estava lá. Dali nasceu um amor bonito que percorre todo o filme. São essas situações de coincidência que nos lembra Kundera em seu livro:

 

“Nossa vida cotidiana é bombardeada por acasos, mais exatamente por encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos, o que chamamos coincidências. Existe coincidência quando dois acontecimentos inesperados se dão ao mesmo tempo, quando eles se encontram”.

 

Assim ocorreu no encontro de Tomas com Tereza, e naquele exato encontro, soava uma música de Beethoven, o que fez aguçar ainda mais o senso de beleza, que jamais abandonou a memória afetiva desses dois personagens. Em seu clássico livro, Sagrado e Profano, Mircea Eliade descreve o significado profundo de um lugar e de um tempo que passam a ganhar um peso diferente por ali ter ocorrido algo que transformou a pessoa.

 

O encontro de Tomás com Tereza foi assim retumbante: nascia um amor bonito, mas marcado por passos delicados e difíceis como a aura do ciúme de Tereza. Tomás era alguém livre e leve. Era apaixonado pelas mulheres e tinha uma vida bem erotizada. Não podia prescindir das amantes para a sua realização pessoal. Uma delas, a amante mais permanente, era Sabina, uma pintora singular, cuja vida também era marcada pela leveza. Ela entrou no circuito de Tomas, aceitando sem questionamentos as regras que ele tinha colocado para si na vida amorosa. Ele, por exemplo, tinha o hábito de nunca dormir com suas amantes. E igualmente a prática de espaçar os encontros de forma a não deixar a relação ser tomada por uma rotina empobrecedora.

 

Porém, a entrada de Tereza em sua vida produz uma mudança. Ela vai ser a primeira amante que vai dormir na sua cama, e que acorda ao seu lado com as mãos dadas. Tinha alegria em acordar com Tomas segurando forte as suas mãos. Ele acabou se adaptando a tal situação. Ela, entretanto, sofria com a vida mulherenga de Tomas, e era tomada pelo ciúme. O ciúme a entristecia e consumia. Sentia-se ameaçada por todas as mulheres. Por sua vez, Tomas não conseguia libertar-se desse costume, mesmo depois quando casou-se com Tereza. Não tinha como libertar-se de seu apetite pelas outras mulheres, entre as quais se destacava Sabina. Tinha igualmente amantes mais provisórias. Para ele havia uma clara distinção entre o amor e o ato erótico. Eram coisas bem distintas. Nada demais para ele manter seus encontros furtivos e festivos com as mulheres e preservar o amor particular com Tereza.

 

Quando Tomás se casou com Tereza, ele a presenteou com uma cachorra encantadora, Karenin.  O nome adveio pelo fato de que por ocasião do primeiro encontro entre os dois, Tereza estava carregando um livro de Tolstoi. A cachorra vai ser uma personagem singular no livro e no filme, uma companheira fiel, sempre ao lado de Tereza com um amor marcado pelo dom e gratuidade. As cenas do filme em que Karenin aparece, como no caso das brincadeiras do casal com ela, são mesmo muito especiais.

 

Tereza e Sabina expressavam dois polos distintos na vida de Tomas, dois polos inconciliáveis mas belos, como diz Kundera. O amor para Tomás não podia significar aprisionamento, mas tinha que ter o toque da leveza. Ele rechaçava qualquer possibilidade de propriedade amorosa. Para ele, uma relação saudável tinha que ser regada pela liberdade, onde os parceiros estariam libertos de direitos exclusivos um para o outro. Mas Tereza resistia a isso.

 

Com a ocupação de Tchecoslováquia pelos russos, em 1968, abalou-se a chamada “Primavera de Praga”, quando havia um clima de maior liberdade no país, mesmo que marcado pelo comunismo. As restrições aos cidadãos vinham amenizadas com a visão mais liberal de Alexander Dubcek. Tereza, já num emprego de fotógrafa, foi tomada pela paixão de fotografar aquela violenta invasão russa. Conseguiu o trabalho com a ajuda de Sabina, por intermédio de Tomas.

 

De forma impetuosa e emotiva, arriscou sua vida fotografando as cenas mais duras da invasão e toda a violência que a acompanhou. Tomas estava com ela, ativo, nas manifestações de protesto. Tinha inclusive escrito um texto bem irônico sobre os russos, fazendo uma comparação com a história de Édipo. Chega a indicar a importância de se furarem os olhos dos russos, incapazes segundo ele, de ver com clareza a situação do socialismo real.

