Assis, um acontecimento do Espírito
ENTREVISTA IHU – FAUSTINO TEIXEIRA
O
que é, como e por quais razões surgiu a Jornada
Mundial de Oração pela Paz, realizada em 1986 na cidade de Assis, na
Itália? Quais foram as lideranças religiosas mundiais que participaram
desse encontro há 30 anos? Pode nos contar a história da Jornada Mundial
de Oração pela Paz?
O evento de Assis foi precedido por duas viagens do
papa João Paulo II com colorações inter-religiosas bem decisivas. Em agosto de
1985, esteve em Casablanca falando para os jovens muçulmanos. O espírito que
movia o pontífice era de abertura. Sublinhou para eles que é o mesmo Deus que
une na crença muçulmanos e cristãos. Falou também do respeito requerido pelo
diálogo inter-religioso, envolvendo uma bonita dinâmica de reciprocidade. Sobre
os caminhos de Deus, indicou que eles nem sempre coincidem com os caminhos
particulares trilhados pelas religiões, envolvendo um marco referencial de
transcendência. Reiterou o respeito da Igreja Católica pelos muçulmanos e em
particular o reconhecimento da “qualidade” do caminho religioso por eles
seguido. Em fevereiro do ano seguinte, 1986, visita a Índia, e outras reflexões
novidadeiras acontecem, indicando o apreço e o respeito da comunidade católica
por aquilo que une as duas tradições religiosas. Bonita a imagem cunhada pelo
papa em sua visita, dizendo que o ser humano é um “peregrino do absoluto”, na
busca do rosto de Deus. Em passagem muito citada de seu discurso aos
representantes das várias religiões da Índia, João Paulo II sublinha que
mediante o diálogo é Deus mesmo que se faz presente entre os interlocutores,
pois através da abertura mútua ocorre também a abertura a Deus.
A ideia inicial de um evento inter-religioso em Assis
nasceu também do encorajamento recebido pelo papa em sua viagem a Índia. E a
ocasião era propícia, pois 1986 tinha sido escolhido pela ONU como o Ano
Internacional da Paz. Havia também a intenção de explicitar o “empenho
ecumênico” da Igreja em favor do diálogo, na trilha do Concílio Vaticano II
(1962-1965). Foi como uma “ilustração visível” daquela perspectiva de aggiornamento eclesial. Tratava-se de
uma experiência inaugural, congregando distintas tradições religiosas num
empenho comum em favor da paz, mas buscando apontar uma “outra dimensão”,
escondida, de promoção da paz através da oração partilhada; um momento nobre
para reforçar a “qualidade transcendente da paz”.
O evento contou com a
participação de lideranças de diversas Igrejas cristãs, bem como de outras
tradições religiosas: budistas, judeus, muçulmanos, hindus, xintoístas, Sikhs,
jainistas, bahaístas, zoroastristas e religiões tradicionais da África e da
América. Foram 124 lideranças que responderam positivamente ao convite de Roma,
dentre elas Dalai Lama (Budismo Tibetano), Robert Runcie (Arcebispo de
Cantuária) e Elia Toaf (Grande Rabino de Roma).
O encontro de Assis,
realizado em 27 de outubro de 1986, foi de fato uma experiência de oração,
penitência e jejum, como uma “viagem” silenciosa tocada pelo Mistério Maior, uma
“viagem fraterna” de irmandade e partilha, antecipando de certa forma o sonho
maior querido por Deus em favor de uma humanidade renovada. Ali ocorria de
fato, para além das intenções dos idealizadores, o reconhecimento da dignidade
sagrada das religiões e a abertura de um campo inusitado para o diálogo efetivo
entre as religiões. O evento teve três momentos. Inicialmente a acolhida do
papa aos participantes na Basílica de Santa Maria dos Anjos, com um discurso de
boas vindas. Num segundo momento, as diversas delegações seguiram em silêncio
para os distintos locais da cidade medieval destacados para as orações
particulares. Ao momento da oração particular seguiu-se um cortejo, um tempo de
peregrinação, quando então os participantes seguiram em direção à praça central
da cidade, situada em frente à Basílica de São Francisco, para o ato conclusivo
da Jornada. Depois de uma breve introdução feita pelo cardeal Etchegaray, as
diversas tradições religiosas presentes se sucederam, uma após outra,
apresentando sua própria oração. O ato veio concluído com um discurso do papa.
