quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

A dificuldade de Maria Homem Comer Caetano

 A dificuldade de Maria Homem comer Caetano

 

Acordei hoje, 06/12/2022, lendo com atenção o texto de Maria Homem publicado na Folha de São Paulo: “Caetano canta Gospel com pastor no Brasil que celebra a Farofa da Gkay”[1]. Percebo que há um ar de “inquietação” nos segmentos acadêmicos com a decisão de Caetano Veloso gravar uma canção gospel. Vejo isto estampado nos jornais de hoje. E então veio o texto de Maria Homem, com a explicitação de um certo estranhamento com o que vem ocorrendo com Caetano.

 

O texto provocou-me indagações interessantes, nesse início da alvorada. Creio que não só Maria Homem, mas tantos outros psicanalistas que foram formados com um visão freudiana tradicional, mesmo que depois expandida com outros desdobramentos da psicanálise, e penso aqui em Lacan, ainda estão bem centrados na ideia da religião como alienação ou impedimento para a experiência integradora de si, desligada de véus transcendentais protetores. E aqui cabe a ideia de Peter Berger de “dossel sagrado”.

 

Por muito tempo lecionei antropologia da religião aqui em Juiz de Fora, e foi uma experiência bem interessante, junto a alunas e alunos de serviço social da UFJF. Peter Berger foi dos autores que mais utilizei no curso, tendo servido de inspiração para organizar uma obra mais ampla sobre sociologia da religião, que foi publicada pela editora vozes, com diversas edições[2]. O meu texto ali era sobre Berger e a religião (aliás o meu texto mais buscado em meu blog[3]). Uma das frases mais interessantes desse sociólogo do conhecimento é que a religião “é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo”[4]. Pude trabalhar um tema complexo, num ambiente acadêmico profundamente marcado pela visão marxista, e encontrar uma acolhida bonita tanto entre discentes e docentes.

 

Em minha formação de filosofia e ciências da religião, outro autor muito importante foi Paul Tillich. Desde a minha graduação em ciências da religião, ele era o autor indicado no curso de filosofia da religião. Com Tillich veio o fortalecimento de uma ideia bem mais rica de religião, entendida por ele como algo relacionado a uma “infinita e inexaurível profundidade e base de todo o ser”, como aquilo que nos concerne de forma mais íntima, de nossa “preocupação última”[5]. Dele também, Tillich, a linda ideia das religiões como “fragmentos” ambíguos e limitados, tocadas por uma “Presença Espiritual”, esta sim, livre de ambiguidades[6]. Ligado a tudo isso, o importante conceito tillichiano de “princípio protestante”, que indica “a superação da religião pela Presença Espiritual”, visando trabalhar criticamente essa ambiguidade presente na religião[7].

 

Esse tipo de reflexão mais sociológica e teológica, escapa a Maria Homem. Ele permanece ancorada na visão tradicional tratada nos cursos de psicologia e psicanálise, que são profundamente carentes de um estudo mais sério sobre religião, mística e espiritualidade. Ela reconhece em seu texto que está lidando com um “assunto delicado”, e isso é bem legal, mas quando vai abordar o tema, segue o caminho tradicional da psicanálise. É muito “rasteira” a ideia de que a religião simplesmente segue “as mentalidades das épocas”. 

 

Vejamos a argumentação levada por Maria Homem em seu texto: “No mundo capitalista todos aprendemos que a vida terrena tem valor e que não é pecado ter sucesso”. Foi uma ideia que como ela diz, firmou-se na pós-Reforma. Diante da incerteza da existência de Deus, o “melhor negócio” que se encontrou para lidar com essa “falta” foi “organizar sistemas de proteção aqui na Terra”, uma rede que foi ficando “vasta e impessoal”, sob responsabilidade do Estado. 

