segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Caminhos do diálogo inter-religioso a partir do Vaticano II

Caminhos do diálogo interreligioso a partir do Vaticano II

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

O Concílio e a abertura de caminhos

            O Concílio Vaticano II (1962-1965) significou um dos eventos mais importantes no âmbito do cristianismo contemporâneo. Trata-se de um acontecimento pioneiro e de originalidade única, que provocou “a mais vasta operação de reforma” realizada no âmbito da igreja católica no século XX. Foi um acontecimento que acionou uma energia inovadora, um espírito de abertura e uma sede de transformação inusitados. Certamente a “carta magna” para o itinerário da comunidade católica no novo milênio[1].

            A abertura suscitada pelo concílio aconteceu sobretudo em três campos: de renovação no interior da igreja, de sintonia com  o mundo moderno e de busca da unidade dos cristãos. Deve-se sublinhar que também no âmbito do diálogo interreligioso o concílio teve um papel fundamental. Com o concílio nasce um espírito novo, de otimismo e positividade, também na dinâmica relacional com as outras tradições religiosas. Como indicou Rahner, com ele a igreja orientou-se decisivamente para um tempo novo nas relações interreligiosas, de reconhecimento de seu valor e dignidade[2].

            Vale assinalar a presença dessa questão, ainda que de forma indireta, na preciosa declaração conciliar sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae – DH)[3]. Trata-se de uma declaração que forneceu uma “cognição importantíssima” para o reconhecimento da dignidade essencial da pessoa humana, e o seu direito de buscar a verdade religiosa seguindo os parâmetros da reta consciência (DH 3). Firma-se assim com este documento conciliar um importante pressuposto para a dinâmica ecumênica e interreligiosa, na medida em que vem questionada a perniciosa teoria dos direitos exclusivos da verdade, até então considerada uma prerrogativa da igreja católico-romana.

            O tema das outras religiões aparece também na Lumen Gentium (LG), que é o documento conciliar que aborda a questão da igreja. Ao tratar o plano de salvação que envolve os membros das outras religiões, essa constituição dogmática reconhece a possibilidade de uma resposta positiva para aqueles “que buscam a Deus com coração sincero” e levam uma vida reta, mesmo que desconhecendo o evangelho. Isso em razão do influxo positivo da graça. E numa reflexão teológica bem típica do período, o documento reconhece que “tudo o que de bom e verdadeiro se encontra entre eles, a igreja julga-o como uma preparação evangélica” (LG 16). Há o reconhecimento da positividade desse caminho espiritual extra ecclesia, mas que deve ser “sanado, elevado e aperfeiçoado” pela igreja (LG 17). Vigora assim uma perspectiva de ordenação dessa positividade religiosa ao “grêmio do Povo de Deus” (LG 18). Trata-se de uma reflexão bem sintonizada com a linha teológica do acabamento, bem em voga na ocasião, e defendida por importantes teólogos como Jean Daniélou e Henri de Lubac.

            Esse reconhecimento da operação invisível da graça entre todos aqueles de boa vontade é também sublinhado de forma bem positiva no documento conciliar que aborda a questão da igreja no mundo de hoje (Gaudim et Spes – GS). Há aqui o reconhecimento da dignidade soteriológica não apenas dos membros de outras tradições, mas também de não religiosos e ateus, na medida em que respondem positivamente ao mistério através de uma vida reta. A todos eles vem oferecida a possibilidade de se associarem a Deus, por caminhos que são gratuitos e velados ao olhar humano (GS 22).

            O tema das relações dialogais ganha um tratamento específico na declaração Nostra Aetate (NA), que aborda justamente o campo do diálogo da igreja com as outras tradições religiosas. Há aqui o reconhecimento do valor das religiões enquanto busca de resposta aos “profundos enigmas” que tocam a condição humana (NA 1). Abre-se espaço para o reconhecimento do valor destas diversas tradições, passando pelo hinduísmo, budismo, outras religiões, até chegar às religiões de traço monoteísta como o islamismo e o judaísmo. A religião judaica ganha um lugar singular, em razão dos vínculos espirituais que a irmanam com o cristianismo (NA 4). Visando uma “ética do diálogo”, a declaração convoca ao reconhecimento do que há de verdadeiro e santo nas outras tradições, e aponta para o irremediável caminho dialogal: “Não podemos, na verdade, invocar a Deus como Pai de todos, se recusarmos o tratamento fraterno a certos homens, criados também à imagem de Deus” (NA 5).

