Marta e Maria: Contemplação e Ação
A liturgia católica celebrou ontem, sábado, dia 29/07/2023, as irmãs Marta e Maria. Gostaria de dizer algumas palavras que me tocam ao refletir sobre as duas irmãs e sua relação com Jesus. Tenho aqui como base o belo livro de Bernard McGinn sobre Mestre Eckhart, o homem a quem Deus nada esconde (original inglês de 2001 e tradução francesa pela CERF em 2017). Não temos, infelizmente, a tradução portuguesa dessa obra.
Em sua obra sobre Mestre Eckhart (A mística de ser e de não ter – Vozes, 1983), Leonardo Boff já havia tratado do tema de Marta e Maria e mencionado a tese eckhartiana do carinho especial de Jesus por Marta, invertendo a clássica forma de trabalhar a relação entre vida contemplativa e vida ativa. Ao dar preferência a Marta, segundo o Sermão Alemão 86 do mestre renano, Eckhart teria aberto um caminho bonito para uma “mística da libertação”. Como diz Boff, “a mística, por mais que irrompa para cima, não perde as raízes de baixo”).
No mencionado Sermão 86 de Eckhart, que trata da passagem bíblica de Lc 10, 38-40, o místico reconhece a beleza contemplativa de Maria, mas sublinha que Marta “possuía plenamente tudo o que é bem temporal e eterno e tudo que a criatura deveria possuir”. Na visão do mestre renano, Marta era cuidadosa. Ela estava junto das coisas, mas as coisas não estavam nela, pois já tinha vivido com grande riqueza uma mudança interior. Ela estava “assentada numa virtude esplêndida, madura e sólida, num ânimo livre, desimpedida de todas as coisas”. Daí sua vontade de que sua irmã, Maria, pudesse igualmente estar “assentada no mesmo vigor”. Marta, como lembra Eckhart, havia tocado o mistério da essência, e lidava com a vida de forma essencial. E concluía: “Só quando os santos se tornam santos que começam operar virtudes”.
A tradição mística anterior, inaugurada por Agostinho e retomada posteriormente por Gregório, o grande e Bernardo de Claraval, davam proeminência à vida contemplativa. Eckhart equilibra esta tradição acentuando o valor evangélico da prática. Ele rompe com o modelo tradicional em seu Sermão 86, acentuando com vigor a “unidade do agir” no caminho da perfeição no tempo. A grande novidade trazida por Eckhart, segundo Mc Ginn, é ter audaciosamente afirmado para o seu tempo “um novo gênero de ação, proveniente de um fundo bem exercido”. Ou seja, Marta tinha avançado ainda mais em razão de estar habitada por um “fundo bem exercido” (wol geübeter grunt). Com isso, Eckhart sublinha o valor único de uma “prática bem exercida”, que busca sua razão de ser no fundo da alma exercitado.
Marta é alguém profundamente livre, que se encontra envolvida nas coisas, mas não se deixa envolver por elas, porque passou por uma experiência interior nobre de desapego e disponibilização ao outro. É um Sermão bonito que nos faz pensar de forma nova a relação entre tempo e a eternidade. A eternidade passa a ser compreendida não como algo que está além, mas como a “plenitude no tempo”. Marta é um espírito livre (vriên gemüete) e sua vida está enraizada num fundo resplandescente (ein hêrlîcher grunt), e está habitada pelo único necessário (Lc 10,42).
Daí entendermos bem uma Teresa de Ávila quando trata em suas Fundações o tema do "avanço espiritual". Acalma suas irmãs ao indicar a elas sobre as ocupações que o Senhor convoca no sentido da Obediência e Caridade. O bonito assombro está em perceber os caminhos de obras que a verdadeira obediência provoca nos seguidores de Jesus, convocando-os "a cuidar das coisas exteriores", pois "mesmo na cozinha, entre as panelas, o Senhor vos está ajudando interior e exteriormente" (Fundações, Capítulo V,8).
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