quarta-feira, 19 de julho de 2023

A presença do feminino na vida teológica


Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem


Um tema que sempre trabalhei com minhas orientandas e orientandos relaciona-se com a presença do feminino na vida de grandes teólogos e místicos do cristianismo. Se buscamos a biografia concreta desses personagens, sempre encontramos de um jeito ou outro, a presença de uma mulher ou de mulheres que inspiravam e delineavam a reflexão teórica com um toque peculiar e novidadeiro. Vemos isso claramente em muitos casos:

Teilhard de Chardin, Karl Rahner, João Paulo II, Thomas Merton, Ernesto Cardenal, Leonardo Boff, João Batista Libânio, Frei Betto, Olinto Pegoraro, Irineu Costela, Francisco Cartaxo Rolim, Fernando Altmeyer... e tantos outros casos que vamos descobrindo quando tomamos contato mais próximo com tais figuras.
Teilhard de Chardin é um caso preciso consciência viva do influxo feminino em sua reflexão mais ampla. Ele dedica uma parte de seu livro, "O coração da matéria" (1976), ao tema do feminino e sua específica função unitiva. Sublinha que desde sua tenra infância o estar diante do feminino foi um passo essencial para a sua reflexão posterior sobre a dimensão espiritual da matéria. Pontua que na historia de sua visão interior faltaria algo de essencial, de atmosfera fundamental se dela não fizesse parte o olhar e o influxo feminino.
Na bibliografia de Teihard a presença da correspondência com suas amigas fornece o espirito singular e novidadeiro de sua reflexão.
Lendo aqui uma matéria do IHU-Notícias, de 09/09/2015, temos um exemplo bem claro disto:
"Em 1950, Teilhard, aos sessenta e nove anos, no ´O Coração da Matéria`, escreveu sua autobiografia, terminando com a frase: ´nada se desenvolveu em mim, senão sob o olhar ou sob a influência de uma mulher`. Enviou cópia do livro para Lucille dizendo: ´Você sempre me ajudou, por quase vinte anos, a subir para Deus, mais luminoso e mais quente`. Lucille não foi, porém, só uma colega de trabalho, mas parte da sua personalidade. ´Você tornou-se parte da minha vida mais profunda` (17 de julho de 1936). O itinerário místico de Teilhard foi facilitado com o auxílio da mulher que o acompanhava: Lucille. Era uma mulher que precisava de amor e tinha coragem de amar. Sua agonia começou, quando o relacionamento tornou-se mais profundo. Teilhard sonhava com um caminho de virgindade, ou de amor-a-três, que levasse a convergência, enquanto Lucille procurava algo mais. ´A amizade é certamente a forma mais elevada do amor, e também a mais difícil. Meus instintos de mulher são tão fortes. É tão difícil aprender a controlar esse amor`."
Lamento muito que não tenha ainda sido publicada no Brasil a extensa correspondência entre Teilhard de Chardin e Lucile Swan, que pude ler em francês:
"Pierre Teilhard de Chardin & Lucile Swan. Correspondance. Bruxelles: Lessius, 2009.
Pude igualmente orientar com alegria uma tese doutoral, defendida por Deborah Terezinha de Paula Borges: Diafania de Deus no coração da matéria (PPCR/UFJF - junho de 2015). Nesta tese, Deborah dedica um capítulo inteiro a esta delicada e fundamental questão.
Conhecido também foi o caso amoroso de Thomas Merton, envolvendo sua relação com M, iniciada por ocasião de uma internação do místico trapista para uma de suas tantas cirurgias (março de 1966, numa semana santa).
Nasceu no hospital uma linda amizade, vivida com intensidade nos meses seguintes. M atuava como enfermeira e cuidou de Merton. O místico relata em seu diário que o encontro com M trouxe-o "rapidamente de volta à vida". Não foi fácil lidar com esse caso no âmbito da Trapa. As resistências logo viera. Merton resistiu por um tempo. Buscava encontrar caminhos para lidar com "o problema dessa ternura".
Merton dizia da importância da presença do amor em sua vida:
"Tenho de me atrever a amar, de aguentar a ansiedade de autoquestionamento que o amor desperta em mim, até que ´o perfeito amor afaste o medo`".
