domingo, 18 de setembro de 2016

Assis, um acontecimento do Espírito

Assis, um acontecimento do Espírito

ENTREVISTA IHU – FAUSTINO TEIXEIRA

O que é, como e por quais razões surgiu a Jornada Mundial de Oração pela Paz, realizada em 1986 na cidade de Assis, na Itália?  Quais foram as lideranças religiosas mundiais que participaram desse encontro há 30 anos?  Pode nos contar a história da Jornada Mundial de Oração pela Paz?

O evento de Assis foi precedido por duas viagens do papa João Paulo II com colorações inter-religiosas bem decisivas. Em agosto de 1985, esteve em Casablanca falando para os jovens muçulmanos. O espírito que movia o pontífice era de abertura. Sublinhou para eles que é o mesmo Deus que une na crença muçulmanos e cristãos. Falou também do respeito requerido pelo diálogo inter-religioso, envolvendo uma bonita dinâmica de reciprocidade. Sobre os caminhos de Deus, indicou que eles nem sempre coincidem com os caminhos particulares trilhados pelas religiões, envolvendo um marco referencial de transcendência. Reiterou o respeito da Igreja Católica pelos muçulmanos e em particular o reconhecimento da “qualidade” do caminho religioso por eles seguido. Em fevereiro do ano seguinte, 1986, visita a Índia, e outras reflexões novidadeiras acontecem, indicando o apreço e o respeito da comunidade católica por aquilo que une as duas tradições religiosas. Bonita a imagem cunhada pelo papa em sua visita, dizendo que o ser humano é um “peregrino do absoluto”, na busca do rosto de Deus. Em passagem muito citada de seu discurso aos representantes das várias religiões da Índia, João Paulo II sublinha que mediante o diálogo é Deus mesmo que se faz presente entre os interlocutores, pois através da abertura mútua ocorre também a abertura a Deus.

A ideia inicial de um evento inter-religioso em Assis nasceu também do encorajamento recebido pelo papa em sua viagem a Índia. E a ocasião era propícia, pois 1986 tinha sido escolhido pela ONU como o Ano Internacional da Paz. Havia também a intenção de explicitar o “empenho ecumênico” da Igreja em favor do diálogo, na trilha do Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi como uma “ilustração visível” daquela perspectiva de aggiornamento eclesial. Tratava-se de uma experiência inaugural, congregando distintas tradições religiosas num empenho comum em favor da paz, mas buscando apontar uma “outra dimensão”, escondida, de promoção da paz através da oração partilhada; um momento nobre para reforçar a “qualidade transcendente da paz”.

            O evento contou com a participação de lideranças de diversas Igrejas cristãs, bem como de outras tradições religiosas: budistas, judeus, muçulmanos, hindus, xintoístas, Sikhs, jainistas, bahaístas, zoroastristas e religiões tradicionais da África e da América. Foram 124 lideranças que responderam positivamente ao convite de Roma, dentre elas Dalai Lama (Budismo Tibetano), Robert Runcie (Arcebispo de Cantuária) e Elia Toaf (Grande Rabino de Roma).

            O encontro de Assis, realizado em 27 de outubro de 1986, foi de fato uma experiência de oração, penitência e jejum, como uma “viagem” silenciosa tocada pelo Mistério Maior, uma “viagem fraterna” de irmandade e partilha, antecipando de certa forma o sonho maior querido por Deus em favor de uma humanidade renovada. Ali ocorria de fato, para além das intenções dos idealizadores, o reconhecimento da dignidade sagrada das religiões e a abertura de um campo inusitado para o diálogo efetivo entre as religiões. O evento teve três momentos. Inicialmente a acolhida do papa aos participantes na Basílica de Santa Maria dos Anjos, com um discurso de boas vindas. Num segundo momento, as diversas delegações seguiram em silêncio para os distintos locais da cidade medieval destacados para as orações particulares. Ao momento da oração particular seguiu-se um cortejo, um tempo de peregrinação, quando então os participantes seguiram em direção à praça central da cidade, situada em frente à Basílica de São Francisco, para o ato conclusivo da Jornada. Depois de uma breve introdução feita pelo cardeal Etchegaray, as diversas tradições religiosas presentes se sucederam, uma após outra, apresentando sua própria oração. O ato veio concluído com um discurso do papa.

