sábado, 20 de agosto de 2016

Davi Kopenawa e o sopro da vida

Davi Kopenawa e o sopro da vida

Grande alegria ao ler o belo texto do amigo querido, Alberto Pucheu, sobre o livro de Davi Kopenawa: A queda do céu (Revista Cult, n. 215 – 2016). Já Eduardo Viveiros de Castro tinha dito no prefácio do livro: “A queda do céu é um acontecimento científico incontestável, que levará, suspeito, alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica”. E advertia também que era chegada a hora de “levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa”.

E agora vem essa reflexão de um poeta falando sobre o mesmo livro. E o início é enigmático: para podermos acessar o universo dos Yanomami temos que ultrapassar a nossa condição de “fantasmas”. Somos, de fato, fantasmas para eles... Assim ocorreu com o antropólogo Bruce Albert, no início, até que se deixou habitar pelo universo Yanomami, tendo como missão levar para longe essas palavras esquecidas, “para serem conhecidas pelos brancos, que não sabem nada sobre nós”.

E o que aporta esse universo? A leitura do livro nos indica um caminho precioso, de “acréscimo de vida”, de “sopro de vida”. Como indica Pucheu, “o livro é uma aposta ética e política por devires a serem instaurados, a criação de um devir do brasileiro e do ocidental para instigar em nós um desejo do branco em se tornar índio, em índio que de algum modo já somos”. E acrescenta: “A queda do céu é uma das maiores injeções de ´sopro de vida` na asfixia e no sufocamento com os quais crescentemente vivemos e obrigamos qualquer outro, quem quer que seja esse outro, a viver".

Composto desde o ´sopro de vida` , soprado nessa língua outra, o livro é uma dura crítica a um vendaval vital para todos e cada um de nós”. Não é tarefa fácil ou simples entrar no horizonte do outro, transpor o limiar de Mistério que envolve o mundo da alteridade. Como diz Alain Montandon, devemos “bater devagar” nas portas desse universo distinto, sem muito ruído... Ultrapassar a soleira que divide os mundos requer atenção, cuidado e delicadeza: “Entrar no círculo é renunciar a se impor”, é preservar a distância.

Infelizmente, como relata Pucheu, o Outro vem hoje reduzido ao mundo do espetacular ou do econômico. Foi o espanto vivido por Kopenawa ao visitar em Paris o Museu do Homem. Ali pode constatar a “imensa falta de respeito dos brancos pelos índios, pelos xapiri e por Omama”. O Museu é a memória viva de um assalto, dos saques de guerra produzidos pelos humanos, que desprovidos de qualquer respeito apreenderam suas “imagens” e seus “espíritos”. Os brancos, como diz Kopenawa, “dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. E aí vem uma indagação importante feita por Alberto Pucheu, com base no livro de Kopenawa:

“Será possível um convívio entre alteridades tão radicais em que uma sofre da outra que a coloca em constante risco, em que uma sabe da fragilidade de seu povo diante do outro, diante de suas armas, dos assassinatos que cometemos, dos saques que realizamos de suas terras, das doenças dizimadoras que lhes fazemos pegar, da destruição das florestas (e, com ela, de Omama e dos xapiri) em nome do garimpo, da pecuária, da agricultura, do extrativismo, das madeireiras, das hidrelétricas, dos missionários a quererem doutriná-los...? Tendo de algum modo entrado, por necessidade, em um devir branca, o xamã diz: ´A meu ver, só poderemos nos tornar branco no dia em que eles mesmos se tornarem yanomami`.

No livro de Kopenawa, como lembra Pucheu, temos palavras em vez de flechas, e que trazem um convite muito particular, uma provocação única do “devir índio do branco”, num tempo onde vem ocorrendo de forma violenta o “devir branco dos índios” e seus devastadores efeitos. E Pucheu retoma a frase enigmática do início do livro: “Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um fantasma”.  O “você” era uma referência ao antropólogo Bruce Albert. Ele “é o estrangeiro, o branco, o antropólogo, o, a princípio, inimigo, que chega com sua língua fantasmática. É ele quem, contrariamente ao esperado, se coloca em uma ´escuta apaixonada` das palavras e experiências enigmáticas de Kopenawa, colaborando em muitos planos, éticos e políticos, a favor dos yanomami”.


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