domingo, 17 de julho de 2016

Pluralidades Religiosas: Modos de ser e de crer em tempos do Espírito

Pluralidades Religiosas:
Modos de ser e de crer em tempos do Espírito

Apresentação de Carlos Rodrigues Brandão por Faustino Teixeira
(SOTER – BH – 14/07/2016)

Uma alegria enorme poder apresentar esse amigo querido, parceiro de tantas aventuras e comunhões.

Carlos Brandão é antropólogo. Nasceu no Rio de Janeiro em 1940 e graduou-se em psicologia na PUC-RJ. Participou ativamente, enquanto estudante e depois, já como professor, dos movimentos de cultura popular dos anos sessenta. Concluiu o seu mestrado em Antropologia na UNB e doutorou-se em Ciências Sociais na USP, em 1979, sob a orientação de Duglas Teixeira Monteiro e José de Souza Martins.

Sua tese fez história entre nós da Teologia e Ciências da Religião: Os deuses do povo. Publicada inicialmente pela Brasiliense em 1980 e depois integralmente, com inúmeros depoimentos, pela EDUF, em 2007. E dava início ao seu trabalho com uma expressão que sempre me encantou: “Talvez a melhor maneira de se compreender a cultura popular seja estudar a religião”.

E acrescentava:

"A religião dá nomes a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, possível e legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende sempre envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais, de acordo com os interesses políticos, mas também de acordo com os medos e as esperanças das mais diversas categorias de pessoas (...). Qualquer pesquisador das formas populares de cultura e dos modos subalternos de vida sabe que ali quase não há esferas de uma e de outros que não estejam envolvidas e significadas pelos valores do sagrado".

Isso naquele tempo forte da teologia da libertação e das comunidades de base.

Sua carreira docente começou na UNB, com continuidade na Universidade Federal de Goiás (oito anos) e depois na UNICAMP, no Departamento de Antropologia. Mesmo depois de aposentado, deu continuidade ao seu trabalho docente, como professor convidado ou visitante em várias Universidades, como no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia.

Diferente de tantos colegas acadêmicos, Scholars, Brandão se diferencia pela paixão, pela sensibilidade e pelo comprometimento com a caminhada popular. Na linda introdução de seu livro publicado pela Vozes, Sacerdotes de Viola (1981), ele relata sua primeira “crise”. Estava na PUC-RJ , como monitor do Instituto de Psicologia Aplicada:

“Às vezes, por volta das cinco horas da tarde, eu estava atrás de uma mesa corrigindo uma pilha de testes com que as pessoas inventam se medir, e olhava para além da janela, em direção aos bosques da Universidade. E  pensava que a vida estava lá fora, além dos bosques da cidade.”

Foi quando então descobriu o Movimento de Educação de Base (MEB), que “abriu portas e janelas de muitos mundos”:

“De um dia para o outro, eu saí de uma sala de aula de testes psicológicos para uma de ´animação popular`”.

Foi então, a partir daquele tempo que Brandão descobriu o mundo da religião popular:

“Eu comecei a ver o mundo rural e os seus moradores de outro modo. Não eram mais a gente curiosa e alheia dos tempos em que ia com a família passar pedaços das férias em Itatiaia ou em Petrópolis. Eram os companheiros do ´lado de lá` de nossas esperanças e nossa vocação. Aos poucos eu comecei a ser educado, onde pensava que era pago para ser educador”.

E relata mais adiante:

 “Foi quando eu comecei a aprender que por debaixo do folclórico, como nós chamamos o que vemos, existe a devoção, como o povo chama o que faz. Foi ali que reaprendi a compreender a cultura popular do ponto de vista dos seus próprios praticantes. Este é o aprendizado mais difícil, porque ele converte o pesquisador em participante e o cientista em crente (...). Aprendi a me envolver de emoção pelo meu trabalho, por causa daquilo que o trabalho me revelava. Aprendi a só querer pesquisar e escrever sobre aquilo que de algum modo tomasse conta de minha vida e dos seus significados. Agora não era preciso olhar mais pela janela. A vida estava ali onde eu ia buscá-la".

Muitos anos depois, em depoimento singular – num artigo para a revista Numen (2014) – Brandão sublinhava a sua forma peculiar de lidar no campo:

“Muitas vezes oramos juntos em seus rituais e não foram poucas vezes em que, diante de todos, deixei de lado meus aparatos de pesquisa e, reverente, tomei as fitas pendentes de um altar rustico, beijei-as e as passei sobre a cabeça. Fui certa feita ´festeiro de Santos Reis` em São Luis do Paraitinga e, talvez de uma forma próxima a vários de vocês aqui e um tanto mais distante de outros companheiros de ciências sociais, eu me sentia e identificava como alguém que pesquisa algo de um sistema de fé, crença, culto e rito; de uma religião enfim, que desde a minha infância era também ´a minha` e em cujas verdades essenciais, eu também acreditava.”