 

Aquela inebriante “festa de ódio” provocada pelos russos desencantou, definitivamente, os três personagens do filme. Não havia como perceber qualquer traço de beleza naquele horror que se instalou em Praga. Encontraram como saída a fuga para a Suíça. Tomas e Tereza foram para Zurique e Sabina para Genebra. 

 

Sabina tinha conseguido bons recursos com suas pinturas e podia recomeçar a vida na Suíça com mais tranquilidade. Ela tinha frequentado a Escola de Belas Artes em Praga, mas não se identificava com o realismo socialista. Dizia que naquilo que consideravam arte, Picasso não conseguia lugar. Suas memórias de infância, com respeito ao socialismo, não eram também felizes. Rejeitava com vigor o sentido de ordem, de disciplina e controle impostos pelo comunismo. Não conseguia encontrar lugar nas  arrumadinhas festas do Primeiro de Maio. Naqueles desfiles, marcados pela linha reta, ela se embaraçava sempre. Não conseguia manter a cadência comunista: ela vinha sempre atrás, desprevenida, sendo atropelada pelas outras garotas. Tinha horror aos desfiles e também detestava aqueles hinos sem graça, assim como as palavras de ordem e a estética sem estilo de suas colegas de turma.

 

Ela, Sabina, vai para a Suíça levando essa herança crítica. Em dado momento do filme, numa reunião de compatriotas, ela se rebela contra um manifestante, e o provoca dizendo ser muito fácil protestar de longe. Ela então o convoca para ir ao encontro do confronto: “Pois bem, voltem e lutem!”. Ela sai aborrecida da reunião, e atrás dela veio o professor Franz. Ele era alguém desiludido com a harmonia e passividade reinantes na Suíça. Em seu coração pulsava a vontade de movimento, talvez de fuga daquela realidade monótona em que vivia, também em seu casamento. Sua intenção era romper aquela sua vida irreal ao lado dos livros: “Queria sair de sua vida como se sai de casa para ir à rua”. A presença de Sabina era para ele a possibilidade de romper com esse apego que o aborrecia. Queria se desvencilhar de tudo isso. 

 

Há uma cena do filme em que Sabina e Franz estão num tradicional restaurante em Genebra quando pedem ao maître para cancelar aquela música ambiente, que era na verdade um “barulho” insuportável para os dois. Ele se recusa a atende-la, argumentando que a música era do agrado dos clientes. Para Sabina aquilo ali para ela remetia ao “barulho” do universo musical comunista. Estavam ali os dois jantando antes de irem para o quarto fazer amor. Não havia como poder conversar com tranquilidade naquele ambiente artificial e fútil. Sabina reagia, revelando sua dificuldade em comer com alegria ouvindo merda. Todo o ambiente a incomodava, como as flores de plástico que adornavam as mesas, e flores que estavam inseridas em vasos com água. Falava com vigor para Franz do profundo enfeiamento do mundo.

 

Também no amor Sabina buscava respirar um ar de leveza, que a fazia aproximar-se de Tomás. Considerava-se uma mulher livre e autônoma. Sua relação com Franz não podia durar muito. Ele tinha por hábito só fazer amor com ela durante suas viagens, evitando transar na cidade onde estava casado. Isso também acabou incomodando Sabina. No início, ela se comprazia com uma “infidelidade inocente”, mas depois muda de opinião. Estava cansada de ver sua relação com ele limitar-se a momentos vividos no exterior. E além disso, ele não gostava de seu chapéu-coco, que foi uma herança de seu pai; um chapéu que para Tomás, ao contrário, revelava toda a sensualidade de Sabrina e era um convite certo para uma aproximação mais íntima dos dois. Quando Franz decide abandonar a mulher para ficar com Sabina, ela, espantada, decide abandoná-lo, já prevendo um futuro estranho, de aprisionamento.

 

Assim como Sabina, Tereza e Tomas buscavam encaixar-se na complexa vida da Suíça. Ele conseguiu emprego num hospital e ela tentava encontrar alguma ocupação naquela cidade estranha. Já no ato de chegada à cidade, depararam-se com um cenário que revelava o entrincheiramento dos suíços em sua arrogância peculiar. Quando o velho carro de Tomás e Teresa deparou-se com um luxuoso carro, que ficou alinhado com o seu, no momento em que o sinal fechou. Puderam então sentir o que é a diferença de classe.