            Como em todos os textos do Vaticano II, percebe-se na declaração reverberações de uma teologia do acabamento. O juízo salutar acerca das outras religiões não vem acompanhado de uma reflexão acolhedora e explícita sobre os traços positivos que envolvem estas religiões, objetivamente, no Mistério salvífico de Deus. O acento recai mais sobre “as intenções subjetivas dos membros das outras religiões, sem levar a sério o desafio colocado à fé cristã pela pluralidade das tradições religiosas, considerada na sua positividade histórica”[4]. Vigora nos documentos, com raras exceções, a perspectiva apontada na Lumen Gentium 16 ou na Ad Gentes 3, onde as distintas tradições religiosas vêm situadas como “marcos de espera” ou “preparação evangélica” para seu remate na tradição cristã. 

O diálogo no Pós-Concílio

            Essa visão teológica do acabamento estará em vigor também no pós-concílio, como no caso da exortação apostólica de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (EN)[5], sobre a evangelização no mundo contemporâneo, publicada em 1975, na sequência da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos. Volta-se o olhar para as expressões religiosas de grandes porções da humanidade, reconhecendo ali o “eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração” (EN 53). Ainda que reconhecendo a riqueza do “patrimônio”  religioso que envolve as “religiões não-cristãs”, o documento utiliza o mesmo jargão do Vaticano II, que fala em “preparação evangélica”, tomado de Eusébio de Cesaréia. Defendendo uma diferenciação qualitativa entre tais tradições e o cristianismo, a Evangelii Nuntiandi assinala que elas são “expressões religiosas naturais” e implicam uma procura de Deus “às apalpadelas”, distanciando-se de uma “relação autêntica e viva com Deus”, só possível de ser encontrada no cristianismo. Esse sim, enquanto “religião de Jesus”, traduz o estabelecimento de uma relação de objetividade com respeito ao plano de Deus (EN 53). Trata-se de uma posição teológica em linha de sintonia com Jean Daniélou, perito conciliar, que também estabeleceu semelhante distinção entre as religiões naturais e a religião sobrenatural, identificada com o cristianismo. Na visão de Daniélou, enquanto as religiões naturais “atestam o movimento do homem para Deus; o cristianismo é o movimento de Deus para o homem, que, em Jesus Cristo, vem apanhá-lo, para conduzí-lo a Ele”[6].

            No livro-entrevista do cardeal Ratzinger, Rapporto sulla fede, publicado em 1985[7], o tema do cristianismo e as religiões vem retomado numa perspectiva semelhante à adotada por Paulo VI na Evangelii Nuntiandi. Trata-se de uma abordagem que se situa no contexto da avaliação mais pessimista de Ratzinger sobre o pós-concílio, que a seu ver teria contribuído para o processo progressivo de “decadência” eclesial, sobretudo em razão de uma “abertura indiscriminada ao mundo”. Para Ratzinger, também nesse âmbito da abertura salvífica aos outros teria ocorrido exageros no pós-concílio, particularmente em razão do influxo de teorias como a do “cristianismo anônimo” defendida por autores como Karl Rahner[8]. Como consequência de tal abertura, vislumbra dois riscos precisos: a “diminuição da essencialidade do batismo” e o enfraquecimento da “tensão missionária”. Riscos que já tinham sido percebidos por autores como Henri de Lubac, na década de 1940[9]. 

            O problema decisivo da interpretação do Concílio, já levantado pelo cardeal Ratzinger, será debatido no Sínodo extraordinário de 1985, chamado a avaliar os resultados do Concílio Vaticano II, após vinte anos de experiência. Este evento significou uma “tomada de posição decidida no ´conflito de interpretações` do Concílio”[10]. Em seu relatório final, o Sínodo decide por uma interpretação do Vaticano II que reforça sua continuidade com o Vaticano I e, “através dele, com a contra-reforma, oficializando assim uma ´recepção` do Vaticano II que não faz justiça a todas as suas virtualidades, precisamente naquilo que elas tinham de novo e de verdadeiramente original”[11].

