segunda-feira, 24 de abril de 2023

 No caminho do “Panis Angelicum”


Faustino Teixeira


 

Na sexta feira passada, dia forte de homenagem a Oxalá, fui visitar uma comunidade da União do Vegetal em Juiz de Fora. Pensei em ir de branco, em homenagem ao grande Orixá. Acabei não indo, e isto talvez tenha exercido um impacto no que vivi ali. Não foi algo fácil para mim, mas o que senti foi a experiência de uma força estranha que me atordoou. Já conhecia o Mariri e a Chacrona, pois tenho os dois na Faixa de Gaia e são objeto de minha admiração, assim como as três Samaúmas, que crescem devagar no meu sítio sagrado. 

 

Eu pensava que o núcleo da UDV fosse mais perto, mas é distante da minha casa, e está na mesma direção da Faixa de Gaia, mas sua entrada na BR Zero 40 ainda convida para uma longa caminhada em estrada de terra. O lugar onde ocorre o ritual é muito bonito, com duas majestosas samaúmas envolvendo o salão principal. Achei também as pessoas muito acolhedoras e simpáticas. Minha experiência concreta foi outra coisa, difícil. Mas não quero falar dela aqui. Escrevi um relato para uso pessoal e para partilha com alguns amigos. Digo, porém, que o momento mais rico que vivi ali foi quando, sozinho, depois de tudo, e ainda passando mal, sentei-me sereno ao pé da Grande Samaúma, como bem lembrou para mim uma amiga querida. 

 

O que quero partilhar com minha comunidade do Face é a questão que se relaciona com essa sede de busca que vem marcando tantas pessoas, e muitos jovens, nesse momento de crise mundial, de falta de horizontes e perspectivas. Estamos nu momento de pós-pandemia quando muitas relações são desfeitas e tanta gente vem se afundando num mar de angústia, de carência de sentido e mesmo de depressão profunda.

 

Diante dessa anomia, muitos buscam o caminho religioso como fonte de significação, de apoio, de resistência, de resiliência. Sábio é Peter Berger quando diz que a religião é a “ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo”. E isso é interessante. Outros buscam, mesmo fora das religiões, nichos de espiritualidade confortadoras. É o que podemos constatar no belo livro de André Comte-Sponville: “O espírito do ateísmo” (2006). Ele diz com razão no preâmbulo de seu livro que “a espiritualidade é importante demais para que a abandonemeos aos fundamentalismos”. E relata, de forma linda, o que ele entende por espiritualidade. E a identifica com a experiência profunda de “habitar o universo”. A espiritualidade é, no fundo, a experiência do Real, com todas as suas nuances. Viver o mundo espiritual é adentrar-se nas entranhas do Real. Nada mais que a “plenitude do Real”. E ele identifica essa experiência com a “imanensidade”, ou seja, uma “peregrinação na imanência” . 

 

Comte-Sponville relata uma experiência que teve com amigos quando caminhavam juntos numa floresta no norte da França. Estavam caminhando, simplesmente, quando, de repente, os risos cessaram e as palavras tornaram-se raras. O que permaneceu sobrevivendo neles foi a amizade, a confiança, a presença compartilhada e a “doçura daquela noite e de tudo”. Não se pensava mais em nada, restava apenas o olhar sereno diante daquele “incrível luminosidade do céu” e o “silêncio rumoroso da floresta”. E aí sim, ocorreu a surpresa fundamental: “Apenas uma evidência. Apenas uma felicidade que parecia infinita. Apenas uma paz que parecia eterna”. Não havia em torno nada além do que uma “deslumbrante presença de tudo”. Isso é espiritualidade, também para mim.

 

Lendo aqui um texto de uma amiga antropóloga querida, Regina Novaes, para um livro que estou organizando com Renata Menezes, de Antropologia da Religião, vejo como essa questão é mesmo complexa. Em seu artigo, Regina fala dos jovens de axé e dos jovens católicos nesse momento concreto do Brasil. Regina fala da crescente procura de jovens pelo caminho que se abre no mundo evangélico, sobretudo no mundo pentecostal. Fala também do crescimento da presença jovem no mundo afro, ainda que em casos concretos a presença venha camuflada sob a denominação “espírita”, que é mais aceita entre nós. Regina fala também do crescimento daqueles que se declaram com fé, porém sem vínculos institucionais. É o fenômeno mundial que presenciamos hoje, de uma crença sem pertença.

 

Na minha experiência pontual na UDV senti algo bem semelhante ao que vejo no catolicismo. A força de uma tradição, a ênfase na doutrina, a hierarquização, e a vinculação da comunidade a um eixo propiciador do êxtase, que no caso da UDV é o vegetal (Hoasca ou Ayauasca). Senti a comunidade acolhedora, mas fiquei um pouco atordoado com o ritmo da doutrina, com a visão sobre a matéria e com a dificuldade com o silêncio. Em determinado momento, um líder chegou a expressar claramente, que os espaços residuais do silêncio ali existentes são um contraponto protetor contra a ameaça do demônio. Incomodou-me ainda a visão, nem sempre colocada de forma clara, de que os que mostram dificuldades na relação com o Vegetal encontram-se ainda num estágio limitado de evolução espiritual. São compreensões que discordo. Não quero, porém, entrar aqui em detalhes.