Como esse encontro foi sendo retomado ao longo desses 30 anos e de que modo tem abordado e proposto a discussão do diálogo inter-religioso?

           A Jornada de Assis foi um ponto de partida, acentuando que a Paz é uma “responsabilidade universal”, e que as religiões têm um papel decisivo em sua defesa. E nessa luta, o que vale é a busca de unidade, que é “radical, basilar e determinante”, superando largamente as diferenças. Esse foi o ponto alto desse primeiro evento em Assis. Esse “espírito de Assis” ganhou continuidade em três outros eventos importantes, também realizados na mesma cidade. O primeiro, nos dias 09 e 10 de janeiro de 1993, com o convite inter-religioso à oração e ao jejum pela paz na Europa, especialmente nos Balcãs. O segundo, em janeiro de 2002, com outra jornada de oração visando uma tomada de atenção diante do agravamento das tensões existentes no cenário internacional. O terceiro, durante o pontificado de Bento XVI, em outubro de 2011. Esse “espírito de Assis” vai receber decidida acolhida no pontificado do papa Francisco.

Como a Jornada Mundial de Oração pela Paz recebeu e dialogou com o Concílio Vaticano II?

            Como se podia esperar, o evento de Assis causou muito constrangimento em setores mais conservadores da Igreja Católica, sobretudo na cúria romana. Para o bispo conservador, Marcel Lefebvre, o encontro inter-religioso de Assis significou “o cúmulo da impostura e do insulto a Nosso Senhor”. A seu ver, uma “blasfêmia pública” e uma degeneração herética. Outras críticas mais sutis vieram de setores da cúria romana, também insatisfeitos com o significado e as repercussões do evento. O temor maior era o de “sincretismo religioso”.  Também o cardeal Ratzinger não mostrou maior entusiasmo pela experiência, preferindo manter uma “reserva mais que morna”. No livro publicado no ano anterior, Rapporto sulla fede (1985), tinha já sublinhado o risco da tendência de uma ênfase excessiva nos valores da religiões não cristãs. O caminho seguido por João Paulo II, diante das resistências encontradas, foi explicar mais claramente o significado do evento em discurso proferido na cúria romana em 22 de dezembro de 1986. Ali então explicitou a afinidade da Jornada com o Concílio Vaticano II. O evento de Assis para ele não era senão uma “ilustração visível, uma lição dos fatos, uma catequese compreensível a todos, daquilo que pressupõe e significa o esforço ecumênico e o esforço pelo diálogo inter-religioso recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II”.

Quais são os resultados práticos oriundos da Jornada Mundial de Oração pela Paz?

           Em primeiro lugar, uma chamada radical de atenção em favor da Paz. Esse foi o toque essencial do evento. Não há saída favorável para a humanidade senão através da luta em favor da paz. Um desafio que deve tomar o coração das religiões, com a consciência viva de que estamos diante de duas únicas possibilidades: ou a verdadeira paz ou a guerra catastrófica. E as religiões são portadoras de um importante patrimônio nessa urgente tarefa, favorecendo um consenso de fundo na afirmação de valores essenciais e vinculantes como a solidariedade, a hospitalidade e o cuidado. E igualmente um papel decisivo no reforço da renovação espiritual da humanidade. Um outro resultado prático do evento de Assis foi apontar a dignidade das religiões e um estímulo singular em favor do diálogo. O belo cenário propiciado pelo evento de Assis, com a união das diversas representações religiosas, indicava um novo sinal dos tempos. A nova imagem rompia com o peso histórico de séculos de intolerância, de lutas religiosas e antagonismos étnicos. A unidade estava sendo agora construída em torno da oração. Como sublinhou Dalai Lama, a diversidade das religiões deixa se ser um “problema incômodo, mas um adorno do espírito humano e de sua longa história”.

Qual deve ser a peculiaridade da Jornada Mundial de Oração pela Paz a ser realizada entre os dias 18 e 20 de setembro, em Assis, em relação às demais? A quais instituições pertencem as 400 lideranças religiosas que irão participar do encontro? 