 

E isto foi se revelando também frágil. Diante do impasse, a solução encontrada, segundo Maria Homem, foi retornar às redes de proteção anteriores ao Estado moderno, como a família, os amigos e as comunidades religiosas. O potencial das igrejas evangélicas hoje no Brasil evidenciaria sua plausibilidade em exercer o cuidado que falhou ao Estado exercer.

 

Como boa agnóstica, Maria Homem sublinha os profundos valores que para ele estão presentes no usufruir livremente das belezas da vida profana. E reitera a importância de curtir a alegria do corpo e da sexualidade sem os impedimentos impostos pelas religiões. 

 

Ela reconhece que essa fixação na imanência pode ter seus prejuízos, causando em casos concretos sofrimento, tédio, solidão e desilusão. Ela diz: “Hoje sabemos que a busca sedenta por prazer pode causar desprazer e ser um imperativo superegoico de gozo”. Ao mesmo tempo, alerta para o risco de voltar a um tempo pregresso de repressão patriarcal, o que não seria nada bom.

 

Diante de tudo isso... a decisão de Caetano cantar Gospel!!! Tudo isso perturba Maria Homem e provoca sua reflexão e, diria, sua visão real do mundo. Ela se coloca à disposição para, como Adriana Calcanhoto, buscar entender Caetano, “comer Caetano, deglutí-lo, mastigá-lo”. Porém, a solução que ela encontra é a mais tradicional dentro da lógica da psicologia. E cito:

 

“Nas próximas décadas talvez ainda precisemos de pastores, normas e igrejas. Mas o movimento histórico macro caminha em outra direção. Como sabemos, feliz ou infelizmente, os deuses estão mortos. Eu tenho de cuidar de mim e tecer a rede que cuidará de mim e dos outros. O pai está mais fraco e equivocado do que nunca, e o capital, cada vez mais perverso e sedutor”.

 

Assim como Peter Berger reviu com rigor sua visão sobre a secularização da sociedade, defendendo ao fim da vida a ideia da força da religião na sociedade[8], e espantoso crescimento do Islã e do Pentecostalismo, seria também interessante que Maria Homem tentasse ler com mais calma as reflexões que estão sendo gestadas neste campo, mostrando a força do fenômeno religioso no mundo atual. Muito curto dizer que “os deuses estão mortos”, ou que “o movimento histórico macro caminha em outra direção”. De onde ela tirou isso, me pergunto...  Na realidade,  o que vemos por todo lado, aqui no Brasil de forma muito particular, é uma “explosão de Deuses” ou de formas de vida espiritual. Vemos, ao contrário do que aponta Maria homem, cada vez mais pessoas que buscam se relacionar com o “outro mundo”, para utilizar uma expressão de Roberto da Matta. 

 

Penso que também seria muito útil à autora recorrer a tantos estudos também publicados aqui no Brasil mostrando os traços novidadeiros das reflexões envolvendo religiões e espiritualidades, que mostram o profundo reconhecimento do valor da imanência e do cotidiano, e dos valores do cotidiano, na tessitura da vida espiritual. 

 

Essa ideia de que a religião é um impedimento ao reconhecimento da “vida profana”, já foi ultrapassada há muito tempo em diversas compreensões de vida e prática religiosa, como podemos ver, por exemplo, na teologia da libertação e outras que se revigoram hoje, com a bonita valorização dos sentidos. Essa é a dica que dou a Maria Homem para aperfeiçoar o seu quadro visual e, então, quem sabe, conseguirá comer Caetano.

 

 



[2]Faustino Teixeira (Org). Sociologia da religião. Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003.

[4]Peter L. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 41.

[5]Paul Tillich. Teologia sistemática. 5 ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005, p. 219; John A.T. Robinson. Um Deus diferente. Lisboa: Herder, 1967, p. 55s.

[6]Paul Tillich. Teologia sistemática, p. 594.

[7]Ibidem, p.687-688.

[8]Peter L. Berger. Os múltiplos altares da modernidade. Rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 9-11.

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