Francisco e os novos desafios do tempo
Faustino Teixeira
Sou um fiel defensor do papa Francisco, e pude testemunhar esse meu encanto em diversos artigos e inúmeras postagens aqui no Facebook. Trata-se, sem dúvida, da maior autoridade moral que temos hoje na humanidade. Há um lindo e compromissado repertório de falas do papa Francisco que são verdadeiros sinais para os nossos tempos conturbados.
Isso não me tira o direito, como teólogo, de pontuar uma vez ou outra alguma incongruência segundo minha particular ótica. Ultimamente levantei duas questões a respeito de seus textos que merecem uma reflexão mais aprofundada.
1. A visão de Francisco sobre o antropocentrismo, que acaba não tirando todas as consequências que a perspectiva crítica ao termo envolve. Na Laudato si (LS), sua carta encíclica sobre o cuidado da casa comum, Francisco levanta importantes questionamentos ao "excesso antropocêntrico", ou ainda ao "antropocentrismo desordenado", mas mantém vigente o antropocentrismo cristão. Penso que essa visão teria que ser melhor matizada, já que importantes campos da reflexão contemporânea fazem críticas contundentes ao excepcionalismo que acaba acompanhando o antropocentrismo. Em importante simpósio ocorrido na Instituto Católico de Paris, o antropólogo Viveiros de Castro fez uma pertinente crítica a esse passo da Laudato si, e deveria ser recuperado.
Vejo hoje como problemática qualquer ideia que vincula uma superioridade do humano sobre as outras espécies do mundo animal, vegetal ou mineral. Somos todos parte do todo, com singularidade, sim, mas nunca com superioridade. Daí a minha reação crítica a Francisco quando sublinha na LS 119 que o pensamento cristão reivindica para o ser humano "um valor peculiar acima das criaturas". Não concordo com isso. E reforço minha reflexão com as próprias palavras de Francisco na mesma encíclica quando sublinha a importância de um despertar para "uma nova reverência perante a vida" (LS 207). Trata-se de levar a sério a ideia de que "nós mesmos somos terra" e estamos intimamente emaranhados na teia da criação, estreitamente "interligados" (LS 16, 42, 91, 92 e 117).
Francisco defende o conceito que situa o ser humano como "senhor do universo" ou "administrador responsável do mesmo". Com base em reflexões recentes de Oswaldo Giacoia Junior (veja IHU-Ideias n. 326, 2021), diria que os seres humanos não são "senhores dos entes" mas "pastores do ser". Essa é a nossa singularidade e responsabilidade, que raramente vem sendo exercida com dignididade, nesse tempo dos homens-humanos. Baseando de Hans Jonas, Giacoia retoma a crítica ao antropocentrismo, resguardando porém a singularidade do humanismo e o valor da dignidade humana, sem cair em excepcionalismos problemáticos.
2. A visão de Francisco sobre o valor da paternidade: ter ou não ter filhos no tempo atual. Sua visão é fundada numa perspectiva específica da teologia moral, no campo da sexualidade. Mas ainda é refém de uma certa visão cristã sobre a sexualidade que deixa margem pertinente para a crítica atual.
Vejo como extremamente problemática a ideia de que a "negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade". Foi o que disse Francisco na audiência geral do dia 05 de janeiro de 2021 no Vaticano. São inúmeras as razões que movem pais ou mães a optarem por levar uma vida sem filhos. Não há como fazer juízos de valor a respeito de decisões que são pessoais. Algum preferem adotar animais, e não vejo problema nisso. O problema não está na valorização da relação com os animais, mas no excesso que se filia a mercantilização dos pets. Mas isso também acontece no trato com as crianças. Francisco fala da importância de casais que não podem ser pais valorizar mais a "adoção" de crianças, ainda que o termo "adoção" não seja o mais adequado para alguns.
Quando pude rever as críticas à posição de Francisco a respeito, como a presente no texto de Ruth Aquino no O Globo de 07 de janeiro de 2021, entendo plenamente a insatisfação ali contida. Diz Ruth, com razão, que cansa de ver "tios e tias mais humanos do que muitos pais e mães, que não sabem dar amor ou educação". Ela assinala que essa "santificação feminina" traz consigo uma "face perversa", pois com uma visão dogmática acaba-se por vetar às mulheres o direito sobre o seu próprio corpo. É complicado viver num mundo onde juízes e padres decidem pelas mulheres, diz a autora com razão.
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