quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O Natal com o menino que mora na nossa aldeia

 

O Natal com o menino que mora na nossa aldeia

Faustino Teixeira


Sempre fui um apaixonado pelo Cântico dos Cânticos. Talvez seja uma das mais lindas declamações de amor presentes nas Escrituras. Um dos grandes conhecedores desse precioso livro, Gianfranco Ravasi, sublinha que "o amor pode assemelhar-se a um espelho d´água iluminado pelo sol". O Cântico nos convida a deixar-se hospedar por esse sol, a acolher o amor assim transfigurado que ilumina o caminho dos amigos.

Nesses dias que antecipam o Natal, lemos com alegria uma das mais lindas passagens do Cântico dos Cânticos, que trata justamente da Natureza, da beleza da "luminosa estação primaveril". Estamos diante de uma linda e impressionante vegetação que se irradia como perfume no jardim do Cântico.
Vemos no canto um amado que colhe açucenas e o seu aspecto é o do Líbano. É ele quem põe a mão na fenda da porta e todas as entranhas se estremecem; é ele que rouba o coração com "apenas um de seus olhares". Ele nos convida a embriagar-nos com sua presença.
Para ele, a amada é bela em sua singularidade, com seus olhos de pomba e o cabelo como rebanhos de cabras, com uma fala melodiosa que encanta.
O leito dos dois amantes "é só verdura" e as vigas da casa são de cedro, a árvore sagrada. E ele repousa com tranquilidade nos seios de sua amada. Ela diz, com alegria: "Meu amado é meu e eu sou dele". Quando ela encontra "o amado de sua vida", não o solta mais: agarra-o com firmeza!
Mas onde aprenderam a amar?
Aqui se desvela um núcleo poético maravilhoso do Cântico, quando os amados aprendem os segredos da relação com a Natureza:
"Vem, meu amado,
vamos ao campo,
pernoitemos sob os cedros;
madruguemos pelas vinhas,
vejamos se a vinha floresce,
se os botões estão se abrindo,
se as romeiras vão florindo:
lá te darei meu amor...
As mandrágoras exalam seu perfume;
à nossa porta há de todos os frutos:
frutos novos, frutos secos,
que eu tinha guardado,
meu amado, para ti".
Nada mais lindo do que esse trecho do livro sagrado, que mostra que o aprendizado do amor se dá no "deixar-se" embalar pelo ritmo e pelo tempo da Natureza. Ali se encontra o melhor aprendizado do amor.
Em conversa ontem com o querido Mauro Lopes, num programa especial de Natal do Paz e Bem, que vai ao ar no início da manhã do dia 24 de dezembro de 2021, falava dos três principais aprendizados do amor, com base em trecho do poema Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro.
Falava do Natal como acolhida desse menino que mora na nossa aldeia, da "Criança Nova que habita onde vivo", da criança que de tão humana só pode ser divina. Aquela linda criança que nos dá uma de suas mãos e a outra abraça tudo o que existe. O Natal é essa festa que celebra a "Eterna criança, o deus que faltava". É quando nos deparamos com esse "humano que é natural", com esse "divino que sorri e brinca", o "Menino Jesus verdadeiro".
Com essa criança todos nos damos bem, na "companhia de tudo".
Com a inspiração dessa criança falei de três coisas essenciais para mim neste natal:
Em primeiro lugar, o toque da alegria. É uma festa que deve ser a alegria que se saboreia; aquele alegria que foi de Maria e Isabel, as duas grávidas, que dançam celebrando a presença da vida no mundo interior. Uma alegria tamanha, que o menino de Maria pulava alegre em seu ventre.
É a mesma alegria expressa pelo anjo aos pastores anunciando o nascimento de Jesus: uma alegria que não se restringe a poucos mas que se irradia para todos.
Em segundo lugar, o Natal nos inspira a reconhecer e festejar a inter-ligação que une todas as coisas num mesmo tecido comum. Somos todos parte desse Todo que nos envolve. É a festa que nos convoca a reconhecer que tudo está interligado na Terra, e que tudo é objeto da "carícia de Deus", como diz sabiamente o papa Francisco. Estamos diante do mistério de uma Presença que se manifesta da folha, na vereda, no orvalho e no rosto do pobre.
Em terceiro lugar, a reverência para com a vida que pulsa em toda parte, somos convidados a um momento de interiorização, de trabalho interior visando acolher esse dom de gratuidade.
Que o Natal possa ser esse espaço especial e cuidadosamente reservado para "recuperar a harmonia serena com a criação", fortalecer o laço essencial com os outros, sobretudo os mais excluídos e adoentados, os tristes e os solitários. Preenchidos pela paz interior seremos capazes de hospitalidade, de acolhida e de cuidado. Também de atenção aos mais simples gestos do cotidiano, quando então poderemos quebrar a "lógica da violência, da exploração e do egoísmo", como diz tão bem Francisco.
Por fim, que saibamos com o Natal dizer sempre e em todos os lugares lindas "palavras de amor". Isso nos mostrou há tanto tempo o mestre Dôgen, da tradição Soto Zen: "De geração a geração, de existência em existência, não se esquecer jamais de pronunciar palavras de amor".
Diz Dôgen que quando recebemos palavra de amor nossos rostos se iluminam de alegria e o nosso coração se preenche de contentamento.
Isso é Natal, isso é alegria, isso é vida.

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