            O papa João Paulo II enfatizou por ocasião do primeiro evento em Assis que o empenho pela Paz não é algo esporádico, mas um compromisso a ser realizado “todos os dias da nossa vida”. Daí a preocupação em favor de uma continuidade dos eventos com o comprometimento das diversas tradições religiosas. Festejando agora em setembro os trinta anos do histórico acontecimento de Assis, mais um Encontro Mundial de Oração pela Paz, desta vez promovido pela Comunidade de Santo Egídio, em colaboração com as Famílias Franciscanas e a Diocese de Assis. A previsão é de dois dias de painéis de discussão concluídos com uma jornada de oração. O papa Francisco confirmou sua presença, assim como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, e 400 delegações envolvendo outras lideranças religiosas, mas também representações políticas e do mundo da cultura.

O encontro a ser realizado em Assis tem como título, “Sede de paz. Religiões e culturas em diálogo”. Qual é o significado desse tema neste momento histórico, em que a guerras em curso no Oriente Médio e na África e a Europa vive o drama das imigrações, por exemplo?

           Nesses tempos marcados pelo agravamento do “desgaste da compaixão” a urgência do apelo em favor da paz brada aos céus e convoca todas as religiões. Essa “sede de Paz” deve se irradiar por todo canto, esse é o lema que acompanha o evento. Na visão do líder da comunidade franciscana de Assis, frei Mauro Gambetti, “diante da violência furiosa, as religiões devem dar ao mundo uma mensagem convergente”.   

Qual é a relevância dos documentos A igreja e as outras religiões – Diálogo e Missão (1984 – Secretariado para os não-cristãos) e Diálogo e Anúncio(1991 – Pontifícia Comissão para o Diálogo Interreligioso) e qual é a contribuição dos teólogos Pietro Rossano e Jacques Dupuis para as discussões sobre o diálogo inter-religioso e a temática da paz?

          A meu ver, esses são os dois documentos mais abertos produzidos pela comunidade católica sobre o tema do diálogo entre as religiões. O primeiro, Diálogo e Missão, foi publicado  em junho de 1984 pelo então Secretariado para os Não-Cristãos. Na ocasião, o cardeal Francis Arinze estava na direção do dicastério romano, sendo o secretário Marcello Zago, conhecido por seu empenho em favor do diálogo. O documento é belíssimo, dedicando uma de suas partes ao tema das formas de diálogo. Reconhece que em âmbito mais profundo do diálogo, que toca a partilha das experiências de oração e contemplação, ocorre um “enriquecimento recíproco e cooperação fecunda, na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do homem”. Trata-se do momento singular em que a fé “não se detém diante das diferenças” abrindo-se ao Mistério maior de Deus, de todas as riquezas de sua “sabedoria infinita e multiforme”, do Deus “que é maior do que o nosso coração” (1 Jo 3,20). Quanto ao outro documento, Diálogo e Anúncio, do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso em parceria com a Congregação para a Evangelização dos Povos (1991), também situado no periodo da presidência do cardeal Francis Arinze, a linha reflexiva é bem consoante com o documento anterior. O texto contou com a preciosa assessoria do teólogo Jacques Dupuis. Vale registrar um de seus pontos nodais, quando reconhece a presença do mistério de salvação nas outras religiões, que respondem afirmativamente ao convite de Deus “através da prática daquilo que é bom” em suas próprias tradições. Em nenhum outro documento do magistério eclesial a reflexão sobre o tema havia alcançado tal patamar. O documento passou por cinco redações, sofrendo algumas mudanças importantes, sugeridas sobretudo pelo influxo mais moderado dos participantes da Congregação para a Evangelização dos Povos, cujo prefeito era na ocasião o cardeal Tomko. Os caminhos de abertura presentes nos dois documentos citados foram preparados por presenças singulares como a de Pietro Rossano. Ele foi professor de teologia das religiões na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, bem como nas universidades Urbaniana e Lateranense. Teve também singular atuação no Secretariado para os Não-Cristãos, a partir de 1973, quando foi designado como secretário desse dicastério romano. Foi talvez um dos nomes marcantes na defesa de um novo “estilo dialogal” para a igreja católica, pontuado pela abertura fraterna, de respeito e atenção cuidadosa ao outro, sobretudo aos caminhos inusitados do Espírito.