Como esse encontro foi sendo retomado ao longo desses 30 anos e de que
modo tem abordado e proposto a discussão do diálogo inter-religioso?
A Jornada de Assis foi um ponto de partida, acentuando que a Paz é uma
“responsabilidade universal”, e que as religiões têm um papel decisivo em sua
defesa. E nessa luta, o que vale é a busca de unidade, que é “radical, basilar
e determinante”, superando largamente as diferenças. Esse foi o ponto alto
desse primeiro evento em Assis. Esse “espírito de Assis” ganhou continuidade em
três outros eventos importantes, também realizados na mesma cidade. O primeiro,
nos dias 09 e 10 de janeiro de 1993, com o convite inter-religioso à oração e
ao jejum pela paz na Europa, especialmente nos Balcãs. O segundo, em janeiro de
2002, com outra jornada de oração visando uma tomada de atenção diante do
agravamento das tensões existentes no cenário internacional. O terceiro,
durante o pontificado de Bento XVI, em outubro de 2011. Esse “espírito de
Assis” vai receber decidida acolhida no pontificado do papa Francisco.
Como a Jornada Mundial de Oração pela Paz recebeu e dialogou com o
Concílio Vaticano II?
Como se podia esperar,
o evento de Assis causou muito constrangimento em setores mais conservadores da
Igreja Católica, sobretudo na cúria romana. Para o bispo conservador, Marcel
Lefebvre, o encontro inter-religioso de Assis significou “o cúmulo da impostura
e do insulto a Nosso Senhor”. A seu ver, uma “blasfêmia pública” e uma
degeneração herética. Outras críticas mais sutis vieram de setores da cúria
romana, também insatisfeitos com o significado e as repercussões do evento. O
temor maior era o de “sincretismo religioso”.
Também o cardeal Ratzinger não mostrou maior entusiasmo pela
experiência, preferindo manter uma “reserva mais que morna”. No livro publicado
no ano anterior, Rapporto sulla fede
(1985), tinha já sublinhado o risco da tendência de uma ênfase excessiva nos
valores da religiões não cristãs. O caminho seguido por João Paulo II, diante
das resistências encontradas, foi explicar mais claramente o significado do
evento em discurso proferido na cúria romana em 22 de dezembro de 1986. Ali
então explicitou a afinidade da Jornada com o Concílio Vaticano II. O evento de
Assis para ele não era senão uma “ilustração visível, uma lição dos fatos, uma
catequese compreensível a todos, daquilo que pressupõe e significa o esforço
ecumênico e o esforço pelo diálogo inter-religioso recomendado e promovido pelo
Concílio Vaticano II”.
Quais são os resultados práticos oriundos da Jornada Mundial de Oração
pela Paz?
Em primeiro lugar, uma chamada radical de atenção em favor da Paz. Esse
foi o toque essencial do evento. Não há saída favorável para a humanidade senão
através da luta em favor da paz. Um desafio que deve tomar o coração das
religiões, com a consciência viva de que estamos diante de duas únicas
possibilidades: ou a verdadeira paz ou a guerra catastrófica. E as religiões
são portadoras de um importante patrimônio nessa urgente tarefa, favorecendo um
consenso de fundo na afirmação de valores essenciais e vinculantes como a
solidariedade, a hospitalidade e o cuidado. E igualmente um papel decisivo no
reforço da renovação espiritual da humanidade. Um outro resultado prático do
evento de Assis foi apontar a dignidade das religiões e um estímulo singular em
favor do diálogo. O belo cenário propiciado pelo evento de Assis, com a união
das diversas representações religiosas, indicava um novo sinal dos tempos. A
nova imagem rompia com o peso histórico de séculos de intolerância, de lutas
religiosas e antagonismos étnicos. A unidade estava sendo agora construída em
torno da oração. Como sublinhou Dalai Lama, a diversidade das religiões deixa
se ser um “problema incômodo, mas um adorno do espírito humano e de sua longa
história”.
Qual deve ser a peculiaridade da Jornada Mundial de Oração pela Paz a
ser realizada entre os dias 18 e 20 de setembro, em Assis, em relação às
demais? A quais instituições pertencem as 400 lideranças religiosas que irão
participar do encontro?
