Viver na Presença, entre as coisas
Faustino Teixeira
IHU / Paz e Bem
Numa das leituras da liturgia do dia 31 de julho de 2022 há uma passagem da carta de Paulo aos Colossenses que me fez refletir e discernir de modo crítico.
Dizia: "Aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres" (Cl 3,2)
No contexto da leitura podemos entender que o apóstolo fala das coisas negativas que estão ao nosso redor no tempo: "a imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça"
Vendo sob esse ângulo, podemos até entender. O perigo, porém, é cair no dualismo problemático que nos faz rechaçar o chamado da terra. Não acredito que devamos fazer morrer o que em nós pertence à terra. O que precisamos, sim, é saber reconhecer na Terra o bonito espaço da experiência de Deus, do Mistério ou do Nada, como nos dizem os budistas e místicos.
Teilhard de Chardin, em seu Meio Divino, fala-nos da importância da educação do olhar: saber ver[1]. O místico nos convoca a perceber com serenidade que o grande Mistério "nos espera a cada instante da ação, na obra do momento"[2].
Na sua Missa sobre o Mundo, Teilhard agrade a Deus por conduzir seu olhar "à imensa simplicidade das coisas"[3], das coisas que estão aí, que tem seu grande valor em si, mas que podem também expressar as grandezas de Deus. De forma tão linda, ele diz que sobe para o Espírito que lhe sorri "vestido com o esplendor concreto do Universo"[4]. O místico jesuíta tinha uma simpatia profunda, irresistível, por tudo aquilo que se movia na matéria obscura[5].
Daí a beleza de, na contramão do problemático dualismo grego, recuperar a ideia de Diafania de Deus no universo, que possibilita perceber "na profundidade de todo fato e de todo elemento o calor luminoso de uma mesma Vida"[6].
A pureza, nos diz Teilhard, "não está na separação, mas numa penetração mais profunda no Universo". É preciso, diz ele, "ver, tocar, viver na presença, beber a existência quente no próprio seio da Realidade"[7].
Ainda tocado pela inconformidade da expressão paulina, recorri também a Rubem Alves, no lindo texto "Sobre Deuses e caquis"[8]. Para ele, a teologia "é uma brincadeira, parecida com o jogo encantado das contas de vidro"[9], como trabalhado por Hermann Hesse.
Beleza é poder sentir com o "tremor na carne" quando nela acontece a magia da presença do poema. Não há como falar de Deus, nos lembra Rubem Alves, "mas podemos falar sobre as coisas humanas". A teologia não são senão "os poemas que tecemos como redes sobre a saudade de algo cujo nome esquecemos"[10].
Nós teólogos devemos ser contagiados pela humildade: não ser como o galo que imagina que com seu canto é que brota a verdade. Deus, em verdade, está muito além dos seus discursos movediços. Deus não é uma realidade "que muda de ideia ou muda de ser ao sabor das coisas que nós pensamos e dizemos"[11]. Deus é sempre maior, alertam-nos os místicos sufis.
Ainda com base no texto de Rubem Alves, sabemos que o que Deus mais admira é essa Terra. Citando Adélia Prado, Alves sublinha: "Depois da morte... eu vou querer o prato e a fome, um dia sem tomar banho, a gravata pro domingo de manhã... Quando eu ressuscitar, o que quero é a vida repetida sem o perigo da morte, os riscos todos, a garantia; de noite estaremos juntos, a camisa no portal. Descansaremos porque a sirene apita e temos que trabalhar, comer, passar dificuldades, com o temor de Deus, para ganhar o céu"[12].
[1]Pierre Teilhard de Chardin. O meio divino. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 33.
[2]Ibidem, p. 32.
[3]Pierre Teilhard de Chardin. Hino do universo. São Paulo: Paulus, p. 27.
[4] Ibidem, p. 29.
[5]Ibidem, p. 21.
[6]Ibidem, p. 29.
[7]Ibidem, p. 68.
[8]Rubem Alves. Sobre deuses e caquis. In: Edin Sued Abumnsur et alii. Sobre deuses e caquis.Teologia, política e poesia em Rubem Alves. Comunicações do ISER, n. 32, 1988.
[9]Rubem Alves. Sobre deuses e caquis, p. 10.
[10]Ibidem, p. 11.
[11]Ibidem, p. 13.
[12]Ibidem, p. 18.
Nenhum comentário:
Postar um comentário