segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Thomas Merton e o canto das coisas

Thomas Merton e o canto das coisas


Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF


Introdução

É sempre motivo de muita alegria poder escrever sobre Thomas Merton, esse místico singular que adornou de vida e alegria a minha jornada existencial, espiritual e acadêmica. É uma paixão antiga, herdada de meus pais e curtida desde a adolescência. Na ampla biblioteca de minha casa em Juiz de Fora a seção dedicada a Merton ocupava uma parte importante do arquivo familiar. As primeiras leituras, iniciadas com a Montanha dos sete patamares, provocaram de imediato uma grande sedução, que desde então só se aprofundou. A presença de Merton me acompanhou durante os estudos universitários, e também na pós-graduação em teologia. Depois, já como professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, pude orientar dissertações e teses sobre este místico singular, que revela facetas das mais diversas e ricas para novos e enriquecedores trabalhos de aprofundamento de seu penamento.

Escolhi como tema de reflexão para essa homenagem uma questão que vem me tocando de forma muito particular nos últimos anos, e que diz respeito ao jeito inovador e criativo como Merton viveu, refletiu e praticou sua espiritualidade no tempo e na história. Merton aponta caminhos novidadeiros para o entendimento desta questão, e de forma profética e antecipadora, antes mesmo do Concílio Vaticano II (1962-1965) se firmar como expressão de vida eclesial dialogal e inserida na dinâmica histórica.

O objetivo aqui é destacar os meandros da reflexão de Merton sobre a vida contemplativa em sua dinâmica de acolhida dos sinais dos tempos. Daí sublinhar o tema da sintonia espiritual com o canto das coisas, um tema tão caro a Thomas Merton. Interessante perceber como toda a dinâmica espiritual que marcou a trajetória desse místico trapista foi se revelando cada vez mais terrenal, acolhedora e dialogal. Estamos diante de um místico profundamente domiciliado na tradição cristã, que bebeu como poucos, nas fontes mais vivas desse patrimônio de mistério, e que simultaneamente ao seu aprofundamento espiritual, foi se abrindo a novos e desafiadores horizontes. Os passos dessa caminhada espiritual foram muito bem destacados por um de seus mais importantes biógrafos, William H. Shannon, que indicou claramente a interseção dessa interlocução criadora entre o seu compromisso com a perspectiva cristã, a ampliação de sua abertura espiritual e a receptividade dialogal a outras grandes tradições religiosas[1].


A contemplação  no tempo

            Thomas Merton reconhece em página de seu diário, de 06 de fevereiro de 1967, que suas melhores obras  são aquelas produzidas após 1957, que é o ano em que recebe Ernesto Cardenal como postulante no mosteiro de Gethsemani. Destaca-se a obra Novas sementes de contemplação, publicada em 1961. Ali aparece uma visão mais aberta da vida contemplativa. Nessa obra “Merton liberta-se da moldura necessariamente eclesial e se distancia definitivamente de uma abordagem abstrata, descritiva e racionalizante da contemplação. Ele toma o caminho da intuição e da experiência existencial”[2].  O monge trapista reagia não só ao “abafamento” do tomismo, vigente em seu tempo, como à rotina formalista da ordem em que pertencia. Seu desconforto vem expresso em várias ocasiões. Buscava uma vida autêntica, para além da “rotina formalista, abstrata, de exercícios religiosos”. O coração pedia algo diverso, mais aberto e menos rígido. Chegou mesmo a propor, em julho de 1958, um projeto de mosteiro diverso, “sem programa”, centrado na dinâmica vital; um mosteiro mais simples e leve, sem hábito especial, aberto para as iniciativas pessoais e com interesse mais amplo, envolvendo a abertura para a literatura, política e artes[3].

