segunda-feira, 17 de julho de 2023

A dimensão contemplativa de Tomás de Aquino

 A dimensão contemplativa de Tomás de Aquino

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem

 

 

Na terça feira, 18 de julho de 2023, comemora-se o 700º aniversário da canonização de São Tomás de Aquino, no pontificado do papa João XXII. É o início do tríplice jubileu do Aquinate, que também comemora em 2024 o seu 750º anos de morte e em 2025, o 800º aniversário de seu nascimento. 

 

Conforme reportagem publicada no Jornal La Croix Internacional, em 24/05/2023, os frades dominicanos da Província de Tolouse, no sul da França, onde se encontra o antigo convento dos Jacobinos, considerado a casa mãe da Ordem dos Pregadores, já estão se movimentando para a celebração desse tríplice jubileu do “Doutor Angélico”, inclusive com a publicação de uma nova tradução francesa da Summa Theologica.

 

Sua grande obra de referência é a Summa Theologica, iniciada em 1265 em Roma, mas não finalizada em razão de uma importante visão de Deus ocorrida em 06 de dezembro de 1273, na qual sentiu-se convocado a parar de escrever e de ensinar. É o que nos recorda a tradição hagiográfica. Com a visão vivenciada, tomou consciência de que tudo o que havia escrito até então não seria senão palha diante da contemplação experimentada. Um pouco depois, Aquinate adoece durante a viagem que fazia para o II Concílio de Lião, e falece em 07 de março na abadia cisterciense de Fossanova. Será também proclamado doutor da Igreja por Pio V, em abril de 1567.

 

Mesmo não sendo um grupo tão numeroso como o dos franciscanos, os dominicanos tiveram um papel importante na espiritualidade e na mística da Idade Média tardia. Temos duas referências importantes nesse campo, como as figuras de Alberto Magno (cerca de 1200 a 1280) e Tomás de Aquino (1225-1274). Como mostrou Bernard McGinn, “a doutrina deles foi fundamental para a poderosa corrente mística que surgiu durante o século XIV na Alemanha na pregação e nas obras de Mestre Eckhart”[1].

 

A teologia mística de Tomás de Aquino ocupa um lugar mais restrito que a de Alberto Magno, com seu “dionisianismo intelectivo” e sua ênfase na natureza sobrenatural da teologia mística. Mesmo dando ensejo ao traço essencialmente intelectivo da teologia mística, Alberto Magno abre espaço para uma “recepção de doçura no próprio conhecimento”[2], favorecendo uma sabedoria contemplativa temperada pela “inteligência amorosa”. 

 

Como lembra McGinn, É difícil acessar a mística do Aquinate em razão dele não falar de si mesmo ou de sua vida interior. O que sabemos sobre isso não passa de conjecturas, mas é certo que ele teve uma experiência de Deus rica e saborosa. De fato, “o cuidado com que Tomás trata tantas práticas fundamentais da espiritualidade cristã, tais como a oração, fornece comprovação dos aspectos especulativos e práticos de sua doutrina espiritual”[3].

 

A relação entre contemplação e ação é um dos pilares de sua refexão espiritual. É clássica a frase de Tomás: contemplata aliis tradere. Isso significa contemplar e dar aos outros os frutos da contemplação. O conhecimento de Deus, ou a busca de tal conhecimento, tem uma clara incidência na dinâmica da caridade. Mesmo defendendo a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa, Tomás reconhece que “as obrigações do amor cristão muitas vezes tornam necessário e mais meritório dedicar-se à ação do que permanecer na contemplação”[4]. Não há, em hipótese alguma, uma desconsideração em Tomás pela vida ativa, que em casos concretos pode mesmo prevalecer.

 

Gustavo Gutiérrez, em sua clássica obra sobre a teologia da libertação, enfatiza o traço tomista que sustenta a ideia de que a graça não suprime ou substitui a natureza, mas a aperfeiçoa. Ele abre assim, como lembra Gustavo, “as possibilidades de uma ação política mais autônoma e desinteressada”[5].

 

O que gostaria de lembrar aqui nesta reflexão é o traço contemplativo de Tomás de Aquino, e em particular a sua visão de Deus. Não há dúvida sobre o impacto em sua obra de uma teologia negativa ou apofática. Em sua doutrina sobre Deus há uma ênfase importante no dado da “simplicidade da natureza divina”. 

 

É algo que nos faz lembrar da reflexão de Eckhart em seu sermão alemão 2, quando fala da presença de uma força na alma que flui do Espírito, inteiramente espiritual. Trata-se de uma força incandescente a ardente que ninguém jamais consegue expressar com nitidez. É uma força que provoca deleite e alegria. Essa centelha interior permanece obscurecida, mas ativa: “É livre de todos os nomes e despida de todas as formas”. Ali, sim, emerge o que há de “florescente e verdejante” de Deus[6].

 

O influxo dionisíaco sobre Tomás de Aquino é claro, ao firmar o conhecimento de Deus com base na negação, isto como uma precisa estratégia linguística. Mesmo quando falamos sobre a bondade de Deus, sabemos que não é ela que alcançamos, mas insere-se numa dinâmica de balbucio que apenas nos aproxima da fresta de luz que ela envolve. 

