Malhas da Hospitalidade[1]
Fabrics of Hospitality
Resumo
O século
XXI depara-se com um dos desafios mais candentes de todos os tempos. Como
reagir aos impasses que acompanham o ciclo do Antropoceno, com todas as suas
consequências nefastas e necrófilas ? Duas possibilidades se apresentam: a
conformidade diante da situação ou a reação crítica e profética, com base na
esperança da hospitalidade e do diálogo. Num tempo marcado pelo crescimento dos
etnocentrismos, xenofobismos e fundamentalismos, a provocação do diálogo e da
acolhida ao outro urge com um significado único. Diálogo e Hospitalidade são
expressões que se interagem e complementam.
Diante do quadro atual, marcado pelo apelo da interligação, há que
ampliar as malhas dessa acolhida, envolvendo não apenas os humanos, mas abrindo
o leque para a dimensão mais ampla de toda a criação. O ser humano está
relacionado, está vinculado na rede maior que tece o universo. Habitar a Terra
ganha, assim, um significado novo, de inserção do humano no mundo da vida.
Palavras-Chave: Hospitalidade;
Diálogo; Cuidado; Espiritualidade; Interligação
Abstract
The 21st century faces one
of the most singular challenges of all times. How to react to the obstacles
that follow the cycle of the Anthropocene, with all its disastrous and putrid
consequences? There are two possible ways: acceptance of the situation or the
critical and prophetic reaction, that lies on the ground of hospitality and
dialogue. When ethnocentrism, xenophobia and fundamentalism grow, dialogue and
acceptance of the other urge with a special meaning. Dialogue and Hospitality
are expressions that interact and complement each other. Facing the current
situation that is asking for interconnection, we must broaden the fabrics of
this reception, including not only human beings, but opening the scope to a
wider dimension of all creation. Humankind is related, is linked to a larger
web that weaves the universe. Inhabiting the Earth gains a new meaning, to be
part of life itself.
Key words: Hospitality; Dialogue; Care; Spirituality; Interconnection
Introdução
O diálogo e a hospitalidade traduzem o
desafio mais essencial nesse século XXI. Deixar-se hospedar pelo outro, com
todos os desdobramentos aí envolvidos, é o caminho que se abre nesse tempo
sombrio das afirmações identitárias e dos fundamentalismos nefastos. Para
tanto, firma-se o passo do diálogo. Dizia com vigor o teólogo suíço Hans Küng,
no final do século passado, que a paz no mundo implicava a paz entre as
religiões, e que a paz entre as religiões era pressuposto para o diálogo entre
as religiões (KÜNG, 1992, p. 7). Esse projeto de calor ecumênico veio assumido
com empenho pelo papa Francisco. Em sua visita ao Brasil, em julho de 2013,
assumiu seu papel protagônico nesse campo. Em discurso no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro, traduziu a convocação que o move: diálogo, diálogo, diálogo. A
nobre palavra, repetida por três vezes, como forma de expressar o único caminho
que se abre para o crescimento de uma sociedade e das pessoas. Estava lançado o
seu projeto em favor de uma “cultura do encontro” (PAPA FRANCISCO, 2013, p.
82-83). Mais recentemente, em entrevista concedida ao jornal El País, volta a
insistir no diálogo, num momento histórico sombrio, quando lideranças
conservadoras vão assumindo a rédea de muitos países. Sublinha que em tempos de
crise o discernimento tende a falhar. Busca-se em várias partes um “salvador”
que resgate a identidade, protegendo as fronteiras com muros e arames farpados
e realçando a diferença com os outros povos. O medo do terrorismo e dos
atentados acaba provocando uma reação contra os estrangeiros, os diferentes, e
suscitando o controle rígido das fronteiras. Francisco reconhece o direito
desse controle, mas reage contra sua radicalização, insistindo no caminho do
diálogo: “Nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do diálogo com os
vizinhos” (PAPA FRANCISCO, 2017)
Na mesma linha dialogal, o posicionamento do
estudioso palestino, Edward Said, na sua contundente crítica à visão de Samuel
Huntington, autor de polêmico artigo sobre o “choque das civilizações”,
publicado no verão de 1993. Foi a visão que predominou em determinados segmentos do mundo,
indicando que as
civilizações são homogêneas e monolíticas. Para Said, é um
posicionamento que acaba mobilizando as paixões nacionalistas e seus frutos
mortíferos. Ideólogos como Huntington acabam transformando as “civilizações” e
“identidades” em algo que não são, ou seja,
entidades fechadas, lacradas, que foram
expurgadas da miríade de correntes e contracorrentes que animam a história
humana, e que ao longo dos séculos tornaram possível para essa história incluir
não apenas guerras de religião e conquista imperial, mas também ser uma
história de trocas, fertilização mútua e compartilhamento (SAID, 2003a, p. 43).
Quando se acentua o “choque de
civilizações” ou culturas, apaga-se o traço silencioso, mas muitas vezes
efetivo, do intercâmbio e diálogo que anima os povos em seu processo de
afirmação. Como apontou Said, “as culturas são em geral mais naturalmente elas
mesmas quando entram em parceria com outra” (SAID, 2003b, p. 330). Esse
empreendimento cooperativo se dá em vários setores, como na música e nas artes
em geral. Trata-se de um espírito essencial, envolvendo a cooperação e o
intercâmbio. É também um compromisso existencial, como expresso por buscadores
singulares, entre os quais Louis Massignon e tantos outros, que fizeram de sua
vida uma peregrinação no terreno da alteridade. Fora desse caminho não há
futuro promissor, mas apenas o bater estridente e superficial da defesa cega da
cultura das particularidades contra todas as demais.