            O Sínodo de 1985 insere-se, assim, nessa dinâmica de “redução ao intra-eclesial”, de busca de um caminho mais seguro para a igreja e de ênfase no traço doutrinal[12]. Face ao risco de visões autonomistas da modernidade, firma-se um refrão visto como fundamental: “a volta ao sagrado”, mas numa linha bem circunscrita e cristomonista. Daí não se estranhar a reação crítica diante de um termo como pluralismo, recusado pelos bispos como negativo, por evocar dissolução ou perda de identidade. Prefere-se adotar outro termo, “pluriformidade”, que garantiria melhor a catolicidade[13].

            Toda a dinâmica eclesial católica a partir dessa segunda metade dos anos 1980 será pontuada pela ideia de “nova evangelização”, capaz de fazer frente à crescente difusão do secularismo e do indiferentismo. Como horizonte visado, uma “fé límpida e profunda”. Nesse projeto de uma nova identidade católica, a dinâmica de instauração de uma civilização mais cristã torna-se essencial. É tempo de um dinamismo missionário mais efetivo, que supere um certo “afrouxamento” pós conciliar. Daí a ênfase no anúncio explícito de Cristo como um dado nuclear, visto como mais fundamental do que uma compreensão de evangelização em sentido lato, expressa por exemplo na propagação dos “valores cristãos”[14].

            A Carta Encíclica de João Paulo II sobre a validade permanente do mandato missionário, Redemptoris Missio (RM - 1990), insere-se como luva nessa perspectiva de ênfase no testemunho explícito e da necessidade da igreja. Firma-se a centralidade do anúncio, como “prioridade permanente da missão” da igreja, não se confundindo nem se equivalendo ao diálogo interreligioso[15]. João Paulo II reconhece em sua encíclica que o diálogo interreligioso é importante, como parte integrante da missão evangelizadora da igreja (RM 55), mas “não dispensa a evangelização”. Essa abertura ao diálogo não esconde uma tônica que é eclesiocentrada: “O diálogo deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a Igreja é o caminho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação” (RM 55).

            Toda a conjuntura eclesiástica do período estava centrada nessa prioridade do anúncio sobre o diálogo. Há que lembrar, porém, que no âmbito do mesmo magistério católico, dois documentos muito importantes e de grande abertura tinham sido publicados neste período. O primeiro, Diálogo e Missão (DM), do Secretariado para os Não-Cristãos (1984)[16], e o segundo, Diálogo e Anúncio (DA), do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso (1991)[17]. Os dois documentos traduzem uma perspectiva de grande abertura e sensibilidade para a questão dialogal. Como singularidade, a percepção do diálogo interreligioso como parte integrante da missão evangelizadora da igreja. O diálogo vem concebido como “um estilo de ação, uma atitude e um espírito que guia o comportamento. Implica atenção, respeito e acolhimento para com o outro, a quem se reconhece espaço para a sua identidade pessoal, para as suas expressões, os seus valores” (DM 29). Movida pelo espírito dialogal, a igreja vem convocada a valorizar “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus” (DM 41). Dispõe-se também à ação silenciosa do Espírito que, segundo tempos misteriosos de Deus, “abre às pessoas e povos, os caminhos do diálogo para superar as diferenças raciais, sociais e religiosas, e enriquecer-se reciprocamente” (DM 44). Em mesma linha de abertura, o documento Diálogo e Anúncio indica que o diálogo representa um grande desafio, “o primeiro a ser enfrentado” (DA 3), sobretudo num mundo pluralista, em que o papel das tradições religiosas não pode ser descuidado (DA 4a). O diálogo não pode ser visto como plataforma para a conversão. Ele é auto-finalizado e guarda “o seu próprio valor” (DA 41). Requer um espírito de equilíbrio, de abertura e acolhimento, de busca comum da verdade, mas também “a prontidão em se deixar transformar pelo encontro” (DA 47). O diálogo autêntico envolve não só conhecimento mútuo, mas também mútuo enriquecimento, ou seja uma disposição sincera em “aprender e receber dos outros e por intermédio deles os valores positivos de suas tradições” (DA 49). E de forma novidadeira, nunca antes alcançada no magistério católico, o segundo documento, ao tratar a delicada questão do mistério de salvação em Jesus Cristo, reconhece que os membros de outras tradições religiosas respondem afirmativamente ao convite de Deus “através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência” (DA 29).