 

Na Suíça, Tereza tentou retomar sua atuação como fotógrafa. Levou consigo algumas fotos que tinha tirado em Praga durante a ocupação russa. Mostrou as fotos para o redator chefe de uma revista da cidade, de grande tiragem, mas ele não deu maior importância ao que lhe foi apresentado. Dizia a ela que o momento tinha passado, e as fotos chegaram atrasadas. Ela reage com indignação, em seu alemão precário. Sublinhou que nada tinha acabado em Praga. Os estudantes estavam em greve, os conselhos operários estavam se firmando nas fábricas, e o país ainda fervilhava. Nada disso, porém, sensibilizou o agente, que, por intermédio de uma jornalista que trabalhava ali, mais interessada na praia de nudistas na França, aconselhou Sabina a fotografar cactus e rosas, ou então nudes. 

 

Ao examinar as fotos de Tereza, a jornalista reconheceu que ela, Tereza, tinha “um senso fantástico do corpo feminino”, e ali poderia estar um canal para a sua afirmação como fotógrafa, quem sabe em trabalhos envolvendo moda. A jornalista se ofereceu para apresenta-la ao jornalista responsável pela seção de flores e jardins. Mas não era isso que Tereza queria. Sentia-se bem desconfortável ali. Em vez do trabalho oferecido, preferia mesmo ficar em casa, sob os cuidados de Tomás. Isso para o escândalo da jornalista, que não conseguia entender como uma pessoa pudesse querer “abrir mão da fotografia depois de ter feito coisas tão bonitas”. O que Teresa sentia era um grande desânimo, diante da ideia de ter que recomeçar do zero, lutar de novo por um emprego, depois de tudo o que tinha feito em Praga.

 

Além das questões econômicas, Tereza também sofria com as traições de Tomas, que continuaram ocorrendo na Suíça. Com medo da solidão, ainda mais num país estranho, ela acaba decidindo abandoná-lo, e deixa uma carta onde escreve:

 

“Tomas, eu sei que deveria ajuda-lo, mas não posso. Ao invés de ser o seu apoio, sou o seu peso. A vida é muito pesada para mim... e é tão leve para você. Não consigo suportar essa leveza, essa liberdade. Não sou forte o suficiente. Em Praga, eu precisava de você apenas para o amor. Na Suíça... eu  dependia de você para tudo. O que aconteceria se você me abandonasse? Estou fraca. Estou voltando ao país dos fracos. Adeus.”

 

A frágil e arriscada dependência de Tereza a Tomas numa cidade estrangeira, provocavam nela um temor justificado. Temia por um abandono futuro. Ela dizia que ali dependia dele para tudo: “O que seria dela ali se ele a abandonasse? Devia passar toda a vida com medo de perdê-lo?”. Por isso decidiu, apesar dos riscos, voltar para Praga sozinha, acompanhada apenas pela cachorra Karenin. Ela diz na carta que estava “voltando ao país dos fracos”. Como mostrou Kundera,

 

“aquela fraqueza, que então lhe parecia insuportável, repulsiva, e que a fizera deixar seu país, de repente a atraía. Compreendia que fazia parte dos fracos, do partido dos fracos, do país dos fracos e que devia ser fiel a eles, justamente porque eram fracos e procuravam recobrar o fôlego no meio de frases”.

 

Tomas ficou desolado ao ler a mensagem de Tereza. Depois de cinco dias, ele abandona o seu trabalho e vai em direção a ela, também com todos os riscos envolvido nessa sua posição. Tanto ela, Teresa, como ele, tiveram os seus passaportes retidos ao chegarem em Praga. 

 

Ele foi acolhido com muito carinho pela cachorra Karenin, quando entrou no apartamento de Tereza, e isso facilitou o reencontro dos dois. Ela conseguiu emprego de garçonete, e era objeto de ataques gratuitos dos que frequentavam o bar onde conseguiu trabalho. 

 

Por motivos de ordem política, Tomas acabou sendo despedido dos empregos em Praga, isso em razão de um artigo que escrevera tempos atrás criticando os russos. Eles queriam que ele se retratasse para manter seu emprego. Ele preferiu, porém, preservar sua dignidade e evitar um tal constrangimento. Ele se espantava com o fato da covardia firmar-se como a única regra de conduta e a condição para manter-se empregado em Praga. Teve então que se virar com outras ocupações, como o contrato numa empresa dedicada à limpeza das vidraças na cidade, passando por situações delicadas com as madames que o contratavam os seus serviços. O certo é que a vida ficou bem apertada para o casal.

