segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O sagrado dever da Hospitalidade

O sagrado dever da hospitalidade

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


            A hospitalidade envolve uma “dádiva de si”, tendo uma grande familiaridade com a abertura ao outro e ao diálogo. No campo das religiões, a hospitalidade ganha um significado essencial. A acolhida ocorre no “solo sagrado” do outro, implicando um gesto magnífico, que coloca o sujeito diante de um risco preciso, que revolve toda a sua auto-compreensão. A hospitalidade não traduz apenas a maravilha do encontro com o outro, mas também a agonia de estar diante de um “estranho” que bate à nossa porta. Há uma dimensão de tensão ou mesmo altercação na relação que se estabelece. O desafio já começa na soleira da porta, “naquela porta à qual se bate e que vai abrir um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos, entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é a etapa decisiva semelhante a uma iniciação”[1].

            O caminho que se abre pode ser o diálogo, que começa a ocorrer quando a recepção se dá de forma sutil, delicada, cuidadosa e amorosa. Há que bater “devagar” na porta do outro, sem muito ruído, de forma a favorecer um intercâmbio vital. Entrar no novo circuito envolve “renunciar a se impor”, mantendo delicadamente o direito à diferença, a preservação de certa distância. O caminho é tortuoso, e exige escuta e paciência. Há que buscar por todos os meios quebrar as amarrar da violência que estão implícitas em toda dinâmica da hospitalidade. É um mundo novo que se anuncia, exigindo delicadeza e cuidado. Daí ser o diálogo uma frágil “zona de passagem”, de “aventura, espanto e inquietação”[2].

            O diálogo é uma “cartografia inacabada”, que vai se tecendo com as linhas da humildade e generosidade. Os interlocutores são convidados a alçarem o olhar, vislumbrarem novos patamares de significado, refletirem sob nova luz. Aí pode então ocorrer o milagre de um encontro, que preserva simultaneamente o auto-respeito genuíno e a auto-exposição ao outro. No cerne do diálogo está uma acolhida, está a presença de um rosto que convida, de um olhar que indaga e provoca o mover dos lábios.

            São inúmeros e exemplares os casos de exercício dialogal, de realização de um hospitalidade sagrada, como a de buscadores que se inserem nas inúmeras tradições espirituais. Nos diversos itinerários,

o diálogo encarna a virtude maior entre as culturas: a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz (...)[3].

            O diálogo comporta algo mais que uma interlocução humana, vai além, e traduz um “ato religioso”, na medida em que evoca um Mistério maior. Indica o traço contingente que habita  em qualquer experiência religiosa particular. Suscita indagação, abertura permanente, ou como indica Gadamer, expansão da individualidade. O que se busca, intensivamente, é a verdade que habita na dinâmica mesma da sinfonia do encontro. Disse a respeito Montaigne: “Eu festejo e acaricio a verdade em qualquer lugar que a encontrar, e para lá me dirijo alegremente, e lhe estendo minhas armas vencidas, de longe, assim que a vejo se aproximar (...)”[4].

            São ricos os exemplos de buscadores que viveram intensamente a prática da hospitalidade[5]. No âmbito do cristianismo, e em particular no diálogo com o islã, aparecem figuras notáveis como Louis Massignon (1883-1962), que abraçou com vigor esse tema, fazendo dele a ária de sua vida. Para ele, a hospitalidade envolvia uma saída de si mesmo, uma “expatriação interior” para poder assumir o outro com alegria e gratuidade. Entendia que o verdadeiro encontro com o outro não acontece mediante o caminho de sua anexação, mas no deixar-se hospedar por ele. O caminho indicado é o do coração, que é o lugar privilegiado de acesso ao “segredo divino”. Hospitalidade, Misericórdia e Compaixão são palavras que se irmanam. Assumir a hospitalidade é deixar-se tomar pelo apelo solene dos Abdâl, ou seja, daqueles que foram escolhidos por Deus para sanar as feridas do mundo mediante o dom de si. Foi desta palavra, Abdâl – plural de badal – que Massignon tirou a inspiração para a sua experiência espiritual mais forte, a Badaliya, um mosteiro espiritual, uma comunidade de pessoas dedicadas ao caminho da oferta ao islã.

            Há também o exemplo precioso de Christian de Chergé (1937-1996), o monge-mártir de Tibhirine (Argélia). No compromisso assumido pela comunidade trapista com os irmãos muçulmanos da região algo de maravilhoso aconteceu, como passo de gratuidade e hospitalidade. Os laços comunitários que se estabeleceram naquela difícil região foram tratados de forma singela no filme de Xavier Beauvois, Homens e deuses  (2010), num envolvimento amoroso, de compromisso e entrega excepcionais. Para Chergé, a dinâmica de hospitalidade era o horizonte da experiência comunitária, algo central para ele. Dizia não haver fronteiras de tempo ou espaço para o exercício do amor e da misericórdia. Uma acolhida marcada pela pura gratuidade, como um dom que não implica reciprocidade. Ele dizia que essa acolhida brota límpida do coração do evangelho, daí o desafio de “aprender a exercê-la sem exigir reciprocidade, em nome Daquele que veio a nós gratuitamente”[6].