            Vale sublinhar que o documento Diálogo e Anúncio vinha sendo preparado desde 1986, ficando pronto antes mesmo da publicação da Redemptoris Missio de João Paulo II. Sua divulgação foi postergada para alguns meses depois da  publicação da encíclica papal. Chegou-se inclusive a questionar em Roma a necessidade de sua publicação, já que a encíclica também tratava a questão do diálogo[18]. Na verdade, entre os dois documentos havia uma distinta ênfase[19], e a perspectiva de anúncio indicada na encíclica foi a que predominou nos anos seguintes, marcando um modo específico de lidar com a questão do diálogo interreligioso na igreja católica.

            Ainda que pontuado por uma lógica doutrinal bem definida, com ênfase na afirmação identitária católica, o pontificado de João Paulo II deixou também como herança traços de um espírito dialogal, sobretudo em alguns gestos de sua presença pública, como no caso da importante Jornada Mundial de Oração pela Paz, realizada na cidade de Assis (Itália), em 1986[20]. Pela primeira vez na história, inúmeras lideranças religiosas mundiais encontraram-se para juntos rezar e testemunhar a natureza transcendente da paz. Em seu discurso proferido aos representantes das várias religiões do mundo, ao final do evento de Assis, João Paulo II assinalou: “Ou aprendemos a caminhar juntos em paz e harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros”. Na fundamental luta em favor da paz, o que se destaca é o “fundamento comum” que rege a ação conjunta das diversas tradições em favor de um horizonte distinto. O papa vislumbra na peregrinação de Assis a antecipação do grande sonho de Deus para a humanidade: “uma viagem fraterna na qual nos acompanhamos uns aos outros rumo à meta transcendente que ele estabelece para nós”[21].

            O caráter pioneiro do evento provocou inúmeras resistências, tendo o papa que se explicar junto à cúria romana em dezembro de 1986. João Paulo II sinalizou que a jornada de Assis evidenciou a presença de uma “unidade escondida e radical” estabelecida pelo Verbo divino entre homens e mulheres. Não nega a presença da diferença entre os mesmos, mas sublinha que ela é menos importante do que a basilar unidade que a tudo preside. O acontecimento de Assis é visto, assim, como uma demonstração visível “daquilo que preside e significa o esforço ecumênico e o esforço pelo diálogo interreligioso recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II”[22].

            Esse espírito de Assis sofre, porém, um grande impacto com a publicação da declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), em setembro de 2000, assinada pelo cardeal Joseph Ratzinger, que na ocasião dirigia esse importante dicastério romano. A declaração romana causou surpresa e consternação nos diversos setores que trabalhavam a questão do ecumenismo e do diálogo interreligioso. Tinha por objetivo convocar toda a igreja a uma retomada do dever missionário e do “mandato” evangelizador. O que significou, na verdade, foi um entrincheiramento identitário e um enquadramento do pluralismo religioso, destituído de sua valência de princípio. Como característica, um tom muito negativo, que destoa de importantes documentos do magistério que tratam o tema do diálogo. As outras tradições religiosas são relegadas à condição de menoridade, e seus membros confinados a uma “situação gravemente deficitária” com respeito aos adeptos da igreja católica, vista como detentora da plenitude dos meios de salvação.

            A busca pela firmeza identitária e a crítica à relativização ganham continuidade no pontificado de Bento XVI, que se inicia em abril de 2005. A dinâmica dialogal permanece em segundo plano com respeito ao essencial imperativo do anúncio explícito. Mesmo com respeito ao Concílio, busca-se uma hermenêutica que assegure a continuidade com a tradição, favorecendo destaque aos textos que confirmem um melhor enquadramento na lógica restauradora prevista. Uma ênfase especial vem concedida ao Catecismo da Igreja Católica, alçado a uma singular centralidade. Ao diálogo vem reservado um restrito espaço, e alguns dos impasses na condução estratégica do pontificado relacionam-se com dificuldades precisas no modo de lidar com esta questão.

            Em linha de continuidade com sua atuação na CDF, o papa Ratzinger manteve-se um firme defensor da “doutrina pura e íntegra, sem atenuações nem desvios” e confirmou seu projeto no pontificado como uma obra de continuidade na defesa do patrimônio doutrinal. Não poucos teólogos que se dedicavam ao tema do diálogo e do pluralismo religioso foram objeto de perseguição ou censura nesse período de presença ratzingeriana em Roma. Entre os nomes de teólogos advertidos: Leonardo Boff (1985), Tissa Balasuriya (1997), Antonii de Mello (1998), Jacques Dupuis (2001), Roger Haight (2004) e Jon Sobrino (2006), dentre outros.