            Nas descrições feitas por Ernesto Cardenal sobre o tempo em que esteve sob a orientação de Merton, esse traço de insatisfação aparece. O mestre dizia ao jovem noviço que a ordem trapista não era para poetas como eles. Sobretudo em razão da rigidez e da disciplina vigentes. Isto poderia ser adequado para alguns, mas não para eles. Acreditava, porém, que por alguma razão Deus escolhera para eles esse caminho. Acertaram-se, assim, numa dinâmica renovadora, que ia se firmando na orientação levada por Merton. Sobre isso diz Cardenal: “Pouco a pouco fui me identificando com ele em todo esse pensamento renovador, e fui superando toda a inquietação. Estava já na conspiração”[4].

            O foco de percepção sobre a contemplação foi ganhando novas nuances no trajeto espiritual de Merton, mas a questão sempre permaneceu central em sua vida e em sua obra. Nada mais essencial para ele do que a vida contemplativa, um “ponto focal” para a compreensão de toda a sua obra. Em vários de seus trabalhos essa essencial referência vem sublinhada. A contemplação firma-se como a “via por excelência” de integração de todos os aspectos da vida[5].

            No primeiro capítulo de seu livro, Novas sementes de contemplação, Merton esclarece o significado de contemplação:

“A contemplação é a mais alta expressão de vida intelectual e espiritual do homem. É a própria vida do intelecto e do espírito, plenamente despertada, plenamente ativa, plenamente consciente de que está viva. É um espanto espiritual, uma admiração. Um temor espontâneo, reverencial, diante do caráter sagrado da vida, do ser. É gratidão pelo Dom da vida, pela consciência despertada, pelo ser. É a consciência viva do fato de que, em nós, a vida e o ser procedem de uma Fonte invisível, transcendente e infinitamente abundante. A contemplação é, acima de tudo, a consciência da realidade dessa Fonte”[6].

            Na visão de Merton, a contemplação é algo nobre, que transcende filosofia e teologia, que extrapola nosso conhecimento, nossas intuições ou experiências, mas que misteriosamente está relacionada a tudo isso. Ele assinala que ela é compatível com todas essas coisas, e mais ainda, é o seu segredo maior. Tudo o que almejamos e alcançamos fica diminuto diante do horizonte que ela anuncia; tudo “morre” para ser recuperado em outro âmbito, num plano de vida mais sublime. A contemplação envolve uma alusão preciosa, de Alguém “que não tem mãos, mas é a pura Realidade e a fonte de tudo que é real! Daí ser a contemplação um dom, uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo o que é real”[7].

            Como explicar essa perspectiva tão arejada sobre o tema, partindo de um monge trapista situado numa tradição tão bem estruturada e arranjada ? É uma questão que se coloca. A resposta se anuncia na forma precisa como Merton viveu o seu projeto contemplativo, nunca encerrado nos muros de sua tradição. Soube manter a abertura permanente para acolher as riquezas que se apresentavam para ele, vindas de patrimônios espirituais tão diversificados. Sabia reconhecer, como poucos, “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[8]. A contemplação é algo que toca o mundo da profundidade, despertando as interrogações mais vivas que se irradiam desse “braseiro” dos mais finos perfumes, para utilizar uma linguagem de Teresa de Ávila. E ali, naquele fundo interior, há uma irmandade inter-dependente, daí se compreender, como indica Merton, que os santos das diversas tradições, precisamente por estarem absortos em Deus, possuíam uma viva “capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”[9].

            A peculiar sensibilidade espiritual de Merton pode ser também explicada por alguns elementos que compõem o seu perfil biográfico. De seus pais, herda uma sensibilidade artística: eram pintores de paisagens. Em seu caminho de formação deixa-se habitar pela dinâmica literária e poética, que ganha contornos particulares com o aprendizado monástico e o influxo do Zen Budismo. São elementos que convergem para a irradiação de uma personalidade espiritual exemplar, que se disponibiliza para viver essa sintonia fina de atenção à presença plena do mistério nas pequenas coisas do cotidiano. Em carta escrita por Merton a um amigo, um pouco antes de sua aventura asiática ele assinala: “A nossa real viagem na vida é interior: é uma questão de crescimento, de aprofundamento, e de um abandono sempre maior à ação criativa do amor e da graça nos nossos corações”[10].