A acolhida da diversidade e do pluralismo não é
algo simples ou natural, mas envolve um esforço e uma dedicação particulares.
Abraçar o pluralismo como um valor é um dom presente entre alguns “virtuosos”,
pois a maioria das pessoas vive uma resistência surda ou ativa contra tal
desafio, pois o mundo plural provoca nelas insegurança e temor. Nada mais
complexo do que um “mundo confuso e cheio de possibilidades de interpretação”,
um mundo que abre diferentes possibilidades de vida (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.
54).
A hospitalidade envolve uma gama de intrincadas
relações, e diz respeito à acolhida do outro e da aceitação da diferença. É um
tema chave na abordagem relacional entre os seres humanos. O objetivo proposto
neste artigo é reconhecer a força desta dinâmica mas indicar os novos desafios
que envolvem esta temática, ampliando as cordas da hospitalidade, de modo a
incluir o traço da interligação com toda a dinâmica da criação. Daí se falar em
novas malhas da hospitalidade.
1 Hospitalidade e Diálogo
Há uma relação mútua entre
hospitalidade e diálogo. O diálogo requer hospitalidade. O diálogo está para
além de uma mera coexistência, envolve o reconhecimento e o respeito pelas
diferenças, bem como o lugar das convicções. Nas relações que se estabelecem entre
os interlocutores ocorre a busca de “um conhecimento mútuo e um recíproco
enriquecimento” (PCDI, 1991, p. 11).
O diálogo verdadeiro envolve uma acolhida do
pluralismo religioso[2].
Para tanto, busca-se superar a ideia limitada de que o pluralismo religioso é
um fator negativo ou passageiro, fruto de uma compreensão equivocada da
realidade ou de uma percepção maculada do religioso. É uma proposta que supera
a visão tradicional e recorrente de que a religião particular é a única
verdadeira e que as outras tradições não passam de expressões limitadas do
divino ou no máximo antecipações ou marcos de espera de uma verdade que não
está a seu alcance. Semelhante perspectiva acaba por entender o pluralismo
religioso como um dado de fato, contingente ou passageiro, a ser “aturado” ou
dizimado pelo trabalho missionário. Em sua Carta
a um religioso Simone Weil expressou com clareza sua dificuldade em acatar
tal perspectiva:
A religião católica contém
explicitamente verdades que outras religiões contêm implicitamente. Mas,
reciprocamente, outras religiões contêm explicitamente verdades que só são
implícitas no cristianismo. O mais instruído cristão ainda pode aprender muito
sobre as coisas divinas em outras tradições religiosas, embora a luz interior
também possa fazer com que ele perceba tudo através da sua. Contudo, se essas
outras tradições desaparecessem da superfície da Terra, seria uma perda
irreparável. Os missionários já fizeram desaparecer demasiadas (WEIL, 2016, p.
21-22).
Para Simone Weil, o sentimento de respeito
e acolhida das religiões era uma questão de honestidade e honradez. Sua
abertura à beleza do mundo e à totalidade da criação envolvia a receptividade
interreligiosa. Já anunciava, assim, em meados de 1950, um tema que ganharia
presença na teologia posteriormente, com a abertura ao pluralismo de princípio
ou de direito. Trata-se de um pluralismo acolhido por Deus em seu mistério,
enquanto expressão mesmo de sua vontade, que “necessita da diversidade das
culturas e das religiões para melhor manifestar as riquezas da Verdade última”
(GEFFRÉ, 2006, p. 137). Não há como apagar o mistério que habita na pluralidade
dos caminhos que levam a Deus (GEFFRÉ, 2005, p. 21). Há algo de irredutível e
irrevogável nas religiões, que não pode ser sumariamente reduzido a um
implícito cristão.
É verdade que as religiões como tais são envolvidas
também por situações de ambiguidade e limitação. Há que manter sempre aceso o
discernimento, reconhecendo que nem tudo que brilha nas religiões é fruto da
graça (PCDI, 1991, p. 23). Mas o caminho que se abre não é o de firmar
simplesmente as diferenças, mas o de indicar a dignidade das singularidades e
originalidades e não simplesmente reiterar uma assimetria. É desconhecer e
macular a extraordinária diversidade das tradições religiosas querer delas
conservar como valor simplesmente o seu potencial de abrir-se positivamente
àquilo que ignoram (DUQUOC, 2008, p. 168). Em sua exortação apostólica, Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do
evangelho no mundo atual, o papa Francisco sublinhou com ênfase que “a
diversidade é bela”, acolhendo assim esse campo novo e audaz de abertura ao
pluralismo de princípio (PAPA FRANCISCO, 2013b, p. 130).
2 Disposições para o diálogo
A acolhida inter-religiosa requer do sujeito um
leque de disposições que são essenciais. Para que ocorra um diálogo autêntico é
necessário, em primeiro lugar, alimentar a vida com uma atitude de busca
essencial e profunda. Partir sempre animado pela convicção de que se está
trilhando um caminho “em solo sagrado” (PANIKKAR, 1993, p. 1149). O outro é
portador de um “patrimônio religioso” que não pode ser relevado ou minimizado.