O papa João Paulo II
enfatizou por ocasião do primeiro evento em Assis que o empenho pela Paz não é
algo esporádico, mas um compromisso a ser realizado “todos os dias da nossa
vida”. Daí a preocupação em favor de uma continuidade dos eventos com o
comprometimento das diversas tradições religiosas. Festejando agora em setembro
os trinta anos do histórico acontecimento de Assis, mais um Encontro Mundial de
Oração pela Paz, desta vez promovido pela Comunidade de Santo Egídio, em
colaboração com as Famílias Franciscanas e a Diocese de Assis. A previsão é de
dois dias de painéis de discussão concluídos com uma jornada de oração. O papa
Francisco confirmou sua presença, assim como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu
I, e 400 delegações envolvendo outras lideranças religiosas, mas também
representações políticas e do mundo da cultura.
O encontro a ser realizado em Assis tem como título, “Sede de paz.
Religiões e culturas em diálogo”. Qual é o significado desse tema neste
momento histórico, em que a guerras em curso no Oriente Médio e na África e a
Europa vive o drama das imigrações, por exemplo?
Nesses
tempos marcados pelo agravamento do “desgaste da compaixão” a urgência do apelo
em favor da paz brada aos céus e convoca todas as religiões. Essa “sede de Paz”
deve se irradiar por todo canto, esse é o lema que acompanha o evento. Na visão
do líder da comunidade franciscana de Assis, frei Mauro Gambetti, “diante da
violência furiosa, as religiões devem dar ao mundo uma mensagem
convergente”.
Qual é a relevância dos documentos A igreja e as outras religiões – Diálogo
e Missão (1984 – Secretariado para os não-cristãos) e Diálogo
e Anúncio(1991 – Pontifícia Comissão para o Diálogo Interreligioso) e qual
é a contribuição dos teólogos Pietro Rossano e Jacques Dupuis para as
discussões sobre o diálogo inter-religioso e a temática da paz?
A meu ver, esses são os dois documentos mais abertos produzidos pela
comunidade católica sobre o tema do diálogo entre as religiões. O primeiro,
Diálogo e Missão, foi publicado em junho
de 1984 pelo então Secretariado para os Não-Cristãos. Na ocasião, o cardeal
Francis Arinze estava na direção do dicastério romano, sendo o secretário Marcello
Zago, conhecido por seu empenho em favor do diálogo. O documento é belíssimo,
dedicando uma de suas partes ao tema das formas de diálogo. Reconhece que em
âmbito mais profundo do diálogo, que toca a partilha das experiências de oração
e contemplação, ocorre um “enriquecimento recíproco e cooperação fecunda, na
promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do
homem”. Trata-se do momento singular em que a fé “não se detém diante das
diferenças” abrindo-se ao Mistério maior de Deus, de todas as riquezas de sua
“sabedoria infinita e multiforme”, do Deus “que é maior do que o nosso coração”
(1 Jo 3,20). Quanto ao outro documento, Diálogo e Anúncio, do Pontifício
Conselho para o Diálogo Inter-Religioso em parceria com a Congregação para a
Evangelização dos Povos (1991), também situado no periodo da presidência do
cardeal Francis Arinze, a linha reflexiva é bem consoante com o documento
anterior. O texto contou com a preciosa assessoria do teólogo Jacques Dupuis.
Vale registrar um de seus pontos nodais, quando reconhece a presença do
mistério de salvação nas outras religiões, que respondem afirmativamente ao
convite de Deus “através da prática daquilo que é bom” em suas próprias
tradições. Em nenhum outro documento do magistério eclesial a reflexão sobre o
tema havia alcançado tal patamar. O documento passou por cinco redações,
sofrendo algumas mudanças importantes, sugeridas sobretudo pelo influxo mais
moderado dos participantes da Congregação para a Evangelização dos Povos, cujo
prefeito era na ocasião o cardeal Tomko. Os caminhos de abertura presentes nos
dois documentos citados foram preparados por presenças singulares como a de
Pietro Rossano. Ele foi professor de teologia das religiões
na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, bem como nas universidades
Urbaniana e Lateranense. Teve também singular atuação no Secretariado para os
Não-Cristãos, a partir de 1973, quando foi designado como secretário desse
dicastério romano. Foi talvez um dos nomes marcantes na defesa de um novo
“estilo dialogal” para a igreja católica, pontuado pela abertura fraterna, de
respeito e atenção cuidadosa ao outro, sobretudo aos caminhos inusitados do
Espírito.