 

O ardor sexual de Tomas não foi abandonado em Praga, e Tereza logo percebeu isso. Ela tinha verdadeiro horror de sentir o cheio do sexo de mulheres em seu cabelo. Para ela era algo insuportável e pesado conviver com a naturalidade com que Tomas conduzia sua infidelidade. Em certa ocasião, ela reage com firmeza:

 

“Você me explicou milhares de vezes, milhares de vezes. Há o amor e há o sexo. Sexo é entretenimento, como futebol. Eu sei que é leve. Gostaria de acreditar em você. Mas como alguém pode fazer amor sem estar apaixonado? Eu simplesmente não sei. Deixe-me tentar. Você me rejeitaria se eu tentasse? Eu gostaria de ser como você. Insensível. Forte, forte...”

 

E Tereza de fato tentou uma experiência nova nesse campo. Acabou deixando-se envolver por um agente de polícia que se apresentou para ela como engenheiro. Ela cai na armadilha. Acabou cedendo à sua “generosidade” e foi ao seu encontro num apartamento muito esquisito, que não combinava em nada com um lugar de habitação de um engenheiro. No filme ela vive a experiência com resistência. No livro, a dinâmica do encontro reveste-se de uma fisionomia diferente. Como sublinha Kundera:

 

“Ele desabotoou um botão de sua blusa, esperando que ela mesma desabotoasse os outros. Ela não correspondeu à sua expectativa. Tinha expulso seu corpo para longe de si, mas não queria ter nenhuma responsabilidade por ele. Não se despia, mas não se defendia também. Sua alma queria mostrar assim que, apesar de desaprovar o que estava para acontecer, prefere permanecer neutra. Ficou quase inerte enquanto ele a despia. Quando a beijou, seus lábios não responderam. Depois, ela percebeu subitamente que seu sexo estava úmido e ficou consternada. A excitação que sentia era ainda maior porque estava excitada a contragosto”.

 

Depois que tudo ocorreu, foi tomada por grande perplexidade. O que queria era “esvaziar as entranhas”. Tudo assim tão estranho, quando se deixa tomar pelo desejo “de ser corpo, nada mais que corpo”. Tereza vem assomada por uma “tristeza e uma solidão infinitas”. Era uma tentativa, tão frágil, de querer se colocar no lugar de Tomas e viver algo semelhante ao que era o seu cotidiano. 

 

Ela, na verdade, não conseguia encarnar essa “leveza” ou rebeldia face aos padrões tradicionais. Tinha exercido um papel bem preciso “num roteiro previamente ensaiado”, orquestrado pelas forças de espionagem presentes em Praga durante a ocupação. O quarto onde os dois transaram era, em verdade, um “apartamento confiscado a um intelectual pobre”.  Kundera se interroga: “O episódio do engenheiro teria lhe ensinado que as aventuras amorosas não têm nada a ver com o amor? Que são leves e imponderáveis? Estaria mais calma’”. Não foi o que ocorreu, mas foi uma experiência que ela se permitiu.

 

Tereza chegou também a viver com Sabina uma experiência alternativa, quando as duas se deixaram fotografar em sua nudez. Foi uma aventura divertida, possibilitada e regada por bebida, e onde o chapéu coco fazia parte central no cenário. Tinha razão aquela fotógrafa da Suiça... Tereza curtiu a experiência de fotografar Sabina nua e também deixar-se fotografar por ela. As duas mulheres foram transfiguradas por uma frase mágica: “Tire a roupa!”. A experiência também serviu para Tereza conhecer um pouco mais o mundo de Sabina, que tanto contagiou Tomas.

 

Com o tempo passado em Praga, e os desgostos que foram se acumulando, Tomas e Teresa decidem voltar para o campo. A opção era vista como uma fuga necessária, uma saída importante para os dois. Venderam todos os seus bens e foram para o campo, trabalhar numa cooperativa agrícola, onde trabalhava um antigo cliente de Tomas, que criava um porco muito especial, de nome Mefisto, e tinha mulher e quatro filhos que o ajudavam no trabalho. Karenin e Mefisto logo fizeram amizade. 

 

Como mostrou Kundera, “viver no interior era a única possibilidade de evasão que lhes restava, pois no interior sempre faltavam braços mas não faltavam casas”. Tereza encontrou ali uma felicidade única, e ali se dava a possibilidade da distância fundamental com respeito às “mulheres desconhecidas que deixavam cheiro de sexo nos cabelos de Tomas”. 