A busca de um contato estreito e desarmado com o outro é também um requisito
essencial:
Uma justa avaliação das outras
tradições religiosas supõe normalmente um estreito contato com elas (...).
Devemo-nos aproximar destas tradições com grande sensibilidade, porque encerram
valores espirituais e humanos. Exigem respeito da nossa parte visto que, no
curso dos séculos, deram testemunho dos esforços feitos para encontrar as
respostas ´aos mais árduos problemas da condição humana`(NA 1) e expressão à
experiência religiosa e às expectativas de milhões de adeptos seus, e continuam
a fazê-lo hoje (PCDI, 1991, p. 13).
Há que partir animado por esse
“espírito do diálogo”, que envolve uma atitude primeira de respeito e amizade.
E também o reconhecimento sincero do “valor da convicção religiosa” do outro,
fundada numa experiência autêntica de revelação (TILLICH, 1968, p. 133). Como
mostrou Christian Sevenaer, um dos mais singulares buscadores jesuítas, com
longa atuação dialogal no Egito com os muçulmanos, o respeito ao outro é
condição primeira, ou seja, o respeito pelas pessoas, por suas convicções de fé
e suas tradições religiosas, reconhecendo que ali vivenciam o que há de mais
precioso (SEVENAER, 2006, p. 131). Esse clima espiritual deve circundar todos
os passos do processo de abertura, com a disposição atenta para colocar-se
sempre em discussão. O diálogo não pode ser entendido como alavanca para outra
coisa; não pode ser captado como passo para a evangelização. Na verdade, o
diálogo “tem seu próprio valor”, é auto-finalizado, guarda um valor
intrínseco. A razão do diálogo é o
diálogo e como horizonte visado, “uma conversão mais profunda de todos para
Deus” (PCDI, 1991, p. 28). E isto sucede em todas as formas de diálogo, seja no
diálogo da vida, das obras, dos intercâmbios teológicos e da experiência
religiosa.
Ao lado da busca essencial, o diálogo
requer igualmente uma atitude de humildade. A abertura ao outro exige esse
desprendimento, essa consciência da contingência e da vulnerabilidade. Como
indica Panikkar, “nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nem mesmo toda a
humanidade vivente em dado momento da história pode encarnar a medida absoluta
da verdade” (PANIKKAR, 2013, p. 149). Nada mais letal para o diálogo do que o
sentimento de superioridade, de hybris
arrogante ou de desprezo ainda que escamoteado. O diálogo requer esse
esvaziamento de si, essa kenosis,
para poder deixar valer o outro, esse deslocamento essencial, essa abertura de
coração.
Há também outra disposição importante, que envolve
a simpatia e a atenção para com o outro. Há que se lançar ao outro, expor-se ao
seu enigma e mistério com a cuidadosa aplicação do espírito. Estar atento e
vigilante para adentrar-se nas suas fronteiras, sintonizar-se com a sua vida.
Tem um toque de perigo e de risco nessa aventura, como bem descrito por Thomas
Merton: “Quando as cordas são largadas e o barco já não está mais preso à
terra, mas avança para o mar sem amarras, sem restrições! Não o mar da paixão,
pelo contrário, o mar da pureza e do amor sem preocupações” (HART; MONTALDO,
2001, p. 270). Simone Weil falava da “virtude milagrosa da simpatia”, caminho
essencial para adentrar-se no mundo interior do outro; e também da atenção,
como “a forma mais rara e mais pura da generosidade” (WEIL; BOUSQUET, 1994, p.
13; WEIL, 2000, p. 113). Virtudes que são essenciais para o conhecimento do
outro a partir de dentro, quebrando as hierarquizações problemáticas. Ela
dizia, com acerto, que “aquele que conhece o segredo dos corações é o único que
conhece também o segredo das diferentes formas de fé” (WEIL, 2000, p. 113). A
atenção é porta de entrada para a hospitalidade.
3 O impacto da alteridade
A alteridade vem resguardada por um patrimônio
de mistério que se revela a cada momento, deixando a todo tempo uma
virtualidade a ser captada. Ela sempre desconcerta e seduz. Traduz
primeiramente o mistério da maravilha, que é fascínio e admiração. É quando a
alteridade apresenta-se de maneira substantiva e se dá o impacto com o outro,
com a sua inusitada e improgramável presença. É essa admiração que faculta o
estupor e aciona uma provocação inédita de desarme e abertura. Em sua preleção
sobre a metafísica, em 1929, Martin Heidegger sinaliza esse encontro com a
“estranheza do ente”. A admiração acontece justamente no momento em que essa
estranheza acossa o sujeito, levando à indagação e ao porquê (HEIDEGGER, 1969,
p. 43).
A presença do outro suscita não apenas
maravilha, mas também agonia, na medida em que sua presença provoca desconcerto
e um desvio do caminho seguro até então trilhado (FORTE, 1999, p. 61). É a
outra face da dinâmica da alteridade, que convoca à experiência do limite e da
fronteira, de auto-exposição ao mundo do outro. Os caminhos da hospitalidade
envolvem também esse processo de agonia e estranhamento. Isso foi apontado com
acerto pelo estudioso Alain Montandon, em precioso prefácio ao livro por ele
organizado (MONTANDON, 2011). Para tratar do tema, parte de uma indagação feita
por Ulisses na Odisseia, quando percorria os mares em aventuras que eram testes
de hospitalidade. Quando chegava a uma nova praia, defrontava-se sempre com uma
singular pergunta: “Vou encontrar brutos, selvagens sem justiça, ou homens
hospitaleiros, tementes aos deuses?” (HOMERO, 2011, XIII, vv. 200-2002). A hospitalidade era, assim, um
sinal de civilização e humanidade. Com base no clássico ensaio de Marcel Mauss
sobre a dádiva, Montandon indica que a hospitalidade não se reduz simplesmente
ao oferecimento de um abrigo ou repasto, mas revela-se como um “fenômeno social
total”. O que se partilha “não são apenas bens de consumo, mas cortesias,
banquetes, ritos, danças, festas” (MONTANDON, 2011, p. 32).
A hospitalidade tem início na soleira da porta,
quando se dá o “embate” com o rosto de um desconhecido, de um estranho ou
estrangeiro. Ali se coloca a delicada questão do “limite entre dois mundos”, o
de dentro e o de fora. Trata-se “da linha de demarcação de uma intrusão, pois a
hospitalidade é intrusiva, ela comporta, querendo ou não, uma face de
violência, de ruptura, de transgressão, até mesmo de hostilidade” (MONTANDON,
2011, p. 32). É o que Derrida chamou de “hostipitalidade”, na medida em que
essa dinâmica de encontro/embate sinaliza uma fronteira e mesmo uma ameaça. A
hospitalidade demarca um limiar, ou seja, uma linha que envolve transgressão,
intrusão. Penetrar no domínio do outro
é um problema tanto de proxêmica[3]
quanto de propriedade. ´Território é terra mais terror`. Eis a questão do
próprio, daquilo que constitui minha identidade no pertencimento a um
território, a um espaço em que o outro é visto, de uma maneira ou de outra,
como um intruso (MONTANDON, 2016, p. 35).
O território do outro vem resguardado
por uma “sensibilidade escrupulosa”. Há que bater devagar, com cuidado, na
porta do outro. Entrar no novo circuito requer cautela, delicadeza e atenção.
Há que manter despojamento e renunciar a se impor. O gesto da hospitalidade
pressupõe romper resíduos de hostilidade sempre implicados nos atos que
envolvem o encontro[4].
Isto não significa romper a distância, que permanece vigente: “O paradoxo do
gesto hospitaleiro é o de dever oferecer preservando, de manter a distância
instaurando uma presença” (MONTANDON, 2011, p. 35). Não se trata apenas de uma “acolhida
integradora”, mas também de radical respeito à alteridade, que é irredutível e
irrevogável. Na prática da hospitalidade ocorre a transformação que implica uma
dádiva de si.
Como condição essencial da hospitalidade está o
diálogo, o passo do eu ao nós, do exercício da amizade, que envolve a acolhida
do outro na esfera da intimidade. Há no diálogo um singular exercício de
ultrapassar fronteiras, de avançar para além dos limites de nossa finitude e
contingência. O diálogo deixa sempre uma “marca” que é reveladora de um
horizonte inaudito:
O que perfaz um verdadeiro diálogo não
é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que
ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo (...). O
diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo teve êxito ficou algo
para nós e em nós que nos transformou. O diálogo possui, assim, uma grande
proximidade com a amizade (GADAMER, 2002, p. 247).
Não há caminho promissor senão através
do diálogo, mesmo reconhecendo as dificuldades e tensões que marcam sua
realização. É sempre “um tesouro precioso, uma zona de aventura, espanto e
inquietação” (LUCCHESI, 2014). É uma “zona de passagem”, uma “cartografia
inacabada”, onde os interlocutores são convidados, mantendo sua identidade, a
refletirem sob nova luz. Deslocados de seu eixo são direcionados a um novo
ponto de luz e a um gesto solidário. No centro do diálogo está a acolhida: “na
beleza do rosto que contemplo, no olhar do outro que me indaga e me convida a
mover os lábios” (LUCCHESI, 2014). O diálogo é expressão viva da nobre virtude
da hospitalidade. Ele requer a abertura das portas, do respiro aberto, do
espaço luminoso. É condição essencial para uma cultura da paz.
O encontro com o outro não pode
reduzir-se a um “rebuliço sonoro”, mas deve envolver os corações e mentes num
movimento de amizade e busca de compreensão mútua. Não são individualidades
estanques e impenetráveis que se encontram, mas dois mundos que se envolvem,
ainda que resguardando um mistério que é intransponível[5]. É a
própria individualidade que é convocada a expandir-se e apropriar-se de novas
possibilidades. Não é algo simples, pois envolve um embate interior, de remoção
das entranhas para deixar-se hospedar pelo diferente. Desse encontro
novidadeiro surge sempre algo de novo, uma marca diferencial.