Como o papa Francisco está retomando o “Espírito de Assis” neste
momento?
De fato, o papa Fracisco vem
retomando com ênfase esse “Espírto de Assis”, com gestos de compromisso e
abertura que encantam a todos, ou quase todos (sic!). O seu magistério vem
marcado pela ênfase na Misericórdia e na Solidariedade. Como mote contínuo a
convocação feita a toda a Igreja no sentido de “alongar mais o olhar e abrir os
ouvidos ao clamor dos outros povos” (EG 190). Sua atenção ao tema dos
refugiados e de busca da Paz é recorrente. O seu verbo preferido é Dialogar,
envolvendo a todos nessa urgente sinfonia que busca transformar o mundo em
espaço de fraternidade. Fala com ênfase na construção da Paz, que é tarefa
“artesanal”, tecida a cada dia com o impulso dado por Jesus: “Felizes os
pacificadores” (Mt 5,9). O caminho de Assis vem enriquecido com o toque da
ampliação do Cuidado, que agora cobre também a Terra sofrida. É o mesmo amor
doado por Deus que convoca a todos a uma luta que não se restringe ao âmbito da
humanidade, envolvendo igualmente o planeta que habitamos, com seus dramas e
cansaços, com seus anseios e esperanças.
Deseja acrescentar algo?
Sim, gostaria de falar sobre um dos temas mais polêmicos que envolveu a
primeira Jornada de Assis, em 1986. Trata-se da questão da distinção entre o
“estar juntos para rezar” e o “rezar juntos”. É uma distinção sutil, mas que
causou muita polêmica, antes, durante e depois do evento. O temor constante,
lembrado por vários segmentos, estava relacionado com a possibilidade de
sincretismo. Era a palavra recorrente. Diante dos riscos de interpretação, o
papa João Paulo II, já na audiência geral em Roma, em 22 de outubro de 1986, um
pouco antes do evento acontecer, sinalizou o traço “exclusivamente religioso”
da Jornada, indicando a fórmula escolhida: “estar junto para rezar”. Rebate a
ideia de “rezar junto”, ou seja, de uma oração comum, e isto para resguardar o
mistério de cada tradição e o devido respeito pela oração dos outros. Busca
assim descartar qualquer risco de sincretismo no evento. Sobre o tema
debruçou-se o teólogo Jacques Dupuis, em capítulo do livro O cristianismo e as religiões (2001), abordando a delicada questão
da oração inter-religiosa. Mesmo reconhecendo que a fórmula “juntos para rezar”
foi a que ficou consagrada no evento, lança algumas interrogações a respeito. O
que adverte, com razão, é que seria um erro julgar que a fórmula usada em Assis
seria a única possível, levando assim a “regras rígidas e estreitas”. Argumenta
que sem dúvida as circunstâncias específicas do evento de Assis excluíam a
possibilidade de uma oração comum partilhada, mas isso não significa que em
outros casos e circunstâncias essa possibilidade teria que ser também abolida.
O caminho indicado por ele passa pelo exame das situações concretas e de um
juízo pastoral cincunstanciado. Indica, sim, claramente, a possibilidade de uma
oração comum quando as religiões envolvidas inserem-se nos três ramos da
tradição monoteísta: judaísmo, cristianismo e islã. E isto pelo fato das três
beberem na mesma origem histórica da fé de Abraão. São três tradições que
partilham a mesma ideia de Deus numa distinta compreensão de seu Mistério. Na
oração comum entre cristãos e os “outros” a questão se complica um pouco mais,
como indica Dupuis, o que porém não exclui experiências de oração que podem ser
partilhadas, na medida em que os cristãos e os “outros” se colocam humildemente
diante de um Mistério Maior, que escapa a qualquer representação mental
adequada. E conclui com acerto: “Rezar juntos não será senão fazer com que
possam, em certo sentido, se encontrar uns e ´outros` no Espírito de Deus,
presente e operante em uns e outros”.
Publicado no IHU-Notícias de 18/09/2016:
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