terça-feira, 30 de agosto de 2022

Sobre perdas, alegria e amor

Sobre perdas, alegria e amor


Faustino Teixeira

IHU - Paz e Bem


Já fazem mais de 30 dias que perdi minha mãe, a querida Dama da Delicadeza. Ela partiu leve... Meu último encontro com ela ocorreu três dias antes da morte. Já não falava, mas olhava serena com aquele olhar maravilhoso e terno. Toquei suas mãos e senti a pele linda, lustrosa e o rosto brilhava de uma forma magnífica. De vez em quando ela simplesmente jogava um beijo para nós que estávamos no quarto: eu, Teita e o irmão mais velho, José Geraldo.

Lembrei-me da passagem de meu irmão, André, há tanto tempo, e do natal que passei com minha irmã, Maria Aparecida, junto dele no hospital. Ele, com aquela enorme ferida nas costas, vivendo as dores de uma leucemia fulminante. Eu tinha 13 anos na ocasião. Foi quando a morte apresentou-se a mim pela primeira vez. Dali em diante, o tema sempre esteve no centro de minhas atenções.
Relendo agora o livro de Adriana Lisboa, nesse início de manhã do dia 30 de agosto, memórias lindas tomam o meu coração. Adriana tem o dom da palavra e a capacidade de sintetizar sentimentos que são também os meus.
Adriana diz que "talvez não saibamos como transformar a experiência do luto numa experiência coletiva - sobre a qual se fala, que se vive abertamente, sem que seja preciso pedir desculpas pelas lágrimas que vêm"
O bonito na reflexão de Adriana, que há mais de vinte anos é budista e se define como agnóstica, é o toque da alegria. Perdeu em intervalo pequeno sua mãe e seu pai. Quis, porém, apesar da dor, conservar viva a alegria. Depois da perda dos pais, Adriana quis vestir roupas de cores vivas: "Acho que por isso quis vestir roupas claras e alegres no velório da minha mãe e, sete anos e meio depois, no de meu pai (minha família fez o mesmo)".
Em certa parte do livro, ela fala do anseio impossível cantado por Bob Dylan para seu filho, nos anos 1970: "Forever young". Pensa na canção e na ilusão de Dylan em querer para o filho uma juventude eterna. Nada mais do que o "anseio pelo impossível". Não há cura para a incompletude. São reflexões de Adriana que tem a marca viva e realista do budismo, para mim imprescindível.
A mãe de Adriana tinha morrido antes do pai, num intervalo de seis meses e dezoito dias. Tinha sido vítima de um câncer. Seu pai morreu depois, em decorrência de complicações da Covid, em 20 de agosto de 2021.
Lindas foram suas palavras para o pai no CTI, três dias antes de sua morte. Entre outras coisas disse a ele a importância de ir "às palavras simples, às palavras de dentro, às palavras-cicatrizes".
Adriana, de forma linda, fala da arte japonesa do kintsugi, "que consiste em colar com laca e pó de ouro os objetos de cerâmica quebrados". É uma bela arte que sublinha com apreço o "caráter transitório e imperfeito de tudo". Como diz Adriana, "não se cola um vaso quebrado de cerâmica de modo a fazer sumir as marcas do acidente, mas sim de modo a sublinhá-las, fazê-las reluzir, resplandecer".
Com a memória dessa arte, Adriana viveu com tranquilidade e emoção a passagem de seu pai, como tinha vivido antes a passagem de sua mãe.
Adriana decidiu viver o luto com cores alegres. Ela e os irmãos decidiram por um caixão simples. E reflete: "Oxalá fosse possível chegar ao dia de nossa morte com a roupa do corpo e nada mais". E completava com a amiga: "e um copinho de cachaça e um bom fuminho". Acrescenta, que nós complicamos tudo, mesmo na hora da morte. E indaga sobre a hipótese de se viver esse momento de forma menos pesada.
E entender a vida, com tranquilidade, sabendo com clareza de sua impermanência. E aqui novamente a arte japonesa: "É possível viver em paz num estado de antiautoajuda. Com cicatrizes luminosas, sem a obsessão da cura, sem a obsessão de que tudo tenha que parecer novo e perfeito".
Magnífica a reflexão de Adriana. Penso da mesma forma.
No caso de seus pais, lembra Adriana, já estavam quase fazendo 60 anos de casados. Um tempo antes, tinham decidido casar-se de novo, no meio da rua, no pandemônio do Largo do Machado. Ele pediu a ela novamente em casamento e trocaram alianças. Comenta Adriana:
"Para passar mais de sessenta anos com alguém, é preciso, eu suponho, entender essa ´pureza da improvisação`. Improvisação da vida que vai, também, retirando. Das cicatrizes que não têm como ser apagadas. Esse singelo kintsugi do dia-a-dia."
Adriana lembra uma bela passagem do livro de Rosa Montero, em que ela diz:
"Contar-nos o que fomos um para o outro, dizer-nos todas as palavras belas e necessárias, construir pontes sobre as fissuras, limpar a paisagem das ervas daninhas. E há que se talhar esse retrato redondo na pedra sepulcral da nossa memória".
Adriana reflete também, pertinentemente, sobre a importância de não querer "imortalizar" nossos nomes: "Deixar um feito ou uma obra que sobreviva por um pouco mais de tempo, com o nosso carimbo? Que bobagem".
Adriana tem razão, também na sua crítica a essa loucura que ocorreu na pandemia entre alguns de querer fazer perdurar tudo: uma tendência quase obrigatória em querer "gravar tudo, de guardar tudo, o registro audiovisual de todas as palestras e encontros virtuais de que participamos"... Como se tudo tivesse que, necessariamente, conter nossa "pegada indelével"!
Diz com razão Adriana, que às vezes "precisamos esquecer" para nos transformar, como fazem as borboletas esquecendo os casulos. Vivemos, sim, num "caráter cruzado`de existências: "Gente, pedra, rio, planta, palavra, tudo que existe pode estar sob a condição de encantamento ou desencantamento". E saber, com a lembrança bonita das palavras do suave monge vietnamita Thich Nhat Hanh, que todos "vamos nos encontrar sempre nas miríades de caminhos da vida".

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