A nova descoberta favorecia a emergência de um Merton cada vez mais sensível às coisas da natureza e do cotidiano. Dizia que o amor de M despertou nele "uma irresistível gratidão e o impulso de atirar (todo o seu ser) em seus braços". Era, porém, um amor que também despertava nele um pânico, uma dúvida e um temor de estar sendo enganado ou de ferir o outro.
Entregou-se, gratuitamente, ao amor, e relata as experiências de "êxtase" que a vida amorosa com ela despertaram nele: "Foi belo, terrivelmente belo, amar tanto e ser amado, ser capaz de dizer tudo, completamente, sem medo e sem observação". Dizia jamais ter visto "um amor tão simples, tão espontâneo, tão total". Um amor que, segundo ele, com toda a sua experiência contemplativa, nunca havia antes alcançado. Foi um amor que abriu caminhos inusitados, de uma profundidade que abriu lindas veredas em sua vida.
Esse lindo amor não resistiu às tremendas pressões enfrentadas, sobretudo no mundo da Trapa, e com as profundas reticências de seu superior, Dom James. Reconheceu, com tristeza, que um tal amor não cabia na sociedade de seu tempo. Ao mesmo tempo, ele não queria abandonar a vida religiosa. Viveu essa tensão profunda, até romper o enlace em meados de junho de 1966.
Merton reconhecia que queria vive o amor com M, um amor que fosse completo, mas infelizmente tudo veio "interrompido, bombardeado, arrasado". Ele acrescenta:
"O que deveria ter-se transformado naturalmente num amor demorado, caloroso, terno e de lento crescimento, expresso em toda a sua profundidade, foi amputado justamente quando estava para começar. Não tenho direito de me queixar porque estou comprometido com um outro tipo de vida".
Tiveram que se isolar um do outro, um "isolamento pavoroso", mesmo com a consciência de que os corações estavam unidos.
Em setembro de 1966, Merton se reconhecia como alguém perdido, dividido, sofrendo com a decisão tomada. Dizia na ocasião:
"Aqui estou ´eu` - esta colcha de retalhos, esse monte de perguntas e dúvidas e obsessões, esta gravitação em torno do silêncio, das matas e do amor". Estava na época vivendo como eremita. Iniciou a experiência de vida solitária em agosto de 1965.
Já em novembro, depois do caso terminado, ele confessa que a experiência foi "uma grande imprudência" na sua vida. É sobre isso que tenho as minhas dúvidas. Eu e também Ernesto Cardenal, que foi seu noviço na Trapa. Não há como "abafar" a força e a riqueza dessa presença na vida de Merton (Sobre essa relação cf. Merton na intimidade. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 313-347).
No segundo volume de seus diários, "Las ínsulas extrañas" (Trotta, 2002), Ernesto Cardenal fala do enamoradamente vivido pelo seu mestre Thomas Merton. Fala daquela luminosa manhã do dia 31 de março de 1966, quando conheceu aquela enfermeira carinhosa e terna, e os dois puderam passear pelos jardins. Foi quando um grande amor veio despertado e Merton relatou a Cardenal sua experiência nascente.
Merton relata ainda para seu noviço as "cartas ilícitas" que ele e M trocaram entre si. Cardenal fala da enorme resistência sofrida por Merton entre os monges da Trapa. Merton, porém, reconhecia na ocasião que não havia contradição entre o amor a M e o amor a Cristo. Não havia, entretanto, condições possíveis na ocasião para esse entendimento.
Foi quando então o amor foi gradualmente se acabando. Na visão de Cardenal, "nesse amor Merton foi infiel à sua vocação", ou seja no chamado que ele reconheceu como maior que era o "inescrutável" amor de Deus.
Na visão de Cardenal, Merton deveria apostar na sua ousadia amorosa e inaugurar a perspectiva de uma vida eremética de casado. Seria, segundo Cardenal, a "coroação de sua vocação contemplativa". Se tivesse, de fato, apostado no amor, diz Cardenal, teria ganho.

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