Esperança de retomada dialogal

            Um novo clima de esperança instaura-se na igreja católica com o pontificado de Francisco, iniciado em março de 2013. É como o vigor das brasas pudessem novamente remover camadas de cinzas que impediam o calor e o brilho de uma dinâmica evangelizadora novidadeira. Como indicou com razão Leonardo Boff, é como se uma “nova primavera” pudesse mostrar seu rosto depois de um longo inverno. O papa Francisco “trouxe esperança, alívio, alegria de viver e pensar a fé cristã. A igreja voltou a ser um lar espiritual”[23]. Esperança que é também para aqueles que acreditam no ecumenismo e no diálogo das religiões. Logo no início de seu pontificado, no encontro com representantes das igrejas e comunidades eclesiais, e de outras religiões – em 20 de março de 2013 -, assinala sua vontade de dar continuidade ao caminho de abertura indicado pelo Concílio Vaticano II. Tanto no campo ecumênico como do diálogo com as outras religiões. Sublinha estar ciente do irrevogável desafio em favor “da promoção de amizade e respeito entre homens e mulheres de diferentes tradições religiosas”. Uma responsabilidade que se agiganta diante da imensa tarefa de “amar e guardar” o mundo e toda a criação. E amplia ainda mais esse campo dialogal, ao envolver aqueles que não se acham vinculados a nenhuma tradição religiosa, mas que “andam à procura da verdade, da bondade e da beleza”. São também, segundo o papa, “preciosos aliados” nesse trabalho de afirmação da dignidade humana e de instauração de uma convivência pacífica entre os povos[24].

            Há que destacar a mudança de tom ao tratar os membros das outras tradições religiosas. Não são mais nomeados negativamente, enquanto não-cristãos, mas como “estimados amigos”[25]. Verifica-se uma grande sintonia com o modo de tratamento concedido aos fiéis de outras tradições pelos bispos asiáticos, pioneiros no diálogo interreligioso. Eles também tratam esses fiéis com a dignidade de sua identidade e os chama de “nossos amigos”[26].

            Uma chave importante para entender a sensibilidade dialogal do papa Francisco é sua ênfase na humildade e na simplicidade. Isso faz lembrar a ousada reflexão da Lumen Gentium 48, ao tratar da índole escatológica da igreja. Uma nota que confere maior humildade à igreja, convidando-a ao permanente processo de abertura e purificação[27]. Ao falar para o episcopado brasileiro, em sua visita ao país, Francisco falou sobre a lição que deve ser sempre recordada pela igreja: a de não “afastar-se da simplicidade”, pois do contrário ela “desaprende a linguagem do Mistério”[28]. A simplicidade é um dos traços essenciais para compreender e viver o desafio do diálogo entre as religiões. Não há possibilidade de acesso verdadeiro ao outro senão mediante a humildade e a simplicidade. São passos fundamentais para manter acesa a Alteridade do Deus sempre maior, e a abertura despojada à pluralidade de caminhos que levam a Ele.

            O papa Francisco tem falado recorrentemente de uma “cultura do encontro”. Em seu discurso para a classe dirigente do Brasil, e núcleos de intelectuais e artistas – no Teatro Municipal do Rio de Janeiro -, em julho de 2013, o bispo de Roma falou com ênfase no diálogo. Sinalizou que esta é a resposta que dá aos líderes que lhe pedem conselho: “diálogo, diálogo, diálogo”. É mediante a “cultura do encontro”, e de troca de dons, que se dá o avanço dos povos. Trata-se de “uma cultura na qual todo mundo tem algo bom com que contribuir, e todos podem receber algo bom em troca. O outro sempre tem algo que me dar quando sabemos nos aproximar dele com atitude aberta e disponível, sem preconceitos”[29].

            Não há futuro para a sociedade sem diálogo, lembrou o papa Francisco no Teatro Municipal do Rio. É o diálogo que suscita as mais irradiadoras energias morais. Um diálogo que deve envolver as mais distintas “riquezas culturais”, mas também as tradições religiosas, “que desempenham um papel fecundo de fermento na vida social e de animação da democracia”[30].