 

A bondade de Deus não é aquela “que podemos predicar”. Dizia também Eckhart em outro sermão alemão, o de número 83, lembrando um mestre pagão, que “aquilo que compreendemos ou dizemos a respeito das causas primeiras, isto somos mais nós mesmos do que a própria causa primeira”. Não há, pois, verdade quando dizemos que “Deus é bom”, ou  que “é sábio”, ou “melhor”. Nada disto pode ser aplicado a Deus, “pois ele está elevado acima de tudo”, de todas as nossas representações, que se mostram sempre movediças e imprecisas diante do Mistério Maior. Para Eckhart, o que define Deus é uma “nadidade sobreessencial”[7].

 

Na visão de Tomás de Aquino, não há como compreender Deus dada a sua infinitude. Nem a razão natural, as visões proféticas ou mesmo as mais altas luzes de fé processam o acesso ao Mistério, que permanece obscurecido e incógnito. 

 

Em sua obra De Veritate, Tomás sublinha que “a visão dos bem-aventurados não é distinta da visão de alguém ainda nesta terra conforme o ver mais ou menos perfeito, mas mediante a diferença de ver e não ver”[8]. Como mostra Aquinate, o contemplativo é envolvido por um dom especial, através da graça, que favorece uma aproximação positiva ao Mistério. É algo que reflete uma “graça gratuita”, como ocorre por exemplo no êxtase. O que temos no tempo, como nos lembra Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, é uma posse contemplativa imperfeita, “mediante o espelho do enigma” (1 Cor 13,12).

 

A contemplação escapa ao domínio propriamente intelectual, estando inserida no âmbito da fé e da “simples consideração da verdade”. Ela é sobretudo um “dom de Deus”. O seu campo não é o discursivo, mas o experiencial, e reflete a dinâmica do coração. Ao contemplativo é favorecida a experiência de “saborear a suavidade” da vontade de Deus. 

 

O centro da doutrina do Aquinate, como assinala McGinn é “o conhecimento místico como uma forma de saber experiencial e conatural fundado na união com Deus por meio da caridade e conduzindo à recepção do dom da sabedoria divina”[9].

 

Para Tomás de Aquino, como também para Alberto Magno, a melhor forma de acesso ao conhecimento de Deus é a “ignorância”, daí o traço essencial da humildade para todo buscador. Essa “ignorância” é um passo essencial de participação na sabedoria divina. Conhecer a Deus, “é ser iluminado pela própria profundeza da sabedoria divina, de que não somos capazes de investigar”[10].

 

Junto com o êxtase, Tomás sublinha igualmente o traço do “arrebatamento” no campo da experiência mística. A alguns vem concedido essa experiência de ser tomados por Deus: aqueles que são “totalmente arrebatados da ação dos sentidos, de modo que a alma inteira é reunida dentro da visão da essência divina”[11]. Há aqui outra referência bíblica singular, retirada de 2 Cor 12,2-5, quando Paulo relata que foi arrebatado até o paraíso, ouvindo então as “palavras inefáveis que não é lícito ao homem repetir”.

 

Como indica Mc Ginn, a doutrina de Tomás de Aquino sobre a contemplação encontra-se “entre as mais sistemáticas na história do pensamento cristão”, servindo-se de ponto de arranque fundamental para as abordagens teológicas em torno da questão mística. A visão neoescolástica do Aquinate dominou a teologia católica entre os anos de 1880 a 1960, e sua perspectiva sobre a contemplação “permanece um ponto alto da reflexão doutrinal sobre a mística cristã”[12].

 

Tomás foi grande inspirador do teólogo Karl Rahner que a ele dedicou um importante texto de seus escritos teológicos, isso em 1974, em torno aos problemas concernentes à incompreensibilidade de Deus segundo Tomás de Aquino. Com base em Aquinate, Rahner sublinha que Deus, em todo lugar, permanece como algo incompreensível a todo intelecto finito e criado, inclusive “para os anjos e para os homens beatos, e também para a alma criada do Homem-Deus”. Também Jesus, participa da “bem-aventurada ignorância de Deus”. Jesus, enquanto humano, na sua experiência de fé, encontra-se sempre diante deste “mistério inexorável”, também para ele[13].

 

Jesus Cristo, e nossas narrativas sobre ele, convocam-nos para a rejeição à qualquer “encarceramento na aparência”. Estamos todos, incluindo Jesus feito homem, distanciados do Inominado, e nossas representações a respeito são sempre movediças. A figura de Jesus é também algo que nos orienta para Outrem, “cujo nome é indizível”. Como mostra o dominicano Christian Duquoc, “a singularidade de Jesus, o Cristo, não abole as outras singularidades, ela as aponta como fragmentos potenciais de um todo inacabado, e inacabável para nós”[14].

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]Bernard McGinn. A colheita da mística na Alemanha Medieval(1300-1500). São Paulo: Paulus, 2022, p 30.

[2]Ibidem, p. 43.

[3]Ibidem, p. 53.

[4]Ibidem, p. 65.

[5]Gustavo Gutiérrez. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 57.

[6]Mestre Eckhart. Sermões Alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-50.

[7]Mestre Eckhart. Sermões Alemães2. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 118.

[8]Bernard McGinn. A colheita da mística na Alemanha Medieval, p. 56-57.

[9]Ibidem, p. 64.

[10]Ibidem, p. 65.

[11]Ibidem, p. 66.

[12]Ibidem, p. 68.

[13]Karl Rahner. Teologia dall´esperienza dello Spirito. Nuovi Saggi VI. Roma: Paoline, 1978, p. 370. E também 375.

[14]Cristian Duquoc. O único Cristo.  A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 92-93.

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