            Para Merton, a verdadeira vida contemplativa não podia se encerrar num quietismo, mas envolvia sempre busca, crescimento e inquietação. E sobretudo despojamento e liberdade. Dizia em página de seu diário, em 7 de novembro de 1968:

“A vida contemplativa deve proporcionar uma área, um espaço de liberdade, de silêncio, na qual as possibilidades tenham permissão para aflorar e escolhas novas – além das opções rotineiras – se tornem manifestas. Caber-lhe-ia criar uma nova experiência do tempo, não como expediente provisório, como imobilidade, mas sim como temps vierge – não um vazio a ser preenchido nem um espaço intocado a conquistar e violar, mas um espaço que possa desfrutar de suas próprias potencialidades e esperanças – sua própria presença ante si mesmo. Um tempo bem pessoal, contudo não dominado pelo ego e suas exigências. Aberto portanto aos outros – um tempo compassivo, enraizado na percepção da ilusão em comum e a fazer-lhe crítica”[11].

                  Essa inquietação espiritual acompanha Merton desde o tempo de sua conversão e batismo, como ele mesmo relata em sua obra O signo de Jonas, de 1953. Dizia que a vida de todo monge vinha marcada por esse sinal, impresso a fogo na raiz mesma do ser, pois como Jonas, a viagem para o horizonte destinado por Deus seria vivida “no ventre de um paradoxo”[12].  

Thomas Merton era essa turbulência existencial e afetiva, e sua vida espiritual veio adornada por essa tensão construtiva. Dizia em página de seu diário, em agosto de 1961, que a vida movia-se “inexoravelmente em direção à crise e ao mistério”. Tinha dificuldade de se definir como pessoa. Entendia-se como uma “colcha de retalhos”, pontuada por inúmeras dúvidas, obsessões e perguntas. Sentia-se gravitar “em torno do silêncio, das matas e do amor”[13]. Marcado pelo seguimento de Jesus, que se definia como  caminho, Merton também entendia a sua peregrinação como projeto permanente de indagação e busca. Em linda oração inscrita na obra Na liberdade da solidão, de 1958, dizia:

“Senhor, meu Deus, não tenho ideia de aonde estou indo. Não vejo o caminho adiante de mim. Não posso saber com certeza onde terminará. Nem sequer, em verdade, me conheço. E o fato de eu pensar que estou seguindo tua vontade, não significa que realmente o esteja. Mas acredito que o desejo de te agradar te agrada, de fato. E espero ter esse desejo em tudo que estiver fazendo. Espero jamais vir a fazer alguma coisa distante desse desejo. E sei que, se agir assim, tu hás de me levar pelo caminho certo, embora eu possa nada saber sobre o mesmo. Portanto, hei de confiar sempre em ti, ainda que eu possa parecer estar perdido e sob a sombra da morte. Não hei de temer, pois tu sempre estás comigo, e nunca hás de deixar que eu enfrente meus perigos sozinho”[14].

Vida contemplativa e alteridade

            Num de seus mais belos livros, Reflexões de um espectador culpado (1966), Merton descreve uma experiência que é única. Ele estava na cidade de Louisville, na esquina da Fourth Avenue e Walnut, em pleno centro comercial, quando foi tomado por um sentimento inusitado: da impossibilidade de uma “existência santa separada”, isolada do mundo e dos outros. Deu-se conta de que a ideia comum, partilhada no mosteiro, de uma “separação” era uma  “completa ilusão”. Na verdade, a vida de oração e a experiência da solidão tinham uma ligação misteriosa com a existência cotidiana e o mundo secular. Ali em Louisville Merton capta a presença de um brilho especial no íntimo das pessoas e o significado singular da atitude que a vida de oração pode ter com respeito ao mundo da alteridade. Reconhece, então, que sua solidão e sua vida de oração não constituem um dado individual, mas algo que pertence aos outros, envolvendo uma responsabilidade em relação a isso. Ele diz:

“Aconteceu, então, subitamente, como se eu visse a secreta beleza de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um, da pessoa de cada um aos olhos de Deus. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo, sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância... Suponho que o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns aos outros”[15].