 

Ali no campo, Tomas e Tereza podiam encontrar o espaço para uma vida serena, a dois, na presença maravilhosa de Karenin e de toda a natureza envolvente. Era o “mundo harmonioso” que até então faltara. E a beleza nisso tudo, é que os dois tinham feito a opção espontaneamente, e com alegria. O amor de Tereza por Karenim era encantador. Ali ela encontrava a verdadeira gratuidade.

 

Tereza e Tomas, que tinham habitado um mundo onde o que valia era a regra de Descartes, do homem como “mestre e dominador da natureza”, descobrem agora um horizonte bem mais bonito, singelo e simples, sem a dinâmica da exclusão. E Kundera reflete sobre isso:

 

“No começo do Gênese, está escrito que Deus criou o homem para que ele reine sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus quisesse realmente que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou sobre a vaca e o cavalo”. 

 

Tudo favorecia a criar um roteiro que se parecia mais natural, onde o ser humano deixava de gozar a condição de estar no topo da hierarquia. Numa das mais linda cenas do livro, Tereza está acariciando a cabeça de Karenin, que descansa em paz em seu joelho. E ela, pensando na “falência da humanidade”.  E aí faz uma reflexão:

 

“A verdadeira bondade do homem só pode manifestar com toda a pureza e com toda a liberdade em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. E foi aí que se produziu a falência fundamental do homem, tão fundamental que dela decorrem todas as outras”.

 

Foi quando então uma novilha aproxima-se de Tereza e olha demoradamente para ela, com seus belos olhos castanhos, como se estivesse querendo dizer algo. Tereza ali no campo tinha como trabalho cuidar do rebanho de novilhas, enquanto Tomas estava responsável pela direção do caminhão da cooperativa: levava os agricultores ao campo ou transportava o material necessário para o trabalho.

 

É nesse contexto que Kundera insere uma reflexão de Tomas sobre Nietzsche, de beleza única, quando o pensador está saindo de um hotel de Turim, e se depara com uma chocante cena de um cavalo sendo chicoteado por um cocheiro. Ele então se aproxima do animal e o acaricia com ternura, derramando-se em lágrimas. Como mostra Kundera, na voz de Tomas:

 

“Isso aconteceu em 1889 e Nietzsche já estava, também ele, distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes (...). É esse Nietzsche que amo, da mesma maneira que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente”.

 

Tomas e Tereza tinham descoberto que Karenin estava com câncer e seus dias estavam contados. Foram tempos de sofrimento para os dois, acompanhando de perto a paixão de Karenin, até que não mais suportanto presenciar tal dor, resolvem apressar a morte da cachorra, ela que tanto apreciava a vida. E novamente uma bela reflexão de Kundera:

 

“O cão jamais fora expulso do Paraíso. Karenin ignora tudo sobre a dualidade entre o corpo e a alma e não sabe o que é o nojo. É por isso que Tereza sente tão bem e tão tranquila a seu lado (...). Do caos confuso dessas ideias, germina na mente de Tereza uma ideia blasfematória de que não se consegue desvencilhar: o amor que a liga a Karenin é melhor que o amor que existe entre ela e Tomas. Melhor, não maior. Tereza não quer acusar ninguém, nem a ela, nem a Tomas, não quer afirmar que poderiam se amar mais. Parece-lhe apenas que o casal humano é criado de tal forma que o amor entre o homem e a mulher é a priori de uma natureza inferior à do que pode existir (pelo menos na melhor de suas versões) entre o homem e o cachorro”.

 

No caso do amor que liga o ser humano ao animal é um amor desinteressado. No amor que une Karenin a Tereza não há interesse, só gratuidade. Tereza não quer nada da cachorra, e nem mesmo exige dela o amor. Na verdade,

 

“Nunca precisou fazer as perguntas que atormentam os casais humanos: será que ela me ama? Será que gosta mais de mim do que eu dela? Terá gostado de alguém mais do que de mim? Todas essas perguntas que interrogam o amor, avaliam-no, investigam-no, examinam-no, talvez o destruam no instante em que nasce. Se somos incapazes de amar, talvez seja porque desejamos ser amados, quer dizer, queremos alguma coisa do outro (o amor), em vez de chegar a ele sem reivindicações, desejando apenas sua simples presença”.

 

São reflexões que afloram no livro, e também no filme. De fato, Tereza simplesmente acolheu com gratuidade Karenin, sem exigir nada em troca. Não houve intenção alguma em fazer de Karenin um ser semelhante a ela. Não sente ciúmes, nem quer confiscar nada. Simplesmente a ama, um amor que é idílico.