 

Lendo o precioso livro de Beatriz Labate, Isabel de Rose e Rafael dos Santos, sobre as religiões ayahuasqueiras, pude constatar a singularidade de tradições como o Daime e a UDV e seu bonito traço de serem religiões genuinamente brasileiras. Eles ainda indicaram que grande parte do trabalho teórico em torno dessas tradições são realizados por antropólogos, muitos dos quais acabaram se convertendo a tais tradições, e mesmo fardando-se ali. Como dizem os autores desse trabalho, “a grande maioria dos antropólogos que estudam as religiões ayahuasqueiras acaba se fardando em algum momento da pesquisa”.

 

O Interessante no trabalho desses autores, foi mostrar que também cresce no Brasil “grupos dissidentes” das três religiões ayahuasqueiras principais: Daime, UDV e Barquinha. Relatam as novas experiências de grupos autônomos que se irradiam nas regiões urbanas, sobretudo nas grandes cidades. Surgem então “novos rituais e conjuntos de referências doutrinárias”.

 

Isso tem um significado bem singular para mim, que corrobora minha ideia da crise que vivem as instituições religiosas em âmbito mundial. Daí, por exemplo, Daniele Hervieu-Léger falar em “implosão do catolicismo”, e, ainda, verificarmos que também aqui no Brasil já surgem os evangélicos não praticantes, como vimos no último censo demográfico. 

 

Eu mesmo, particularmente, tenho atualmente dificuldade de vincular-me às igrejinhas. Vivo uma sintonia fina com Teilhard de Chardin, quando relatou numa carta à amiga, Léontine Zanta: “Nossas igrejinhas nos escondem a Terra”. Convidava então a amiga para banhar-se na matéria humana, na matéria da vida, e dizia que esse contato a tonificaria. No campo católico, essas “igrejinhas”estão por toda parte... e foram poucos momentos onde pudemos vivenciar primaveras de vida eclesial, como no tempo CEBs, que residem agora apenas na memória. O que vemos em muitos casos e por todo canto são cerimônias monótonas, com homilias pobres, uma sede de arrogância e vontade de poder, bem como um disciplinamento doutrinal que acanha e afasta os fiéis. Na experiência que fiz com o budismo zen em Ouro Preto, foi a mesma coisa: algo que não produz sedução e encanto, mas que expressa disciplina e seriedade excessiva. Falta humor, elasticidade, leveza, liberdade. Foi o que vi também aqui na UDV, sobretudo no ritual.

 

Por isso, na manhã de sábado, acordei com duas canções de Tom Jobim ressoando em meus ouvidos, indicando que o caminho que busco é diferente, e ainda está sobrando no horizonte:

 

Hoje é sexta-feira

Deixa o mato crescer em paz

Deixa o mato crescer

Deixa o mato

Não quero fogo, quero água

(deixa o mato crescer em paz)

Não quero fogo, quero água

(deixa o mato crescer em paz)

 

O barro ficou marcado aonde a boiada passou

 

Tom Jobim

 

Na iluminada manhã de sábado, quando surgiram na mente esses dois trechos de canções de Tom Jobim, passou-me a seguinte reflexão. O recurso do uso ritual das plantas sagradas talvez tenha um significado preciso entre os povos originários, mas um pouco mais exóticos para nós, brancos urbanos. 

 

Por isso a ideia que se firmou em mim foi de “deixar o mato crescer”. Deixar o Jagube (Mariri) e a Chacrona (Rainha) sossegados em seu lugar. Eles estão lá, tranquilos e belos, e podemos, sim, estar diante para observar e curtir sua presença. Não vejo, assim, necessidade imperativa de utilizar recursos materiais ou instrumentos para viver a experiência nua da contemplação.  Isso é possível com a força de nossa mente. Podemos, sim, captar a notícia sutil e delicada dos anjos e do Mistério no silêncio absoluto, sem precisar recorrer a instrumentos. E diria também, que vivenciar esse “panis angelicum” pode, para alguns, dispensar também a eucaristia, por que não?

 

João da Cruz faz uma clara distinção entre meditação e contemplação. Para ele, a meditação ainda necessita de instrumentos de apoio, mas a contemplação não, ela é livre. Diz ele:

 

“Logo que entra em oração, como quem já está com a boca na fonte, bebe à vontade e com suavidade, sem o trabalho de conduzir a água pelos aquedutos das passadas considerações, formas e figuras. E, assim, logo em se pondo na presença de Deus, acha-se naquela notícia confusa, amorosa, pacífica e sossegada em que vai bebendo sabedoria, amor e sabor” (Subida do Monte Carmelo, II, XIV, 2)

 

Por isso faço a distinção entre o “pão eucarístico” e o “pão angélico”. O segundo está ainda além do primeiro. E isso vem expresso também na versão original da Imitação de Cristo, resgatada recentemente por estudiosos holandeses. Thomas de Kempis não coloca a Eucaristia como o ápice da experiência espiritual. E João da Cruz, em seu Cântico Espiritual, reconhece isso quando coloca no ápice da experiência expiritual, a borracheira mística, livre de instrumentos:

 

“Na interior adega

do Amado meu, bebi”  (CB XXVI)

 

 

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