                  Thomas Merton sublinha, assim, a presença de uma centelha divina no mais íntimo do ser humano, que nomeia – com base em expressão da mística sufi – de “point-vierge”, um ponto vazio,  “cego e suave”, livre do pecado e da ilusão:

“Um ponto de pura verdade, um ponto, uma centelha, que pertence inteiramente a Deus, que nunca está à nossa disposição, do qual Deus dispõe para as nossas vidas, que é inacessível às fantasias da nossa própria mente ou às brutalidades de nossa vontade. Esse pontinho ´de nada` e de absoluta pobreza é a pura glória de Deus em nós”[16].

            Na tradição sufi, da mística islâmica, al-Hallaj – executado no ano 922 da era cristã (309 da hégira) – foi quem primeiro falou deste “ponto luminoso” que habita o íntimo do ser humano[17]. Trata-se de um ponto (nuqta) singular, que configura o núcleo da luz original, expressando para os sufis o centro nevrálgico da esfera do tawhîd (unicidade de Deus). O estudioso francês, Louis Massignon, retoma essa questão em sua clássica obra sobre Hallaj, falando dessa “célula secreta murada a toda criatura”, célula “virgem inviolada”[18]. É dele que Merton retoma a expressão, servindo de base para a sua reflexão[19].

            Como trapista, Merton tinha o hábito de acordar sempre muito cedo, e pôde identificar no irradiar da aurora a presença desse “ponto virgem” na própria natureza. O pontinho “cego e suave” manifesta-se também no alvorecer, naquele “momento mais maravilhoso do dia”, quando “a criação em sua inocência pede licença para ´ser` de novo, como foi, na primeira manhã que uma vez existiu”. O contato com a natureza acaba revelando para Merton a riqueza desse ponto secreto que habita o íntimo de cada um. A analogia é perfeita e reveladora: “Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point-vierge da aurora sob um céu ainda desprovido de luz real. É um momento de temor reverente e de inexprimível inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos”[20].

            A experiência de Louisville abre um caminho novo para Merton, de percepção viva de que a solidão deve pertencer não apenas a Deus, mas a todas as criaturas. Não se trata de algo que se guarda como propriedade pessoal, mas um dom que se irradia para os outros. Desvela-se assim uma concepção rica de vida monástica, aberta à vida e à experiência do vasto mundo, para além da clausura.

O momento kairológico do eremitério

            Tendo gestado por muito tempo o sonho de ser eremita, Merton consegue, finalmente, em julho de 1965, a licença que buscava para dedicar-se inteiramente à vida de oração. Deixa o encargo com os noviços para viver essa nova experiência. Quebrando uma tradição vigente na ordem trapista, Merton passa a viver numa construção no bosque, a cerca de 1,5 km do prédio central do mosteiro. Em 11 de setembro de 1965, relata em seu diário: “Não tenho o ´espaço` oficial do mosteiro – santificado, juridicamente definido, cercado de elaborados costumes – como meu ambiente. Estar fora dele é uma grande bênção. É um espaço cheio de ilusões e sob a tirania de premeditadas invencionices. Meu espaço é o mundo criado e redimido por Deus”[21].

