quinta-feira, 21 de abril de 2016

Outros caminhos

Outros Caminhos

Entrevista concedida à Revista Cristianismo Hoje - Edição 51/Ano 9 - 2016


1)Na sua opinião, quais os motivos pelos quais tantos cristãos, atualmente - e, particularmente, no segmento evangélico - se dizem "cansados com a Igreja"?

Esta questão da crise das instituições religiosas não é um traço particular brasileiro, mas vem ocorrendo por todo canto. O que se verifica é algo singular: uma multiplicação e diversificação das instituições portadoras de sentido, e ao mesmo tempo uma menor fidelidade a elas. São mudanças bem perceptíveis no campo das filiações tradicionais. Como bem observou o antropólogo Pierre Sanchis, mudanças são bem nítidas no âmbito das declarações de pertença religiosa. E isso nem sempre o Censo consegue captar de forma precisa. Com base nos dados apresentados, temos hoje no Brasil uma declaração de crença majoritariamente cristã: são cerca de 87% de de pessoas envolvidas no circuito cristão: 64,6% de católicos e 22,2% de evangélicos (dos quais 13,3% são pentecostais). E mesmo nesse circuito há muita diversificação, bem como interconexões originais. Mas de fato, há um cansaço crescente com respeito às instituições tradicionais, uma certa “desafeição” com respeito aos caminhos mais oficiais. Isto vem se refletindo também no mundo evangélico, com o crescimento dos “evangélicos não determinados”. Eles representam hoje no Brasil um percentual de 21,8% do contingente evangélico, em torno de 5% de toda a população brasileira. São evangélicos que não se enquadram nos canais tradicionais, sendo chamados por alguns de “evangélicos genéricos” ou “evangélicos sem igreja”. É algo que indica uma diversificação na própria pertença evangélica. Muitos daqueles que se “desencantam” com as formas tradicionais de inserção passam a se declarar “sem religião”, uma categoria que também cresce significativamente no Brasil, alcançando a cifra de 8% da declaração de filiação.


2) Desde as origens do protestantismo, o chamado pertencimento eclesiástico é muito enfatizado e estimulado. É na comunidade da fé, conforme sempre disseram os líderes e os fiéis, que a comunhão com Deus e os irmãos é exercida de forma mais efetiva - basta lembrar a ideia bíblica de "ovelhas no aprisco". Hoje, contudo, segundo o IBGE, cerca de 10 milhões de cristãos, no Brasil, assumem sua profissão de fé, mas dizem que não frequentam igrejas. São os que se convencionou chamar de "desigrejados". Diante desse fato, desdobro a pergunta em duas: a) o que mudou, na igreja e na percepção destes cristãos, para que ela (a igreja) já não seja mais considerada indispensável?; e b) Na sua opinião como cientista da religião, o que esse movimento tem representado, em termos de mudança na mensagem e na práxis evangélica, sobretudo na questão da conquista de novos adeptos?

Muita coisa vem mudando no mundo evangélico nas últimas décadas, não há dúvida sobre isso. Acentuo em particular o crescimento pentecostal. É algo que impressiona a qualquer observador. Verifica-se uma “explosão” pentecostal e também uma pentecostalização do protestantismo histórico. Os estudiosos vem apontando um crescimento evangelical nas denominações históricas, algo que é significativo. Em termos de estatística, os evangélicos de missão permanecem em certa letargia, não ultrapassando os 4% de declaração de crença. O fenômeno importante envolve, sim, o mundo pentecostal. A pujança de algumas igrejas, como a Assembleia de Deus, é bem significativa. É ela a responsável pela maior presença pentecostal no Brasil, envolvendo 12,3 milhões de adeptos. Impressionante a forma como se instala e se desenvolve por todo o pais, com um incrível poder de penetração nos lugares mais distantes e inacessíveis. Como indicou Leonildo Campos, os evangélicos – sobretudo pentecostais – mostram um crescimento espantoso: de cerca 4.408 fieis por dia. Gostaria de acrescentar ainda um outro elementos que marca a recente prática pentecostal e neopentecostal: a irradiação de um sincretismo religioso. Aquela “rigidez” anterior ou ascetismo na relação igreja-mundo deixam de ser notas dominantes. O que se vê, e por toda parte, é a introdução de uma dinâmica religiosa sincretizada com elementos de outras tradições religiosa, incluindo aquelas da tradição afro-brasileira. Sem dúvida, não há como negar esse traço tão atual dos “desigrejados” nas religiões evangélicas, que somam cerca de 1/5 de todo o contingente evangélico. Isso é um sinal importante, manifestando um desencontro ou um desencaixe com respeito aos vínculos tradicionais. Isso tem suscitado reflexão e também mudanças importantes na forma de exercício da experiência evangélica e de prática missionária.