            Os exemplos de dedicação à hospitalidade falam muito mais forte que as teorias a respeito, não há dúvida sobre isso. Nesse percurso de dedicação à alteridade pode ainda ser lembrado o nome de Serge de Beaurecueil (1917-2005). Foi um frade dominicano que dedicou sua vida a essa aventura de amor aos amigos muçulmanos. Na trilha de outros buscadores, pôde perceber que há sempre a presença de um outro a desvelar facetas inéditas do Mistério sempre maior. Foi assim que, partindo de uma grande devoção à mística sufi, encontrou o caminho do serviço junto as meninos de Cabul, no Afeganistão. Dizia que no momento derradeiro, a pergunta essencial vai incidir não sobre a religião abraçada, mas sobre o movimento de “partilha do pão e do sal”. Um passo essencial para a sua conversão espiritual ocorreu numa situação cotidiana, de convivência com um dos meninos da região, Ghaffâr, que favoreceu sua ampliação olhar. Num certo dia, o garoto disse: “Você aceitaria que eu fizesse uma refeição em sua casa e depois viesse lanchar na minha? Poderíamos assim partilhar o pão e o sal, o que sela entre nós a amizade, a união dos destinos”. Esse menino morreria pouco tempo depois, num acidente automobilístico. O gesto acenado pelo garoto ganhou um significado sacramental para o dominicano, com notáveis  irradiações. Num de seus livros, dirá:

Ghaffâr, sem dúvida alguma, favoreceu-me a chave de compreensão. Estava aqui para partilhar a vida dos afegãos na banalidade de seus acontecimentos cotidianos, e simplesmente partilhar o alimento... Uma tal partilha ligou meu destino ao deles, selando o direito de intercessão – tão caro a Louis Massignon – consagrando um traço de união entre Cristo e eles, instrumento silencioso da graça [7].

                  A hospitalidade firma-se, assim, como algo precioso, com valor sagrado, que estabelece laços imarcessíveis entre aqueles que buscam crescer na experiência do Mistério e da busca do sentido. Hoje, porém, surge um desafio novo, que é entender as teias largas da hospitalidade, que não se reduz à acolhida dos outros humanos, mas que rasga o conceito tradicional de “nós”, de forma a abrigar todos os seres da criação, no respeito essencial aos seus direitos característicos. Abraçar a hospitalidade ganha um significado muito especial nos tempos atuais, envolvendo também o desafio de habitar a Terra com sentido, acolhendo a “textura do mundo da vida”. Não há mais dois mundos antagônicos, em que sociedade e natureza estão divididos, mas uma única malha tecida por trilhas diferenciadas, mas sempre relacionadas. Supera-se a dicotomia entre o organismo (aqui) e o ambiente (lá), e o ser humano se dá conta, finalmente, que é parte do vivente e não mais o umbigo do mundo. O habitar a Terra ganha assim um significado novo e alvissareiro, e o ser humano vem inserido “no interior da continuidade do mundo da vida”[8].

            O papa Francisco se deu conta desse desafio inaugural em sua carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum[9]. Parte da ideia essencial de que todos os seres humanos são terra, e que os elementos de seu corpo são constituídos pelos “elementos do planeta” (LS 2). Na pauta de sua reflexão, o desafio de uma “nova solidariedade universal”, que parte da consciência de que tudo na Terra está interligado, e que todos os seres criados precisam uns dos outros. Novos laços são tecidos, unindo a humanidade com a animalidade, com a vegetalidade e a mineralidade, numa consciência comum da dignidade de cada criatura. Indica a urgência de uma “espiritualidade ecológica”, uma “conversão ecológica” (LS 216 e 217) voltadas para o exercício comum de recuperação de uma harmonia serena com a criação. O universo inteiro está animado pela dinâmica espiritual: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233).

            A hospitalidade ganha assim uma tessitura nova e exigente, que sem desconsiderar os passos da acolhida ao outro humano, distinto, vem agora enriquecida com uma dimensão novidadeira, que delineia os passos essenciais do significado mais profundo do habitar espiritualmente a Terra.

(Publicado na Revista IHU-Online, Ano XVI, 19/12/2016:



[1] Alain Montandon. Espelhos da hospitalidade (prefácio). In: ____. Ed. O livro da hospitalidade. São Paulo: Senac, 2011, p. 32.
[2] Marco Lucchesi. Guerras de religião ? O Globo. 03/12/2014.
[3] Ibidem.
[4] Apud Magali Bessone. Do eu ao nós. In. Alain Montandon (Ed.). O livro da hospitalidade, p. 1270.
[5] Ver: Faustino Teixeira. Buscadores cristãos no diálogo com o islã. São Paulo: Paulus, 2014.
[6] Christian de Chergé. L´invencible esperance. Paris: Bayard, 2010, p. 206.
[7] Serge de Beaurecueil. Mes enfants de Kaboul. Paris: Cerf, 2004, p. 65.
[8] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26.
[9] Papa Francisco. Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

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