Como o papa Francisco está retomando o “Espírito de Assis” neste momento? 

            De fato, o papa Fracisco vem retomando com ênfase esse “Espírto de Assis”, com gestos de compromisso e abertura que encantam a todos, ou quase todos (sic!). O seu magistério vem marcado pela ênfase na Misericórdia e na Solidariedade. Como mote contínuo a convocação feita a toda a Igreja no sentido de “alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos” (EG 190). Sua atenção ao tema dos refugiados e de busca da Paz é recorrente. O seu verbo preferido é Dialogar, envolvendo a todos nessa urgente sinfonia que busca transformar o mundo em espaço de fraternidade. Fala com ênfase na construção da Paz, que é tarefa “artesanal”, tecida a cada dia com o impulso dado por Jesus: “Felizes os pacificadores” (Mt 5,9). O caminho de Assis vem enriquecido com o toque da ampliação do Cuidado, que agora cobre também a Terra sofrida. É o mesmo amor doado por Deus que convoca a todos a uma luta que não se restringe ao âmbito da humanidade, envolvendo igualmente o planeta que habitamos, com seus dramas e cansaços, com seus anseios e esperanças.

Deseja acrescentar algo? 

             Sim, gostaria de falar sobre um dos temas mais polêmicos que envolveu a primeira Jornada de Assis, em 1986. Trata-se da questão da distinção entre o “estar juntos para rezar” e o “rezar juntos”. É uma distinção sutil, mas que causou muita polêmica, antes, durante e depois do evento. O temor constante, lembrado por vários segmentos, estava relacionado com a possibilidade de sincretismo. Era a palavra recorrente. Diante dos riscos de interpretação, o papa João Paulo II, já na audiência geral em Roma, em 22 de outubro de 1986, um pouco antes do evento acontecer, sinalizou o traço “exclusivamente religioso” da Jornada, indicando a fórmula escolhida: “estar junto para rezar”. Rebate a ideia de “rezar junto”, ou seja, de uma oração comum, e isto para resguardar o mistério de cada tradição e o devido respeito pela oração dos outros. Busca assim descartar qualquer risco de sincretismo no evento. Sobre o tema debruçou-se o teólogo Jacques Dupuis, em capítulo do livro O cristianismo e as religiões (2001), abordando a delicada questão da oração inter-religiosa. Mesmo reconhecendo que a fórmula “juntos para rezar” foi a que ficou consagrada no evento, lança algumas interrogações a respeito. O que adverte, com razão, é que seria um erro julgar que a fórmula usada em Assis seria a única possível, levando assim a “regras rígidas e estreitas”. Argumenta que sem dúvida as circunstâncias específicas do evento de Assis excluíam a possibilidade de uma oração comum partilhada, mas isso não significa que em outros casos e circunstâncias essa possibilidade teria que ser também abolida. O caminho indicado por ele passa pelo exame das situações concretas e de um juízo pastoral cincunstanciado. Indica, sim, claramente, a possibilidade de uma oração comum quando as religiões envolvidas inserem-se nos três ramos da tradição monoteísta: judaísmo, cristianismo e islã. E isto pelo fato das três beberem na mesma origem histórica da fé de Abraão. São três tradições que partilham a mesma ideia de Deus numa distinta compreensão de seu Mistério. Na oração comum entre cristãos e os “outros” a questão se complica um pouco mais, como indica Dupuis, o que porém não exclui experiências de oração que podem ser partilhadas, na medida em que os cristãos e os “outros” se colocam humildemente diante de um Mistério Maior, que escapa a qualquer representação mental adequada. E conclui com acerto: “Rezar juntos não será senão fazer com que possam, em certo sentido, se encontrar uns e ´outros` no Espírito de Deus, presente e operante em uns e outros”.

Publicado no IHU-Notícias de 18/09/2016:


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