            Merton reconhece nesse início de experiência um “retorno ao mundo”, ao contato direto e humilde com a criação de Deus. Também uma possibilidade única de viver o mistério da solidão, não de uma solidão qualquer, mas de uma “solidão sonora”, para utilizar uma expressão de João da Cruz. Passa então a se confrontar com a vida solitária e o desafio fundamental de “estar presente” no mundo aberto de Deus. Tem consciência de como a vida solitária é assombrosa e assustadora, uma vez que ela arranca as máscaras e os disfarces. Ela coloca o sujeito nu diante de si mesmo, forçando um campo de reflexão inabitual. Assinala em seu diário, em 6 de outubro de 1965:

“O que eu menos quero no mundo é ´ser eremita`. A imagem do homem barbudo, meio cego e em lágrimas, vivendo numa caverna, não basta (...). Venho à solidão para ouvir a palavra de Deus, para manter-me na expectativa de uma realização cristã, para compreender a mim mesmo em relação a uma comunidade que duvida de si e se questiona, e da qual faço parte. Não venho à solidão para ´atingir os pícaros da contemplação`, mas para descobrir penosamente, para mim mesmo e para meus irmãos, a verdadeira dimensão escatológica de nosso chamado”[22].

                  Num de seus livros, Merton dizia que em certos momentos ocorre a presença um “raio de Zen no meio da Igreja”. Ali em sua ermida pode, finalmente, realizar essa experiência de uma vida atenta e desperta. Esse ensinamento Zen já era usual desde o tempo em que coordenava o noviciado, como lembra Ernesto Cardenal em suas memórias. A ideia de que “a vida do contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água”[23]. Agora, num espaço especial, assume radicalmente esse espírito: “O que eu faço é viver. Como eu rezo é respirar”[24].

            Em contato com a natureza, Merton sente-se “desperto e respirando”, atento com todos os sentidos, acolhendo com alegria a polifonia das vozes da mata. Tudo o que o envolve preenche-o de alegria. Assinala em seu diário: “Uma coisa que o eremitério está me fazendo ver – que o universo é minha casa e que, se não for parte dele, eu não sou nada”[25]. Trata-se, como diz, de um lugar de gratuidade, dado sem merecimento por Deus:

“É uma delícia. Não posso imaginar outra alegria na Terra além de ter um tal lugar e nele ficar em paz, viver em silêncio, pensar e escrever, ouvir o vento e todas as vozes da mata, viver à sombra da grande cruz de cedro, preparar para minha morte e meu êxodo para o país celestial, amar meus irmãos e todas as pessoas, rezar pelo mundo todo e pela paz e bom senso entre os homens”[26].

                  O que se constata de forma mais interessante nesta experiência eremítica de Merton, de toque kairológico, é que na medida em que ele avançava em seu caminho de interiorização mais dilatava sua abertura aos novos âmbitos da realidade, incluindo a abertura dialogal[27]. E o contato mais prolongado com a natureza vai permitir a Merton um aprofundamento e enriquecimento de sua vida contemplativa. Para ele estava claro que por traz de todas essa luzes e cores vigorava a presença altiva e terrenal de um dom e de uma graça. Em seus diários e livros essa presença é cantada com alegria:

“Poder-se-ia dizer que me casei com o silêncio da floresta. A quentura escura e doce do mundo terá de ser minha esposa. Do coração dessa quentura escura vem o segredo que só se ouve em silêncio, mas que está na raiz de todos os segredos sussurrados na cama, em todo o mundo, por todos que estão se amando. Assim, tenho talvez obrigação de preservar a quietude, o silêncio, a pobreza, o ponto virginal de puro nada que está no centro de todos os demais amores. Tento cultivar essa planta, sem comentário, no meio da noite, e rego-a com salmos e profecias em silêncio”[28].