Nesse imprescindível processo dialogal, os
interlocutores entram com a alegria de suas convicções religiosas. Não se exige
a abdicação das identidades para que esse processo se realize com êxito. Ao
contrário, é a própria autenticidade e sinceridade do diálogo que convoca os
parceiros a embarcarem nessa travessia mantendo viva a integralidade de sua
própria fé (TILLARD, 2000, p. 34; PCDI, 1991, p. 32-33). Para exemplificar, o
testemunho vivo do jesuíta e padre do deserto, Paolo dall´Oglio, quando
provocado sobre a sua experiência de diálogo com os muçulmanos no deserto de
Mar Musa (Síria). Indagado sobre seu itinerário, respondeu com tranquilidade:
“Abrimo-nos profundamente à religião muçulmana e à sua civilização, em virtude
da tranquilidade de nossa fé em Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito”
(LUCCHESI, 2000, p. 57). O diálogo
pressupõe pertença e domiciliação, amor à própria identidade, mas uma
identidade sempre em construção, aberta ao sussurro contínuo do plural. Uma das
finalidades do diálogo é “o de poder viver a diferença de modo positivo, no
respeito, na aceitação do outro assim como é, sem violência nem desprezo e sem
dever esconder a diferença” (SEVENAER, 2006, p. 116).
4 Novas malhas da hospitalidade
As novas reflexões em torno da
espiritualidade da criação indicam um caminho novo para o tema da
hospitalidade. Não há como pensar o ser humano desligado de sua relação com o
campo mais amplo. A antropologia requer uma cosmologia. Como mostrou Matthew
Fox, “a história humana não pode ser separada da história planetária, da
história galáxica, e de toda a história da criação que continua a
desenvolver-se” (FOX, 2016, p. 31). O ser humano se define por sua relação com
toda a criação, formando um parentesco que abre frestas singulares para a
dinâmica de sua inserção no mundo. Em sua encíclica sobre o cuidado da casa
comum, Laudato si, o papa Francisco
realça essa sintonia: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn
2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar
permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (FRANCISCO,
2015, p. 3).
Pensar a hospitalidade, e também o
diálogo, dentro deste novo quadro complexivo envolve uma percepção nítida do
que significa habitar a Terra. Entender agora o ser humano em sua
relacionalidade mais radical, como um ser que se move e se articula, e se deixa
transformar. Tudo provoca um novo olhar: “Estar atento significa estar vivo
para o mundo” (INGOLD, 2015, p. 13). E estar vivo é poder captar o “nexo
singular de crescimento criativo” do humano inserido no âmbito dos
relacionamentos. A expressão “malha” é a que melhor traduz a nova situação.
Considerando que a malha implica a textura de fios entrelaçados, esta percepção
aplica-se à vida, que igualmente perfaz uma trilha, ou fios que compõem o mundo
habitado. A vida é pontuada por linhas entrelaçadas que formam uma malha.
Exercer a condição de ser humano é poder habitar a
Terra, reinserindo-se na continuidade do mundo da vida. A textura do mundo
envolve este entrelaçamento. Não se trata apenas de ocupar o mundo, mas de
habitá-lo com sentido. E o mundo deixa de ser visto como um substrato inerte
onde os seres vivos se locomovem, mas como um mundo em movimento:
Onde quer que haja vida, há movimento.
Nem todo movimento, no entanto, indica vida. O movimento da vida é
especificamente o de tornar-se, em vez do de ser, da incipiência da renovação
ao longo de um caminho, em vez do da extensividade do deslocamento no espaço
(...). O sol está vivo devido à maneira como se move através do firmamento, mas
também o estão as árvores, devido aos modos peculiares de seus ramos se moverem
e suas folhas tremularem ao vento, e devido aos sons que emitem ao fazê-lo
(INGOLD, 2015, p. 122).
Essa percepção de um mundo em
movimento, de um mundo “encantado”, vem recuperar cosmologias antigas e
primordiais, com os seus dons e inquietudes. Curioso verificar que o recurso a
tais cosmologias vem sendo apontado por estudiosos da antropologia como um
caminho importante para um novo modo de inserção na história (LATOUR, 2012, p.
452)[6].
A Carta da Terra pontua a importância do reconhecimento e preservação dos
conhecimentos tradicionais, bem como da sabedoria espiritual presente entre os
povos das diversas culturas, como condição essencial para a proteção ambiental
e o bem-estar humano (BOFF, 2002, p. 154).
Em sugestiva abordagem, Tim Ingold fala
da singularidade da ontologia anímica, quebrando a imagem de que o mundo
inanimado seja simplesmente uma superfície a ser ocupada. Na verdade, segundo
tal ontologia, os seres vivos “fazem o seu caminho através de um mundo
nascente, em vez de pela sua superfície pré-formada” (INGOLD, 2015, p. 123). O
desafio maior está na capacidade de VER o mundo nesta perspectiva de vitalização,
abrindo novas pontes para o pensamento. Isto significa reconectar o pensamento
com a vida. A retomada de antigas cosmologias, entre as quais o animismo dos
povos originários, suscita na prática uma “reanimação” da própria “tradição
´ocidental` de pensamento” (INGOLD, 2015, p. 126)[7].
A atuação construtiva no mundo vem
presidida pela habitação. O primeiro e essencial passo consiste em habitar o
mundo. Só depois vem a atividade de construir. Trata-se da perspectiva da
habitação. Não se pode, porém, circunscrever o acontecimento da habitação
humana ao espaço antropocêntrico. Há que pensar o tema de forma mais arejada,
envolvendo toda a criação. Talvez seja um dos limites do pensamento
heideggeriano, como indica Ingold, na restrição da percepção do modo de habitar
o mundo dos animais. Para Heidegger, os animais simplesmente existem no seu
ambiente, mas “permanecem privados de um mundo” (INGOLD, 2015, p. 36).
