sábado, 3 de setembro de 2016

O cuidado com a Casa Comum

O cuidado com a Casa Comum

Faustino Teixeira


O dia primeiro de setembro de 2016 veio marcado por um belo gesto de papa Francisco, na mensagem que enviou ao mundo celebrando o dia mundial de oração pelo cuidado da criação[1]. No singelo e corajoso documento de Francisco o “ato de fé pelo planeta”, na expressão cunhada por Paula Ferreira em artigo publicado no O Globo (02/09/2016).

É um texto que nos convoca para a urgente vocação de “guardiões da criação”. O que vemos por todo lado, nesse tempo do antropoceno, é uma “exploração irresponsável do planeta”, onde os mais vulneráveis são os “pobres do mundo”. Dentre as irradiações letais, o violento aquecimento do planeta, que em 2015 atingiu um auge inusitado. Como diz Francisco, “as mudanças climáticas contribuem também para a dolorosa crise dos migrantes forçados”.

Em linha de sintonia com a ecologia integral, Francisco reitera a nota que vem sublinhando desde a encíclica Laudato si ( maio de 2015)[2], em torno da profunda ligação que irmana os seres humanos entre si e com a criação. O ataque à natureza traduz, sem dúvida, um ataque ao ser humano. Em verdade, “cada criatura tem o seu próprio valor intrínseco que deve ser respeitado”. É uma reflexão que vem corroborar toda uma linha de pesquisa presente hoje na antropologia, que rebate a cisão tradicional entre natureza e cultura. A sociedade e o ambiente não são realidades descoladas, mas intimamente entrelaçadas numa rede de vida e criação. Os humanos, ao contrário do que se propagou no Ocidente pós-cartesiano, não são o “umbigo do mundo”,  mas “parte do vivente”. Estão envolvidos na textura do mundo. Não estão aí apenas para ocupar o mundo, mas para habitá-lo com respeito e cuidado. Tudo aquilo que vem brindado com o toque da vida sinaliza um movimento de ressonância fundamental. O espaço da criação é um espaço de movimento: tudo vem marcado pela fragrância da vida, deixando trilhas abertas e interativas. O meio ambiente, como tão bem mostrou Tim Ingold, é “em primeiro lugar, um mundo no qual vivemos, e não um mundo para o qual olhamos”.

A mensagem de Francisco traduz uma preocupação que é comum a muitas lideranças religiosas de tradições distintas, como o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, que em novembro de 1997 dizia em discurso na Califórnia que o ardor destrutivo do ser humano diante da biodiversidade traduz um “pecado contra Deus”. Assim também o suave monge do Vietnã, Thich Nhat Hanh, em Carta de amor à mãe terra (2013), insiste sobre o traço vivo da Terra e a dimensão de co-pertença do humano a este “belíssimo e generoso planeta”. Não pode haver sentimento de separação, pois tudo que advém de nós e que nos alcança de fora provém da Terra. Ela não é simplesmente o ambiente em que vivemos, mas tecido que anima a nossa existência: nós somos Terra.

Em sua ardente mensagem, Francisco convoca a um exame de consciência, a “consciência amorosa de não estar  separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal”. Há um toque de graça em sua reflexão, ao indicar com vitalidade o mundo como um “dom recebido do amor do Pai”. Um exame de consciência que envolve uma mudança radical de rumo e o deixar-se habitar por uma espiritualidade da criação. De fato, como diz Francisco, “o cuidado da natureza faz parte dum estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão”. E na sequência de sua reflexão, um dado novidadeiro com a inserção do cuidado da casa comum como um complemento atual e urgente das tradicionais obras de misericórdia. E porque ? Em razão da misericórdia ter por objeto “a própria vida humana na sua totalidade”.

Esse cuidado da casa comum requer de todos uma nova dinâmica contemplativa. Já dizia Francisco na Laudato si que “todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, as águas, as montanhas: tudo é carícia de Deus” (LS 84). Tudo vem permeado por um Mistério que pode ser contemplado de diversas formas: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233). Em sua mensagem de setembro de 2016, Francisco fala da “grata contemplação do mundo”, do cuidado essencial que acontece nos “simples gestos do cotidiano”, que rompem com “a lógica da violência, da exploração, do egoísmo”.

Francisco assim assinala uma espiritualidade alternativa, pontuada pela qualidade de vida, pelo entusiasmo inter-relacional. Trata-se de uma espiritualidade que gera e irradia alegria, que nasce de um mundo interior atuado, tocado pela dinâmica da simplicidade; de um mundo interior capaz de alegrar com pouco, pois marcado pela convicção de que “quanto menos, tanto mais”. O segredo está nesse cultivo da vida interior, que faz gerar um equilíbrio singular e que propicia a recuperação da “harmonia serena com a criação”. Há uma familiaridade única entre a paz interior e o cuidado da ecologia (LS 225).




[2] Papa Francisco. Carta encíclica Laudado si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

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