Merton tem ciência de que “tudo o que existe é santo”[29], que as riquezas naturais expressam vivamente o louvor de Deus: “Hoje, Pai, este céu azul Te louva. As delicadas flores verdes e alaranjadas das árvores Te louvam. As colinas azuis distantes Te louvam juntamente com a aragem de suave perfume repleto de luz brilhante. Os insetos voltejantes Te louvam. Também o gado Te louva e as codornizes que assoviam à distância”[30]. É em meio a tudo isso que Merton se abre à Presença e ao conhecimento do Mistério. É uma vida terrana de serenidade, desacelerada, uma vida “de baixa definição”, pontuada pela gratuidade e bem distante das negociações e transações que palpitam na dinâmica dos humanos. Ele assinala: “É lá embaixo do morro que os problemas começam. Lá, sob a torre da caixa d´água, há soluções. Aqui há matas, raposas. Não há necessidade de óculos escuros aqui. ´Aqui` nem mesmo se esquenta com referências a ´lá` . É simplesmente um ´aqui` para o qual não há nenhum ´lá`. Tal a frieza da vida de eremita” [31].

Uma das coisas interessantes que se pode observar nas pessoas de forte densidade espiritual é a capacidade de atenção, delicadeza e cuidado com tudo que os circunda. Um exemplo singular pode ser encontrado no testemunho do buscador Henri le Saux (Abhisiktânanda) a respeito de Raimon Panikkar numa peregrinação dos dois às fontes do Gange. Ele assinala que durante todo o trajeto, Panikkar estava atento a tudo o que via no caminho. Admirava cada detalhe da maravilhosa natureza, e a cada momento interrompia o passo para contemplar os cumes das montanhas e a neve distante; mas também os rostos de quem encontrava, com saudações de afeto e alegria[32]. Assim também com Merton, em sua estadia no eremitério. Assinala também o traço de sua atenção e cuidado. Em seu caminho cotidiano tudo era objeto de admiração: “Cada vez mais aprecio a beleza e a solenidade do ´caminho` que passa pelos bosques, os estábulos, a subida pedregosa, penetra no círculo dos altos carvalhos e das nogueiras esguias, dando a volta pelos pinheiros, erguendo-se até o alto da colina e o espaço plano que domina o vale”[33].

Como explicar esse olhar? Como entender o mundo interior que faculta esse olhar? Um dos grandes místicos da tradição sufi,  Jalal ud-Din Rûmî (séc. XIII), dizia que a beleza da paisagem relaciona-se com o sentimento interior. Há sempre que lavar as mãos e o rosto nas aguas do Amado para então situar com pertinência o olhar sobre as coisas[34]. Conforme a reflexão de Merton, esse olhar vem desenvolvido no que ele denomina “trabalho de cela”. Trata-se de um profundo trabalho da interioridade voltado para o aperfeiçoamento da atenção e da escuta. Um trabalho que busca sintonizar a voz do coração com a voz do Mistério sempre maior. Diz Merton a respeito:

“Não é simplesmente uma questão de ´existir` sozinho, e sim de fazer, com compromisso e alegria, o ´trabalho de cela`, que é feito em silêncio e não de acordo com a escolha pessoal ou a pressão das necessidades, mas em obediência a Deus. Como a voz de Deus não é ´ouvida` a todo instante, parte do ´trabalho de cela` é atenção, para que nenhum dos sons dessa Voz possa ficar perdido. Quando vemos quão pouco nós ouvimos, e quão obstinados e grosseiros são os nossos corações, percebemos como o tralho é importante e como estamos mal preparados para fazê-lo”[35].