O que domina a visão tradicional, ainda
muito vigente, é uma separação rígida entre a vida social humana e a natureza.
Com a eco-antropologia relacional rompe-se esta perspectiva e aponta-se para um
horizonte distinto, pontuado pela dinâmica da tessitura e do entrelaçamento dos
seres humanos com seu ambiente. A humanidade se insere num campo vivo de dignidades
peculiares, como a animalidade, a plantidade, a vegetalidade e a mineralidade.
Toda a esfera do vivente guarda um valor intrínseco, com seus direitos
característicos. No âmbito desta ocular, o diálogo e a hospitalidade ganham uma
tessitura nova e abrangente.
A espécie humana se viu enredada numa dinâmica
civilizatória mortífera, pautada pela exclusão e pela violência. E como eixo
central, a ideia de excepcionalidade:
Nós começamos por nos consideramos
especiais em relação aos outros seres vivos. Isso foi o primeiro passo para, em
seguida, alguns de nós começar a se achar melhores do que os outros seres
humanos. E nisso começou uma história maldita em que você vai cada vez
excluindo mais. Você começou por excluir os outros seres vivos da esfera do
mundo moral, tornando-os seres em relação aos quais você pode fazer qualquer
coisa, porque eles não teriam alma. Esse é o primeiro passo para você achar que
alguns seres humanos não eram tão humanos assim. O excepcionalismo humano é um
processo de monopolização do valor. É o excepcionalismo humano, depois o
excepcionalismo dos brancos, dos cristãos, dos ocidentais... Você vai
excluindo, excluindo, excluindo... até acabar sozinho, se olhando no espelho da
sua casa (BRUM, 2014, p. 18-19)[8].
É o chamado tempo do antropoceno,
quando o ser humano deixa de ser um agente biológico para se tornar uma força
geológica, alterando radicalmente a paisagem do planeta e comprometendo sua
própria existência e sobrevivência. Daí a urgência da superação do
antropocentrismo, com todos os seus descaminhos. Uma mudança de rumo é
possível, ainda que difícil. Na contramão do itinerário traçado pelos humanos,
estão os terranos, os povos de Gaia, com seus sonhos e esperanças. Trata-se,
porém, de uma tensão assimétrica, de uma “estranha guerra” cujo destino sombrio
está quase definido[9].
O questionamento do antropocentrismo
implica o redimensionamento do conceito de “nós”, não mais restrito à esfera do
humano (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 257). O ambiente, como aquilo que circunda
o organismo, passa a ter uma valência substantiva. Deixa de ser visto como a
realidade para a qual olhamos, sendo percebido agora como “um mundo no qual
vivemos”. Trata-se de uma importante mudança de ocular, que reconfigura a
tônica relacional. Um passo importante para acolher o mundo da diversidade e
ressignificar os conceitos de diálogo e hospitalidade.
A ampliação de perspectiva requer um novo olhar, ou
ainda melhor, uma nova atitude contemplativa sobre o mundo. Em reflexão
singular, Octavio Paz fala do processo que acompanha a atitude diante do mundo
natural, de um estranhamento inicial a um encantamento peculiar, quando se dá a
percepção das malhas de conexão do humano com o seu ambiente:
Diante do mar ou de uma montanha,
perdidos entre as árvores de um bosque ou na entrada de um vale que se estende
aos nossos pés, nossa primeira sensação
é a da estranheza ou separação. Nós nos sentimos diversos. O mundo natural se
apresenta como algo alheio, possuidor de uma existência própria. Esse
distanciamento se transforma logo em hostilidade. Cada galho de árvore fala uma
linguagem que não entendemos; em cada matagal dois olhos nos espiam; criaturas
desconhecidas nos ameaçam ou escarnecem de nós. Também pode ocorrer o
contrário: a natureza se recolhe em si mesma e o mar se enrola e desenrola à
nossa frente, com indiferença; as rochas se tornam ainda mais compactas e
impenetráveis; o deserto mais vazio e insondável. Não somos nada diante de
tanta existência fechada em si mesma. E desse sentir-nos nada passamos, se a
contemplação se prolonga e o pânico não nos embarga, ao estado oposto: o ritmo
do mar se adapta ao compasso do nosso sangue; o silêncio das pedras é o nosso
próprio silêncio; andar nas areias é caminhar pela extensão da nossa
consciência, ilimitada como elas; os sons do bosque nos aludem. Todos nós
fazemos parte de tudo (PAZ, 2012, p. 160-161).
Isso é o que os povos originários
captam com frequência natural. Uma das importantes lideranças indígenas
brasileiras, Ailton Krenak, sublinha que a natureza é algo que existe e brilha
em cada uma das células de seu corpo. Todo o entorno vem pontuado pelo toque da
fragrância do Mistério. Como ele assinala, o sagrado “pode ser tudo aquilo em
que botamos os olhos, a depender dos olhos com que enxergamos o mundo”. Não há
por que ver nas montanhas apenas o seu potencial mineralógico ou nos rios o seu
capital energético. Há que desvendar a dimensão de Mistério que se esconde por
trás de sua aparência superficial (KRENAC, 2015, p. 83 e 231-232).