            A igreja anunciada por Francisco é aquela que assume o “ícone de Emaús”, que abre as portas, que deixa de ser “demasiado autorreferencial”, que se coloca em atitude de escuta, mas que se arroja ainda mais, fazendo caminho com os outros, “pondo-se em viagem com as pessoas”[31]. Esse toque de abertura, de busca e de alegria é talvez o segredo mais impressionante da sedução provocada por Francisco em toda parte. Dentre as posturas que indica como mais evangélicas para a igreja, e que são fundamentais para o diálogo, estão a esperança, a alegria e a humildade. Convoca toda a igreja ao exercício de “deixar-se surpreender por Deus”, de deixar-se surpreender por seu amor, com abertura permanente para acolher “suas surpresas”[32]. E deixar-se “surpreender por Deus” é também deixar-se transformar pelo encontro (DA 47). Isso é diálogo. Abrir-se ao espetáculo da ação novidadeira do Espírito, mesmo além das fronteiras da igreja: “É uma verdade incontestável que o Espírito de Deus está agindo em todas as religiões tradicionais. Dialogar é então uma viagem em companhia do Espírito para descobrir de onde vem e para onde vai a sua graça”[33].

            O que favorece, e muito, essa perspectiva de abertura dialogal de Francisco é sua presença de “pastor”, que fala muito mais forte que a presença de um papa “doutor”, que se fixa mais no encaminhamento doutrinário e disciplinar. Francisco vem com um novo aroma, uma nova fragrância pastoral, aberta e atenta aos sinais dos tempos. Daí ter assumido o belo lema da Gaudim et Spes 1: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.

            Abertura dialogal e respeito à diferença são traços vivos na dinâmica pastoral de Francisco. E aqui novamente, a presença inspiradora do Vaticano II, em sua declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae 3). O sagrado respeito aos caminhos de busca do humano, também em matéria religiosa. O reconhecimento do direito da busca comum da verdade, que brota do sacrário da consciência. Igualmente o reconhecimento de uma laicidade que seja mediadora nessa importante tarefa em favor de uma “convivência pacífica entre as diferentes religiões”, que saiba igualmente respeitar e valorizar “a presença da dimensão religiosa na sociedade”[34].  

(Publicado no livro: Agenor BRIGHENTI & Francisco Merlos ARROYO (Orgs). O Concílio Vaticano II: batalha perdida ou esperança renovada ? São Paulo: Paulinas, 2015, p. 244-261)

           

           

           

           
           

           
           

           

           

           

           

           

           

             


           