                  O trabalho de cela é também um trabalho de quietação do coração, de relaxamento interior, de disponibilização dos sentidos. Merton recorre também a um termo da mística de Eckhart para expressar um de seus desdobramentos: Gelassenheit (estado de serenidade, de abandono a Deus). Em página de seu diário, com data de 13 de novembro de 1966, Merton assinala: “Gelassenheit – deixar rolar e largar-se – não ser estorvado por sistemas, palavras, projetos. E no entanto ser livre nos sistemas, projetos”[36]. Aqui tocamos num ponto essencial da mística de Merton, que traduz uma rica herança de autores da tradição cristã, como Eckhart. Trata-se do tema do despojamento. Não há como aperfeiçoar o olhar e os demais sentidos sem esse movimento de desapego: recuar o eu para possibilitar o brilho do outro. Diz Merton: “Tenho de aprender a ´largar-me` para poder me encontrar, entregando-me ao amor de Deus”.[37] O desapego requerido não instaura uma barreira entre as “coisas” e “Deus”, como se fossem rivais: “Não nos desapegamos das coisas para nos apegarmos a Deus. Melhor, nos desapegamos de nós mesmos de maneira a ver e usar todas as coisas em e para Deus”[38].  Esse caminho do auto-esvaziamento é algo requerido nas “mais elevadas tradições religiosas” para o alcance da realização transcendente. É um tema recorrente na reflexão de Merton, de modo particular em suas obras em diálogo com o Zen Budismo. E esse despojamento é mesmo radical, a ponto de desvencilhar o sujeito de qualquer posse ou garantia, na linha de uma pobreza radical, como igualmente sugere Eckhart num de seus sermões alemães[39]. Um despojamento tal que libere também o sujeito de um “lugar onde Deus pudesse atuar”[40]. Perpassa uma fina sintonia entre os dois grandes místicos, Eckhart e Merton. O monge trapista encontra em Eckhart uma pista segura para o exercício de purificação do coração. Sublinha que Eckhart emerge como o elo seguro para a restauração de sua continuidade e de sua obediência a Deus, possibilitando a presença de seu amor no mundo interior[41].

            No tempo em que viveu no eremitério, os últimos anos de sua vida, Merton recuperou o sentido mais nobre de solidão: a solidão sonora. Trata-se de uma experiência forte e desafiadora para ele: “Quando as cordas são largadas e o barco já não está mais preso à terra, mas avança para o mar sem amarras, sem restrições! Não o mar da paixão, pelo contrário, o mar da pureza e do amor sem preocupações”[42]. O passo da solidão é o momento propício para esse trabalho interior, de purificação do coração. Para quem está preparado, tudo é uma bênção e revelação, um momento privilegiado de paz, significado e silêncio: “A bênção de serrar madeira, cortar grama, lavar pratos, arrumar a casa. A bênção de uma meditação de todo ´presente` , serena, concentrada e atenta. A bênção da presença e orientação de Deus”[43]. É também o momento favorável à abertura, já que a solidão verdadeira “abarca tudo, pois é a plenitude do amor que não rejeita nada e ninguém, que se abre para Todos em tudo”[44].  Na visão de Merton, a solidão envolve a “liberação de forças ativas” do mundo interior. É quando se desce à raiz do próprio ser e se tangencia a liberdade-realidade, quando o ser humano se disponibiliza simplesmente a ser “levado, transportado, batido e rebatido, movimentado”[45]. O retorno é sempre impressionante, pois envolve o vigor de um fundo da alma exercitado, como o exemplo de Marta trabalhado por Eckhart[46]. Interessante a analogia que pode ser feita com o budismo Zen, quando se aborda a questão do irromper no “nada da Deidade”. Essa experiência interior não é um mero voo especulativo, mas envolve um particular cuidado com o humano real. Como sinaliza Shizuteru Ueda, da Escola de Kyoto, a experiência de aproximação à Deidade envolve um retorno que é qualificado espiritualmente: “O irromper ascendente ao nada da Deidade e o retorno descendente ao mundo real torna-se, pouco a pouco um. A vida ´sem porque` e a ´vida humana real` transformam-se em uma vida animada, real”[47].

Conclusão

            A riqueza de pistas e horizontes que se abrem com a obra de Thomas Merton é mesmo impressionante. São portas e janelas para temas vivos e novidadeiros. As facetas são inúmeras e a beleza suscitada pela reflexão provocam atenção e maravilhamento. Trata-se de um dos místicos mais criativos e instigadores do século XX, mais controversos e desconcertantes. Busquei fixar-me mais neste artigo sobre a sua faceta contemplativa, mas é também um místico que provoca a convocação à compaixão e a abertura dialogal. Acompanhar o seu itinerário espiritual é uma aventura prazeirosa e inspiradora, pois sua vida foi marcada pela busca da autenticidade e pela sede do Mistério de Deus.