 

Foi por isso que Tereza sofreu tanto com a morte de Karenin. Uma morte que se deu sem maiores sofrimentos, pois veio adiantada com a ajuda da eutanásia. E, como diz Kundera, este é um dos privilégios dos cães com respeito aos humanos: para os animais a eutanásia não vem proibida por lei, “o animal tem direito a uma morte misericordiosa”. Mesmo assim, é tão difícil, e foi tão difícil para o casal, saber o momento certo em que o sofrimento passou a ser inútil. 

 

A Tomas coube a iniciativa de aplicar a injeção. A Tereza coube apenas acolher Karenin em seu colo e acaricia-la até o final da vida. E o fez dizendo a ela, com delicadeza: “Não tenha medo, não tenha medo, lá você não sofrerá, lá você verá esquilos e lebres, haverá vacas, e Mefisto também, não tenha medo”.

 

A cerimônia de adeus completou-se com um enterro digno, e ela, Karenin, foi envolvida num lindo “lençol branco estampado com pequenas violetas”. Os dois a conduziram silenciosos até o jardim, onde foi enterrada com dignidade, entre duas macieiras. Tudo traçado com cuidado, cortesia e delicadeza, como traçado pormenorizadamente por Tereza. E Tereza lembrou-se de um sonho que tivera, tão bonito: “Karenin tinha dado à luz dois croissants e uma abelha”.

 

Certo dia, durante o trabalho, um rapaz urrava de dor ao ter deslocado o seu ombro. Tomas conseguiu ajeitar as coisas, com seu aprendizado médico. O rapaz se recuperou, e enquanto ainda estava deitado no chão, observou a beleza de Tereza, ali perto, com um lindo vestido, que tinha colocado justamente para agradar Tomás. O rapaz, tomado de espontaneidade, observou que diante de Tereza e seu vestido, foi invadido por uma vontade imensa de dançar. Foi a chispa que acendeu no grupo a decisão de ir num vilarejo da vizinhança para celebrar a alegria. 

 

Todos dançaram e todos se embebedaram. Tereza dançou com o rapaz, depois com o presidente da cooperativa. Finalmente coroou sua alegria dançando com seu amor verdadeiro, que era Tomas. Enquanto os dois dançavam ela lhe disse bem junto do ouvido: “Tomas, em sua vida eu fui a causa de todos os males. Foi por minha causa que você veio parar aqui. Foi por minha causa que você desceu tão baixo, mais baixo impossível”. 

 

Tomás reage dizendo que ela estava divagando. Ela replica dizendo que ele poderia estar hoje bem melhor, no seu emprego de médico, num trabalho que era a coisa mais importante de sua vida. E Tomas, de forma serena, respondeu: “Tereza, você não notou que me sinto feliz aqui?”. Ela, delicadamente, aconchegou sua cabeça em seu ombro, e teve a luz de uma felicidade única, estranha, mas magnífica. Uma felicidade que agora vinha preencher o antigo espaço de sua tristeza. No retorno da festa ocorreu um acidente com a caminhonete em que estavam, e eles perderam a vida. 

 

Sabina, que agora morava distante, em Paris, recebeu a notícia por carta, e vinha escrita pelo filho de Tomás. Pela carta ficou sabendo do ocorrido. Foi quando então se viu tomada por um vazio imenso. Ele já morava em Paris há três anos. Veio então a vontade de ir ao cemitério de Montparnasse, tecido por “frágeis construções de pedra”. Os habitantes que ali jaziam “eram ainda mais extravagantes do que em vida”. 

 

Foi tomada por uma estranha sensação: não gostaria de estar enterrada ali, coberta por pedras. Lembrou-se então do enterro de seu pai, que jazia em outro lugar, num túmulo diferente, onde o caixão vinha coberto por uma camada de argila, e dali nasciam flores, como se fossem um desdobramento daquele ser que ali jazia. As raízes das flores envolviam o caixão, como uma continuidade de vida, como se o morto saísse das sombras através das raízes e das flores. 

 

Dessa forma, pensou Sabina, ela podia manter a conversa com seu pai, o que não poderia ocorrer em Montparnasse. Se seu pai estivesse recoberto por pedras, ela “jamais poderia ter falado com ele depois de morto, não poderia ter ouvido na folhagem da árvore sua voz, que a perdoava”.

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