[1] Walter KASPER. Il vangelo di Gesù Cristo. Brescia: Queriniana, 2012, p. 227.
[2] Meinold KRAUS. La fatica di credere. Cinisello Balsamo: Paoline, 1986, p. 98 (a colóquio con Karl Rahner).
[3] Para a abordagem dos documentos do Concílio Vaticano II recorreu-se a: COMPÊNDIO do Vaticano II. Constituições, decretos, declarações. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1968.
[4] Claude Geffre. Verso una nuova teologia delle religioni. In: Rosino Gibellini (Ed.). Prospettive teologiche per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003, p. 356.
[5] Paulo VI. A evangelização no mundo contemporâneo – Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1976 (Documentos Pontifícios 188).
[6] Jean Daniélou. Sobre o mistério da história. São Paulo: Herder, 1964, p. 106. Uma posição semelhante será defendida pela Comissão Teológica Internacional, no documento O cristianismo e as religiões, publicado em 1997 (São Paulo: Loyola, 1997). Ver em particular o n. 103.
[7] Vittorio MESSORI. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985 (A colloquio con Joseph Ratzinger).
[8] Ibidem, p. 211. Sugestivo perceber que esta resistência de Ratzinger ao cristianismo anônimo de Rahner já estava presente em sua clássica obra: O novo povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974, p. 324.
[9] Henri de LUBAC. Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1947, p. 183. De Lubac indaga: “Se todo homem pode ser salvo por um sobrenatural anonimamente adquirido, como podemos estabelecer o dado do dever de reconhecer expressamente esse sobrenatural na profissão de fé cristã e na submissão à Igreja católica?”.
[10] Carlos PALÁCIO. Teologia, magistério e ´recepção` do Vaticano II. Perspectiva Teológica, v. 22, n. 57, p. 153, mai./ago. 1990.
[11] Ibidem, p. 153.
[12] Não é de se estranhar que a ação entendida como a mais importante produzida pelo Sínodo de 1985 foi a recomendação de composição de um catecismo, universal que pudesse ser um ponto de referência para os cristãos. Sua publicação se dará em outubro de 1992, por ocasião do trigésimo aniversário da abertura do Vaticano II. Em sua Carta Apostólica Porta Fidei (2011), o então papa Bento XVI vai identificar o catecismo como um “verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II” (n. 4).
[13] Aloísio LORSCHEIDER. Testemunho sobre o Sínodo Extraordinário na luz do Vaticano II, passados vinte anos. Concilium, v. 208, n. 6, p. 87, 1986.
[14] Sínodos dos Bispos. Testemunhas do Cristo. Petrópolis: Vozes, p. 14, 1992 (Documentos Pontifícios, 243 – Assembleia Especial para a Europa).
[15] João Paulo II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Carta Encílica Redemptoris Missio. Petrópolis: Vozes, n. 44, 1991 (Documentos Pontifícios, 239).
[16] Secretariado para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões. Diálogo e Missão. 2 ed.  São Paulo: Paulinas, 2002.
[17] Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso. Diálogo e Anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991 (Documentos Pontifícios, 242).
[18] Veja a respeito a introdução à edição francesa do documento Diálogo e Anúncio feita pelo cardeal Francis Arinze, então Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso: Dialogue et Annonce. Roma: Cité du Vatican, 1991, p. 251.
[19] Jacques Dupuis. Dialogo e annuncio in due recenti documenti. La Civiltà Cattolica, n. 3405, p. 221-236, 1992.
[20] Ao evento de Assis podem-se acrescentar o belo discurso de João Paulo II aos jovens muçulmanos em Casablanca, em agosto de 1985, e a visita à sinagoga de Roma, em abril de 1986. São eventos que, como lembrou Pietro Rossano, inserem “o diálogo interreligioso na consciência e no dever da humanidade, como resposta ao desígnio unitário de Deus para a família humana”: Pietro Rossano. Dialogo e annuncio cristiano. L´incontro con le grandi religioni. Cinisello Balsamo: Paoline, 1993, p. 370. Destaca-se no discurso pronunciado pelo papa aos representantes da comunidade judaica de Roma a consideração sobre a “vocação irrevogável” de Israel, que abre pistas fundamentais para o reconhecimento da dignidade da diferença, essencial para qualquer diálogo.
[21] Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nel magistero pontifício (1963-1993). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994, p. 416 (a cura di Francesco Gioia).
[22] Ibidem, p. 434 ( e também p. 431).
[23] Leonardo Boff. Papa Francisco traz uma nova primavera da Igreja:
[24] Discurso do Santo Padre Francisco no encontro com representantes das Igrejas e comunidades eclesiais, e de outras religiões:
[25] Uma alusão feita na mensagem do papa Francisco aos muçulmanos por ocasião da conclusão do Ramadã (´Id al-Fitr), em 10 de julho de 2013. Em discurso na cerimônia de boas-vindas na visita ao Brasil fala no estabelecimento de um “diálogo de amigos”.
[26] Veja por exemplo o documento de síntese da Federação das Conferências Episcopais da Ásia – O que o Espírito diz às Igrejas: Sedoc, v. 33, n. 281, p. 45, julho-agosto de 2000.
[27] Algo também lembrado com vigor por Paulo VI na Evangelii Nuntiandi 15, ao recordar que a igreja “tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamento novo do amor”.
[28] Palavras do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 91.
[29] Ibidem, p. 83.
[30] Ibidem, p. 82.
[31] Ibidem, p. 98.
[32] Ibidem, p. 24.
[33] Federação das Conferências Episcopais da Ásia – O que o Espírito diz às Igrejas, p. 46.
[34] Palavras do papa Francisco no Brasil, p. 82. Muito bonita e expressiva a bênção interreligiosa dada por papa Francisco em seu encontro com os representantes dos meios de comunicação social, em 16 de março de 2013: “Disse que de coração vos daria a minha bênção. Uma vez que muitos de vós não pertencem à Igreja Católica e outros não são crentes, de coração concedo essa bênção, em silêncio, a cada um de vós, respeitando a consciência de cada um, mas sabendo que cada um de vós é filho de Deus, que Deus vos abençoe!”.

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