Referências Bibliográficas

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(Publicado na obra: Mertonianum 100. São Paulo, 2015)




[1] SHANNON, William H. Silent Lamp. The Thomas Merton Story. New York: The Crossroa Publishing Company, 1992, p. 279-281.
[2] PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 56.
[3] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fissus, 2001, p. 144-145.
[4] CARDENAL, Ernesto. Vida perdida. Memorias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 142-143.
[5] PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton, p. 50.
[6] MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 9.
[7] MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 10.
[8] SECRETARIADO para os não-cristãos. A igreja e as outras religiões. Diálogo e missão. 2 ed.  São Paulo: Paulinas, 2002, n. 41.
[9] MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 30. E ainda complementa: “E é porque só a ele amavam que amavam, como ninguém, ao próximo”.
[10] Apud MONTANARI, A & RENZINI, M & ZANINELLI, M. Thomas Merton. Il sapore della libertà. Milano: Paoline, 2014, p. 142.
[11] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 403.
[12] MERTON, Thomas. Il segno di Giona. Milano: Garzanti, 1953, p. 3.
[13] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 343.
[14] MERTON, Thomas. Na liberdade da solidão. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66 (em leve mudança de tradução).
[15] MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 183.
[16] Ibidem, p. 183.
[17] RUSPOLI, Sthéphane. Le message de Hallâj l´expatrié. Paris: Cerf, 2005, p. 148 e 264.
[18] MASSIGNON, Louis. La passion de Hallâj III. Paris: Gallimard, 1975, p. 26.
[19] MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 175; BAKER, Rob & HENRY, Gray (Eds). Merton & sufism. Louisville: Fons Vitae, 1999, p. 63-68.
[20] MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 151,
[21] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 296.
[22] Ibidem, p. 298-299.
[23] CARDENAL, Ernesto. Vida perdida, p. 144.
[24] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 279.
[25] Ibidem, p. 273.
[26] Ibidem, p. 272.
[27] ALLCHIN, D. et al. Thomas Merton. Solitudine e comunione. Magnano: Qiqajon, 2006, p. 7; PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton, p. 201.
[28] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 281.
[29] Enriquecedor o debate entre Thomas Merton e o poeta e escritor Czeslaw Milosz a respeito da abordagem otimista de Merton: cf. PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton, p. 199-201.
[30] MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 205. Ver também: Id. Na liberdade da solidão, p. 78; Id. Diálogos com o silêncio. Rio de Janeiro: Fissus, 2003, p. 115.
[31] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 278.
[32] LE SAUX, Henri. Alle sorgente del Gange. Pellegrinaggio spirituale. Milano: Cens, 1994, p. 51.
[33] MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 207.
[34] RUMI, Jalal ud-Din. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996, p. 54.
[35] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 285. Ver também: PEREIRA, Sibélius Cefas. Thomas Merton, p. 88s.
[36] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 347.
[37] MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação, p. 25.
[38] Ibidem, p. 29.
[39] ECKHART, Mestre. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: Editoria Universitária São Francisco/Vozes, 2006, p. 287s (Sermão 52). Ver ainda: Id. Sobre o desprendimento. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[40] MERTON, Thomas. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 14 e 74.
[41] HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan. Merton na intimidade, p. 343.
[42] Ibidem, p. 270.
[43] Ibidem, p. 293.
[44] Ibidem, p. 315.
[45] Ibidem, p. 334.
[46] Na visão de Eckhart, Marta atua no tempo “essencialmente”, com o fundo de seu ser exercitado: Sermões alemães 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 133 ( Sermão 86).
[47] UEDA, Shizuteru. O nada absoluto no Zen, em Eckhart e em Nietzsche. Natureza Humana, v. 10, n. 1, jan.-jun. 2008, p. 182.

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