Firma-se como essencial no novo século
a questão da relação dos humanos com a natureza. Não há como continuar
acreditando que a natureza seja um mundo à parte, deslocada da vida social
(DESCOLA, 2013, p. 97). Os caminhos que se apresentam são outros, para além do
antropocentrismo. O ser humano deixa de ser o “umbigo do mundo” para ser parte
do vivente, uma “espécie de companhia”, onde todos os seres da criação passam a
ser considerados “parentes”. E não só as coisas visíveis, mas também as
invisíveis (FOX, 2016, p. 22).
Abordando especificamente o tema da hospitalidade,
com o foco na questão do animal, a pesquisadora Lucille Desblache, reconhece na
reflexão uma forma de ampliação da teia da acolhida. Ao alargar os canais de
acolhida para criaturas não humanas o que ocorre é uma abertura de horizontes
para o entendimento do próprio ser humano, como nó de relações. A abordagem
sobre os animais suscita uma nova compreensão dos humanos mesmos. Os animais
“nos chamam a partilhar e a nos abrir a outros universos, a outras maneiras de
pensar, outras linguagens, outras maneiras diferentes de ser” (MONTANDON, 2011,
p. 1249). Thomas Merton, com base em Rilke, chamou a atenção para a
simplicidade do animal. Ele está “sempre em contato imediato com a vida”, sem
as interposições da consciência. Na sua espontaneidade, simplesmente vive. O
seu movimento “é para a eternidade”, sem nostalgia (CARDENAL, 1979, p. 11;
RILKE, 2013b, p. 67). Outro aprendizado importante lançado para o ser humano:
viver simplesmente.
5 Habitar espiritualmente a Terra
A tomada de consciência de que tudo
está interligado favorece a retomada do senso da maravilha, que é á única
bússula que indica o polo do significado (HESCHEL, 2001, p. 29). Há que se
deixar tomar pelo estupor que move a consciência diante da textura do mundo e
da dinâmica da vida. A espiritualidade é essa capacidade de celebrar a vida em
profundidade. Ela aciona qualidades essenciais e potencialidades de abertura
que procedem do espirito. É dela que se irradiam, com uma fragrância única, os
toques singulares do amor desinteressado, da gratuidade, da atenção, cortesia e
hospitalidade. São traços da dinâmica humana quando atuada em profundidade. A
espiritualidade aciona o movimento desses valores fundamentais que são
irradiados por todo canto. Deixar-se habitar pela espiritualidade é criar o
espaço garantido e especial para a emergência de fragrâncias essenciais, que
constituem a razão fundamental da existência.
Uma “nova reverência face à vida”, eis
o desafio que se apresenta a todos nesse século XXI. É a responsabilidade que
envolve hoje todos os povos da Terra, em favor de um outro mundo possível. Há
que somar forças e unir corações numa comunidade global sintonizada com o
cuidado da Terra e a afirmação da dignidade de todos. Como indica a Carta da
Terra, “a escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns
dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida” (BOFF,
2002, p. 149).
O papa Francisco na sua encíclica sobre
o cuidado da casa comum lançou algumas pistas importantes para essa
espiritualidade ecológica. Assumir uma atitude de cuidado da ecologia pressupõe
uma atenção ao mundo interior, à paz interior. É desse âmbito interior que
procedem os valores essenciais, como a capacidade de admiração e a percepção da
profunda interligação que irmana as criaturas. Cada uma delas tem o seu lugar,
a sua função e dignidade, não podendo ser descartada como supérflua: “Todo o
universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida
por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus” (FRANCISCO,
2015, p. 68-69).
A harmonia serena com a criação é fruto
de um processo peculiar, de trabalho interior, que envolve simples gestos do
cotidiano, favorecendo a quebra da lógica de domínio, exclusão ou violência. Da
fonte interior secreta a percepção viva de que o Mistério está em toda parte:
“há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto
do pobre” (FRANCISCO, 2015, p. 184). É uma espiritualidade que retoma uma
dimensão nova, receptiva e gratuita, de celebração do mundo da vida. Há uma
dimensão espiritual que preside a ligação do ser humano com toda a criação. É
um tema muito recorrente na visão da igreja oriental antiga. Para os santos
dessas comunidades, aqueles que são puros de coração são capazes de perceber
nitidamente esses laços. O mundo inteiro, como lembra Massimo o Confessor
(580-662), é uma “liturgia cósmica”. A criação como um todo é um “livro
sagrado” (BARTHOLOMEUS, 2015, p. 34 e 51). A relação com Terra ganha, assim, uma
dimensão mística e sacramental, daí o desafio singular de atenção e escuta ao
ritmo do tempo, do silêncio necessário para ouvir o canto das coisas.
Essa nova sensibilidade espiritual vai envolvendo
as tradições religiosas, na busca de um “ecumenismo” mais profundo. Como
mostrou o monge vietnamita, Thich Nhat Hanh, os seres vivos estão entrelaçados
na Terra. Ela não é simplesmente o ambiente em que se vive, mas um componente
da trama existencial. Sublinha ainda que um dos motivos que provocam o medo, o
ódio ou a raiva relaciona-se com a ideia que desvincula o ser humano da Terra e
do planeta, bem como a visão antropocêntrica de que o sujeito é o centro
referencial. O olhar despretensioso, purificado, capta uma outra perspectiva:
“Quando vemos verdadeiramente que a Terra faz parte de nós, captamos algo de
extraordinário. A Terra é viva” (THICH NHAT HANH, 2016, p. 8).
