O espetáculo da Vida
Faustino Teixeira
A questão da espiritualidade vem
ganhando uma atenção crescente nesse século XXI, numa perspectiva que é
singular e que se distingue da religião. Identifica-se sobretudo como uma
atitude que reintegra o lugar central da vida. Ela “nasce da gratuidade do mundo,
da relação inclusiva, da comoção profunda, do sentido de comunhão que todas as
coisas guardam entre si, da percepção do grande organismo cósmico, pervadido de
acenos e sinais de uma Realidade mais alta e última”[1]. A
espiritualidade diz respeito a “qualidades do espírito humano” (Dalai Lama)
entre as quais podemos identificar o cuidado, que é uma dimensão ontológica do
ser humano. É através do cuidado, do zelo, da diligência, do bom trato e da
atenção que o ser humano revela a sua dimensão de generosidade essencial.
Foi com essa chave significativa que
Carolina Duarte empreendeu o seu lindo trabalho em torno da “Arte de Cuidar”,
tendo por base a espiritualidade do cuidado na relação mãe-bebê[2].
Esse trabalho foi fruto de uma dissertação de mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora
(PPCIR-UFJF). Como indicou a autora no resumo de sua reflexão, o objetivo
visado com o trabalho foi mostrar como as “atitudes de cuidado que emergem a
partir de uma consciência de espiritualidade cotidiana podem transformar a
qualidade da interação entre mães e filhos, desde a fecundação até a primeira
infância da criança”. A novidade da pesquisa, e a plausibilidade de sua
inserção no campo das ciências da religião, foi desvelar a percepção do ato de
nascer com uma visada espiritualizada. Esse clima espiritual envolveu todo o
trabalho, desde a explosão da vida, na experiência primordial do nascimento até
a acolhida dos cuidadores. E ao final, a compreensão viva de uma espiritualidade
do cuidado.
Trata-se de um tema inaugural nas
ciências da religião no Brasil, revelando facetas singulares a serem
investigadas e exploradas, com nuances de uma riqueza única. A abordagem do
nascimento e seus desdobramentos a partir da chave do cuidado revela-se
fascinante, e nesse caso particular, com um colorido ainda mais singular, em
razão da autora ser também doula, ou seja, uma profissional que garante o
suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e depois do parto.
Soma-se à pesquisa acadêmica o toque de uma experiência reveladora, que
favorece novos e sensíveis ângulos de percepção.
O nascimento é uma experiência
fantástica, acompanhado de um encantamento de ressonância diversificada. Todos
saem transformados. Como assinala Francisco Bosco, “quando nasce uma criança,
todos na família renascem com ela. Um homem se torna agora sobretudo pai, e um
pai se torna sobretudo avô. Uma mulher se torna mãe, e a mãe avó. Os irmãos se
tornam tios, madrinhas e padrinhos. Uma criança redefine, a partir de sua
existência, os papeis dos familiares e,
principalmente, religa-os, reinicia os vínculos já afrouxados pelo
caminho natural da evolução do núcleo da família”[3].
Grandes pensadores debruçaram-se
sobre o tema da morte, como Martin Heidegger. Poucos dedicaram-se a pensar o
momento do nascimento. Trata-se de um tema complexo e instigante, pois toca o
fenômeno enigmático do “humano indistinto”. Um dos que se aventuraram a tratar
a questão foi Winnicott, buscando captar esse traço apofático do ser humano no
seu movimento constitutivo de aparecer no mundo. No estágio mais elementar, o
que ocorre é uma relação indiferenciada, não só com o seio da mãe, mas também
com os outros e o mundo. Trata-se de uma experiência fontal, inaugural, que parte
desse momento ainda impreciso da indiferenciação, quando ainda nada significa a
conformação do “eu sou”. A relação do bebê com o seio materno, nessa fase
inicial, é indiferenciada: “o bebê e o objeto são um”. É quando começa,
silenciosamente, a “parte mais inicial da construção da identidade”[4].
Acolher a vida que brota é
desdobrar-se em cuidados, tanto dos cuidadores primordiais, como a mãe e o pai,
como os outros envolvidos nesta receptividade: a parteira, o médico e a doula.
Através de um holding firma-se um
campo de unidade, pontuado pelo amor como traço de uma emoção fundamental.
Trata-se do suporte essencial para a acolhida do outro. É uma dinâmica que pode
estar envolvida por uma espiritualidade iluminadora. É o que busca mostrar
Carolina Duarte em seu livro. O nascimento é, sem dúvida, um espetáculo da
vida, como tão bem mostrou Jo ão Cabral de Melo Neto com o
personagem Seu José, Mestre Carpina, de Morte e vida severina. O imprevisto
nascimento de uma criança interrompe o grito desesperado do retirante Severino,
que queria abreviar sua vida. Com sua sabedoria sertaneja, mestre Carpina
traduz uma esperança nova, e assinala que a vida mesma responde a qualquer
indagação com sua presença viva: “E não há melhor resposta que o espetáculo da
vida”, mesmo quando surge “assim pequena”, mesmo quando brota assim “franzina”,
“mesmo quando é a explosão de uma vida severina”[5].
[1] Leonardo BOFF. Ética
da vida. A nova centralidade. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2009, p.
84.
[2] Carolina de Carvalho DUARTE GUIMARÃES. A arte de cuidar. Espiritualidade do
cuidado na relação mãe-bebê. São Paulo: Fonte Editorial, 2016 (no prelo).
[3] Francisco BOSCO. Renascer. O Globo, 31/12/2014 (Coluna de F.Bosco).
[4] José Carlos MICHELAZZO. As habitações do humano como
expressões do tempo: diálogo entre Heidegger e Dogen. In: Faustino TEIXEIRA
(Org). Mística e literatura. São
Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 52-54.
[5] João Cabral de MELO NETO. Morte e vida severina e outros poemas em voz alta. 8 ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1976, p. 115-116.
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