Havia um mundo que separava os devotos das tradições religiosas populares e o antropólogo que os pesquisava. E a grande dificuldade no empreendimento de escrever sobre aqueles rituais: “traduzir o em que eles acreditavam, o que eles faziam e criavam diante de mim e dos outros, em uma linguagem que eles não entenderiam, se algum dia me lessem, tal como escrevi”.

Os mestres foliões ou os capitães de congos reconheciam a seu modo essa diferença, como um deles expressou certa vez, entre sorrisos e interrompendo o seu canto -  ao ver Brandão numa esquina gravando e fotografando o ritual: “Eh, meu branco! Quem sabe dança, Quem não sabe, estuda!”.

Mas voltando ao itinerário de Brandão,

Vale lembrar suas  assessorias às CEBs, sobretudo na Diocese de Goiás, com Dom Tomás Balduíno foi preciosa. Recordo aqui a longa pesquisa de campo que procedeu ali, envolvendo o tema: “Condições de vida e situação de trabalho do povo de Goiás” (nos anos de 1970, com continuidade no início dos anos 1980), com inúmeros cadernos publicados .

A retomada de sua trajetória vem apresentada de forma muito bela no artigo que Brandão escreveu na Numen (v.17, n. 1, 2014, p. 297-348): “Quem fomos nós? Quem somos agora? Sobre alguns silêncios e alguns assombros a respeito de territórios e caminhos interiores de fé e de destino. O Artigo serviu de base para um curso dado por Brandão aos alunos do PPCIR-UFJF em junho de 2014. Uma experiência marcante e única.

O artigo aborda questões profundamente relacionadas ao tema proposto ao Brandão para sua conferência na SOTER: Pluralidades Religiosas: modos de ser e de crer em tempos do Espírito.

Uma questão recorrente para ele: “Que formas, quais modalidades ou alternativas de crença e prática ´em algo ou em nome de alguma coisa` estão surgindo entre nós” (Veja entrevista no IHU-Online – 401, Ano XII – 03/09/2012)

Reflete Brandão:

“Quando converso com vários amigos que foram como eu cristãos católicos engajados em algum movimento de igreja, vejo que uma soma considerável deles (eu incluído) está precisando agora realizar uma espécie de releitura não teísta em sua fé para poder se manter ainda cristão, mesmo que já não mais restritamente... católico. Muitos de nós precisamos crer que o próprio Jesus nunca foi o Cristo; nunca foi um ´deus enviado a Terra para nos salvar de nosso próprio pecado coletivo`, para acreditarmos não na mitologia, mas nas substâncias humanas dos evangelhos.

Não precisamos mais de um deus-homem milagreiro que ´morreu para nos salvar`, e depois ressuscitou para nos dizer que isso irá acontecer com todos nós (pelo menos com o pequeno rol ´dos salvos`). Precisamos de um homem-deus (justamente porque humano) que, entre vários outros, nos diga palavras de sentido e nos envolva de gestos de ternura... para que saibamos como viver e para onde ir, mesmo que não haja ´um céu para os eleitos`.

Entre meus alunos, entre amigos, e especialmente entre pessoas do povo com quem convivo, nunca encontrei alguém que diga: ´eu não acredito em nada!` E creio mesmo que quando alguém diz isso, diz algo provisório. João Guimarães Rosa lamenta, ainda no Grande sertão: veredas, que ´pra muita coisa falta nome`. No caso da religião e do círculo mais amplo (do qual ela faz parte) dos sistemas de sentido, penso que falta mais ainda.” (IHU-Online – 401 - Ano XII - 03/09/2012)

Brandão assume essa identidade: também para ele falta um nome, um lugar onde se encaixar nesse campo da fé. Identifica-se com tantos outros "habitantes e viajeiros dessa múltipla ´diáspora da fé`".

Um nome que consiga encaixar "a teia de uma comunidade densa, fecunda e unitariamente diversa e dispersa" de pessoas que estão em busca. De fato, diz ele, "falta um nome" para dizer o que somos nesse quadro de sentido.

Estamos, sim, diante de buscas diversificadas que incluem o caminho de uma religião fundamentalista, de uma vaga filosofia de vida ou de uma visão errante do mundo. Chegou o momento, afirma, de querermos saber quem afinal somos.

Na trajetória de Brandão estas dúvidas sadias sempre estiveram presentes. Ele relata o encontro que teve uma vez com Frei Eliseu Lopes, um ativo dominicano que habitava na cidade de Goiás. Isto foi há de mais de vinte anos. Preocupado com questões de fé, indagou a Frei Eliseu sobre suas dúvidas em temas como a virgindade de Maria, a assunção de Nossa Senhora, a ressurreição da carne e a existência do purgatório e do inferno.

Em sua simplicidade peculiar, o dominicano respondeu de forma simples e curta: "Faz muito tempo que eu não penso em nada disso". Assinalou que muito disso não passa de "penduricalhos" que se acrescentam à fé.

Durante a conversa, foi ajudando Brandão a diferenciar o "entulho da crença e a crença da fé". Ao final veio a pergunta de Brandão: "Afinal, no que você crê?". E ele respondeu simplesmente: "Eu creio numa comunidade que crê, e que vive do que crê".


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