Conclusão
A reflexão sobre a hospitalidade e o
diálogo ganha um significado novo quando inserida nesse leque mais amplo da
textura do mundo, da reverência à Terra. Não se trata de uma mera questão
inter-subjetiva, que envolve a provocação entre as religiões e
espiritualidades. É algo mais radical, que suscita uma percepção de irmandade
mais alargada. Dialogar é traçar um novo modo de ser com as espécies
companheiras, na abertura incessante ao Mistério maior que se revela a cada
momento, nos espaços mais inusitados. Como sublinhou o compositor brasileiro,
Gilberto Gil, o “Mistério sempre há de pintar por aí”. Ele está por toda parte
a convocar o olhar e a sensibilidade.
A perspectiva espiritual do habitar a
Terra firma-se como decisiva nesse século XXI, apontando para um âmbito novo de
vitalidade. Uma sensibilidade nova que pressupõe uma ruptura de paradigma. Não
mais dominar e submeter a Terra e os seres da criação, mas instaurar laços de
parentesco e irmandade. Cada criatura tem seu valor intrínseco, e nenhuma é
supérflua. Na verdade, tudo está intimamente relacionado. As malhas do diálogo
e da acolhida ganham, assim, um novo perfil. Na medida em que o ser humano
cresce no mundo, é o mundo mesmo que cresce nele (INGOLD, 2015, 30).
Mesmo reconhecendo as dificuldades que acompanham
os que defendem um novo paradigma, os povos de Gaia, é preciso reconhecer que a
sua luta é essencial para mudar a fisionomia do mundo, ou mesmo garantir a sua
sobrevivência. Na manutenção do atual paradigma, defendido pelos humanos no
antropoceno, o risco maior é o da autodestruição e devastação da
biodiversidade. No novo paradigma, uma sintonia mais fina com os ritmos da natureza
e uma dinâmica de cortesia e cuidado com os seres criados, compreendidos como
parceiros de uma aliança. O que ocorre é uma grande crise de civilização, onde
“há gente de menos com mundo de mais e gente demais com mundos de menos”
(DANOWSCK; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 129). A grande e decisiva questão que
se coloca: em que mundo se quer viver?[10]
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WEIL, Simone; BOUSQUET, Joë. Corrispondenza. Milano: SE SRL, 1994.
(Publicado na Revista Horizonte, v. 15,
n. 45, jan/mar 2017)
[1] Esse artigo é fruto do estágio sênior que fiz na Itália
(Veneza), com financiamento da CAPES, realizado de dezembro de 2015 a fevereiro
de 2016.
* Possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (1977), graduação em Filosofia pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (1977) e doutorado e pós doutorado em Teologia pela
Pontificia Universidade Gregoriana (1985 e 1998 - com supervisão de Jacques
Dupuis). Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Juiz de
Fora. País de Origem: Brasil. E-mail: flcteixeira@icloud.com.
[2] É extensa a bibliografia sobre o
diálogo inter-religioso e o pluralismo religioso. Ver a respeito: TEIXEIRA,
2014.
[3]
Trata-se de um termo cunhado pelo antropólogo inglês Edward T. Hall para
descrever o espaço pessoal de indivíduos num meio social. Diz respeito às
distâncias físicas que as pessoas estabelecem espontaneamente entre si no
convívio social, bem como das variações que podem ocorrer dadas as mudanças
sociais e culturais.
[4]
Curioso verificar que na derivação etimológica de hostes estão tanto o hóspede como o inimigo (hospes/hostis). Nesse
sentido, “da hospitalidade à hostilidade há apenas um passo”. O desafio dialogal
é o de propiciar “relações de amizade no interior de uma relação suscetível de
conter os germes de relações adversárias”: HAROCHE-BOUZINAC, 2011, p. 1259.
[5]
Rainer Maria Rilke abordou com precisão esse mistério/enigma que envolve o
exercício do amor: “O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais
difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas
as outras são apenas uma preparação”. Não há como apagar a “solidão” que
permeia esse encontro. Há que saber lidar com ela: RILKE, R.M. 2013a, p. 54-55.
[6] Veja
também Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio ao livro de KOPENAWA, D.;
ALBERT, B, 2015, p. 35.
[7] Num
dos preciosos trabalhos do mestre Dôgen, Sansuikyô
(Montanhas e rios como sutras), ele assinala que as montanhas e rios traduzem a
presença do caminho primordial do despertar. Não captar o movimento das
montanhas e rios é desconhecer a Via. Colocar em dúvida a marcha das montanhas
é desconhecer os passos da realização de si: DOGEN, 2005, p. 103-104.
[8]
Trata-se de uma citação de Eduardo Viveiros de Castro, com base num pensamento
de Lévi-Strauss.
[9] Na
visão de Bruno Latour, nessa “guerra” os terranos estão com a causa perdida,
dada a força da dinâmica antropocena: LATOUR, Bruno, 2012, p. 483. Os humanos
são os modernos, e os terranos, os povos de Gaia: cf. DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE
CASTRO, E., 2014, p. 122.
[10]
Recorrendo a uma citação de Bruno Latour, Viveiros de Castro sinaliza: “Para
falarmos de maneira direta: alguns de nós estão se preparando para viver como
Terranos no Antropoceno; outros decidiram permanecer como Humanos no Holoceno”:
DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 123.
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