quinta-feira, 23 de março de 2023

Os desencontros da igreja católica com as outras religiões

 Os desencontros da igreja católica com as outras religiões


Faustino Teixeira

IHU


Nós, da teologia latino-americana, sempre tivemos um carinho especial com a exortação apostólica "Evangelii nuntiandi", sobre a evangelização no mundo contemporâneo. Ontem, 22/03/2023, em sua Audiência Geral, o papa Francisco celebrou com alegria esse acontecimento:
"Hoje coloquemo-nos à escuta da “magna carta” da evangelização no mundo contemporâneo: a Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de São Paulo VI (EN, 8 de dezembro de 1975).
É atual, foi escrita em 1975, mas é como se tivesse sido escrita ontem. A evangelização é mais do que uma simples transmissão doutrinal e moral.
É em primeiro lugar testemunho: não se pode evangelizar sem testemunho; testemunho do encontro pessoal com Jesus Cristo, Verbo encarnado no qual a salvação se completou. Um testemunho indispensável porque, antes de mais nada, o mundo precisa de «evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar» (EN, 76).
Não significa transmitir uma ideologia nem uma “doutrina” sobre Deus, não! Significa transmitir Deus, que se torna vida em mim: nisto consiste o testemunho; e também porque «o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres [...] ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (ibid., 41).
Portanto, o testemunho de Cristo é o primeiro meio de evangelização (cf. ibid.) e, ao mesmo tempo, condição essencial para a sua eficácia (cf. ibid., 76), a fim de que o anúncio do Evangelho seja fecundo. Ser testemunha! (...)"
Como teólogo que trabalho o tema do diálogo com as religiões não posso, porém, deixar de mencionar a infeliz reflexão de Paulo VI nessa exortação sobre as religiões não-cristãs. A crítica que faço é a mesma realizada por Jacques Dupuis em seu clássico livro: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. Dupuis lamenta que esta exortação desenvolveu "uma avaliação bastante negativa" das outras religiões.
Paulo VI reconhece o valor das outras religiões, e sublinha que a igreja católica as respeita e estima. Mas sua visão mantém-se refém da teoria do acabamento, ou seja, a ideia de que as outras religiões vêm animadas pelo desejo do Mistério e que o cristianismo favorece o remate da realização. Para Paulo VI as outras religiões traduzem simplesmente o "o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração". Elas traduzem simplesmente uma "preparação evangélica", que é a linguagem utilizada pelo padre da igreja, Justino. Numa visão tipicamente tradicional e desatualizada, Paulo VI identifica as outras religiões como "expressões religiosas naturais" e não sobrenaturais. Como se fossem unicamente "braços estendidos aos céus". Como braços estendidos, manifestariam apenas o desejo do divino, que seria complementado pela missão cristã. De forma bem infeliz, Paulo VI sublinha que somente a religião cristã "instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer". O máximo que realizam, é "estender seus braços" para o Mistério Maior, que só vem de fato acolhido no cristianismo.
Duro de roer... Trata-se de uma visão bem fechada, que será retomada com ainda mais violência na Declaração Dominus Iesus, que dirá mais tarde, em agosto de 2000:
"Não há dúvida que as diversas tradições religiosas contêm e oferecem elementos de religiosidade, que procedem de Deus"
A declaração reconhece um valor às outras religiões mas não aceita que tenham "a origem divina". Não são, portanto, religiões reveladas. O documento ratzingeriano entende que os adeptos das outras religiões (e não as religiões em si) "podem receber a graça divina", mas objetivamente encontram-se "numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação".
E vamos dormir com um barulho desses!!!
Infelizmente, essa é a visão que predomina ainda hoje na igreja católica. Mesmo o papa Francisco evita de tratar o tema de forma direta, em razão da pressão que a Dominus Iesus ainda exerce sobre as mentalidades. Os exemplos mais claros encontramos nos dois recentes livros de autoridades da igreja católica: Nada mais que a verdade (Georg Ganswein) e Em boa fé (Gerhard Muller). Nos dois livros, são tecidos enormes elogios à Dominus Iesus. Para o cardeal Muller, ex-prefeito do Santo Ofício, essa declaração é "um documento magisterial de alto valor", e expressa "o que para os cristãos é a verdade absoluta".

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