3) A recente e crescente contestação aos chamados modelos convencionais de igreja tem adquirido contornos de pós-modernidade, mas pode-se dizer que é fenômeno essencialmente contemporâneo? Se não, onde podemos situar suas origens, particularmente no Brasil?

Trata-se de um fenômeno recorrente, com presença diversificada por toda parte. As religiões continuam marcando sua presença, não tenho dúvida sobre isso, mas agora de forma distinta, com metamorfoses bem evidentes. E ao lado das religiões, o crescimento de espiritualidades laicais, que não se encaixam no tradicional perfil religioso. A sede de espiritualidade é talvez um dos fenômenos mais característicos de nosso tempo. Uma sede que traduz uma resistência viva aos caminhos da modernidade, pontuada pelo anonimado, pela aceleração impressionante, acompanhada de individualização e burocratização. Tenho dito com frequência, na mesma linha de outros pensadores, que o avanço da modernidade não produziu um recuo da religião, mas uma outra forma de exercício da dinâmica religiosa. As religiões permanecem, bemo como as espiritualidades – em estado crescente – transformando-se sob o impacto da individualização e globalização. Como lembrou o historiador francês, Frédéric Lenoir, a busca pelas respostas a um mundo de incertezas permaece acesa, mas não mais “como no passado, no seio de uma tradição imutável ou mediante um dispositivo institucional normativo”.


4) Ao longo da história da Igreja Cristã e, mais particularmente, nos últimos 50 anos, quais foram os principais momentos de crítica ao chamado sistema religioso, quem foram seus protagonistas e motivações e a quais resultados isso levou?

Podemos mencionar como marco fundamental, no campo do catolicismo, o evento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi um terremoto na vida da igreja católica, cujas repercussões continuam ainda em curso. O evento suscitou muita reação e também muita resistência, dado o seu potencial renovador, mas vemos hoje com o papa Francisco um despertar maravilhoso de seus potenciais mais incisivos. Em viva sintonia com o espírito conciliar, Francisco vem provocando mudanças essenciais no modo de ser igreja, retomando uma dinâmica evangélica que estava sob cinzas. Os efeitos dessa dinâmica poderão, talvez, ser sentidos nos próximo anos, trazendo um novo alento para a experiência dos católicos. Esse fermento renovador poderia também começar a acontecer no mundo evangélico, que viveu momentos importantes de renovação em décadas anteriores, mas que no momento atual vive um tempo de certa estagnação ou mesmo de sedução fundamentalista.


5) Existe um elevado percentual de cristãos evangélicos que, simplesmente, optaram por seguir sua caminhada de fé longe da igreja. Eles não sofreram decepções ou foram explorados por líderes, necessariamente (embora tais elementos não possam ser desconsiderados na análise do fenômeno); porém, prescindem de uma liderança formal e do pertencimento eclesiástico. Eles se pergunta, afinal de contas, por que precisam de uma igreja? O que se pode dizer disso à luz da Ciência da Religião e que futuro se pode esperar, a médio e longo prazo, da Igreja, tal como a conhecemos hoje?


No meu modo de ver, a saída essencial está na busca de uma nova espiritualidade, que saiba conjugar com sabedoria o humus profético e a vida espiritual. Com base na sabedoria de uma grande mística, Teresa de Ávila, o desafio consiste em buscar a harmonia entre Maria e Marta. As duas devem caminhar sempre juntas.  Não creio, sinceramente, que o único caminho seja o da vinculação institucional. É possível, e viável, que uma vida espiritual madura e autêntica possa ser vivida igualmente em caminhos alternativos. A vida espiritual é essencial, e que possa ser vivida de maneira cada vez mais holística, integrando o ser humano nessa linda cadeia da vida, em todas as suas formas. Não somos o “umbigo do mundo”, mas parte integrante de uma teia muito maior, que nos envolve e abraça. A vida espiritual hoje deve estar marcada por essa dinâmica de atenção e cuidado, de ternura e delicadeza com o horizonte mais amplo da vida. Mais importante que a declaração de crença ou ou exercício de exclusividade na pertença religiosa é a disposição dialogal e a capacidade de acolhida do mundo da alteridade. Como disse recentemente o papa Francisco – em entrevista concedida a Eugenio Scalfari – o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e nos distanciam. Mas o que é mais importante è que elas nos conduzam ao Bem. Esse é o passo fundamental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário