quinta-feira, 23 de março de 2023

Uma fresta de luz no romance São Bernardo de Graciliano Ramos

Uma fresta de luz no romance São Bernardo de Graciliano Ramos

 

Faustino Teixeira

 

Nesse primeiro semestre de 2022 estou ministrando um curso sobre os romances e contos de Graciliano Ramos. As aulas acontecem on-line no Instituto Humanitas (IHU) da Unisinos. O curso ainda está em seu início, e o primeiro livro abordado foi São Bernardo.

 

Um dos grandes estudiosos de Graciliano, também conhecido como Graça, foi Antonio Candido, que elaborou uma das mais singelas apresentações de uma das edições das obras completas do escritor, que resultou no ensaio Ficção e Confissão. Em seu texto, Cândido relata a história de Paulo Honório, um personagem que marcou sua vida pela imperiosa vontade de ambição a todo custo, voltado a ser um impiedoso fazendeiro. Talvez seja um dos livros mais duros de Graciliano, pois tudo ali é “seco, bruto e cortante”.

 

No cerne da história, o processo de reificação de Paulo Honório, que não vê diante de si senão a imperiosa vontade de transformar tudo o que o rodeia em coisas rentáveis. É alguém incapaz de perceber a beleza da natureza, pois tudo o que repara são as coisas que lhe podem parecer rendosas. Quem também elaborou um quadro vivo desse personagem foi Luis Costa Lima, em seu ensaio sobre a reificação de Paulo Honório. Segundo Costa Lima, será esse mundo quantificado “que o esmagará”. A reificação se expressa em seu próprio corpo, sobretudo nas suas mãos enormes e endurecidas, incapazes de qualquer gesto de sensibilidade ou gratuidade.

 

O personagem diz ao final do livro:

 

“Foi esse modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.”

 

Ao final de um trajeto de vida onde o personagem acaba solitário em sua fazenda decaída, ele busca refletir sobre os cinquenta anos de sua vida, descascando fatos na mesa da sala de jantar, com seu cachimbo, à luz de uma vela que vai se desfazendo. Ele reflete:

 

“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para que! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurado comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”

 

Paulo Honório foi se desfazendo, aniquilando-se, nesse processo sem retorno de reificação. Ele se dá conta, depois de tudo que desfez, que seus cinquenta anos de vida foram desperdiçados, “gastos sem objetivo”, num ritmo de vida que aconteceu maltratando os outros e a si mesmo, num processo de despersonalização violento. Como ele mesmo reconhece: “O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada”.

 

A reificação é tamanha que ele se dá conta de que não pode mais retroceder. Essa consciência de dor se aguça depois do suicídio de sua mulher, Madalena, a única pessoa em sua vida que não conseguiu transformar em coisa. Ele chega a aventar a hipótese de um recomeço, se isso fosse possível, mas se dá conta que o estrago já tinha sido feito. E revela:

 

 “Não consigo modificar-me, é o que me aflige”. A dureza penetrou seus órgãos mais íntimos e obstruiu o coração. Agora, com tudo perdido, torna-se incapaz de qualquer gesto de sensibilidade. Não é capaz nem mesmo de se tocar pelo choro do filho: “Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!”

 

A dor da perda de Madalena, que veio para São Bernardo com intenções humanitárias, e fracassou, provoca os sentimentos de Paulo Honório. Ele reconhece que sua mulher veio para a fazenda “cheia de bons sentimentos”, mas seu projeto de amor esbarrou em sua brutalidade e egoísmo, obstaculizando qualquer possibilidade de transformação.

 

Paulo Honório, porém, reconhece que nem sempre foi assim, egoísta e brutal, mas o seu modo de vida é que o transformou numa coisa insensível e desumana. Ele reconhece que foi a sua profissão que provocou a deteriorização de suas qualidades. 

 

No pequeno grupo de debate que ocorre ao final das aulas veio uma pequena luz, que aqueceu o coração de todos nós que discutíamos o livro. Depois de alguns depoimentos sobre o livro entre os que participavam do debate,  a impressão era de um horizonte sombrio e fechado, que apenas refletia o caminho realista escolhido por Graciliano para narrar a decadência de Paulo Honório.

 

Eis que uma das participantes, a professora Mércia Maria, acenou para a presença da velha Margarida, outra personagem do romance. Ela favorecia o feixe de luz do romance, a “brecha” que todos aguardavam. Margarida era uma pessoa excluída, que vivia duramente com seus parcos recursos em Jacaré-dos-Homens. 

 

Paulo Honório teve, ao início do romance, a ideia de trazê-la para São Bernardo. Ela tinha cuidado dele quando criança. E isto ocorreu. Ela veio alojada “numa casinha cercada de bananeiras”. Seu modo de vida era bem diverso, marcado por simplicidade, restringindo-se a seus parcos recursos. Em São Bernardo veio acolhida com carinho, e Madalena não lhe deixava faltar nada. Era uma pessoa muito simples e não necessitava de muito para viver: “Só preciso uma esteira. Uma esteira e o fogo”. Recusava qualquer luxo. Seus únicos pedidos foram um pote e um tacho, para o fogo amigo nas noites mais frias. E Paulo Honório recupera para ela o velho tacho onde fazia os deliciosos doces na pequena casa onde ele vivia no passado.

 

Ao final do livro, Paulo Honório recorda o início da sua vida: “Fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado”. Veio de uma vida simples, como a de Margarida. Com seus “farrapos de conhecimento” lembra-se agora novamente de Margarida, e lembrando-se dela julga que desnorteou “numa errada”. Se tivesse trilhado outro caminho, da simplicidade e humildade, o horizonte podia ser diverso. 

 

E então sublinha: “Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus”.

 

Essa é uma página de exceção no livro São Bernardo, ali no capítulo 36, onde Paulo Honório fala de um caminho que podia ser diverso, e que, certamente, proporcionaria a ele mais alegria no coração. É o que os místicos sempre nos alertam nas páginas de suas criações maravilhosas: a possibilidade de uma vida de “baixa definição”, onde as “transações são raras ou nem sequer existem”, como diz com acerto Thomas Merton. 

 

A vida na simplicidade é um desfio fundamental para aqueles que buscam um caminho diferente, longe do risco da reificação. Viver a vida, simplesmente, sem maiores presunções, com atenção singela ao ritmo do real. Merton falava desse caminho com brilho nos olhos, e o pode realizar na sua experiência como eremita, ao final da vida. Sua meta era sintonizar-se com o ponto virginal, que está “no centro de todos os demais amores”. 

 

Disse que se casou com “o silêncio da floresta”, e animado por ele pode ver o outro lado das coisas. Como fruto de sua experiência, sublinhou que o mais importante na vida não é deixar-se tomar pela vontade de poder ou pela pressa, mas pela atenção aos pequenos detalhes do cotidiano, aqueles que são os decisivos. Dizia não ser necessário processos complexos de concentração, mas simplesmente “estar presente” no tempo, atendo às surpresas do Mistério.

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