quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Dialogar para não deixar morrer

Dialogar para não deixar morrer

Faustino Teixeira


1) Na era da informação e das liberdades individuais, como é possível que grupos ainda adotem posturas de intolerância religiosa?

O avanço da informação, da globalização e da pluralização não traduzem, necessariamente, uma perspectiva de diálogo e abertura para o outro. Essa é uma visão ingênua da realidade. Na verdade, como bem mostrou o sociólogo Peter Berger, o pluralismo moderno desestabiliza as auto-evidências das ordens de sentido que orientam a vida das pessoas e isso provoca insegurança e temor. Como reação, os vários projetos restauradores em favor da “cura” do mundo, entre os quais os fundamentalismos com suas diversas feições. O pluralismo provoca temor nos grupos fundamentalistas por colocar alternativas diante dos olhos, por favorecer caminhos distintos e críticos. Na base da intolerância está a dificuldade radical em reconhecer o valor da diversidade das culturas, de entender essa diversidade como um “fenômeno natural”. O que em geral ocorre é uma reação negativa a essa diversidade, como se fosse algo escandaloso ou mesmo nefasto. Por isso a tolerância é um fenômeno “custoso”, como mostrou Paul Ricoeur, pois encontra grandes resistências numa atitude que é prévia: “o impulso de impor ao outro nossas próprias convicções”. Há, portanto, algo de “potencialmente intolerante” nas convicções. E junto com o toque das convicções a afirmação de uma certa arrogância identitária. As pessoas ou grupos começam a se achar “especiais em relação aos outros seres humanos” e com isso começam a excluir os outros que não participam da mesma convicção. Tudo contribuindo para um processo de monopolização do valor que acaba reforçando uma falsa “excepcionalidade”. Os conflitos étnicos e religiosos que estamos assistindo em nosso tempo são expressões vivas de um etnocentrismo problemático e perigoso.

2) Em sua opinião, o Brasil tem avançado neste quesito? O que poderia ser feito?

Um dos traços que sempre caracterizou o Brasil foi a sincretização e a pluralização, sobretudo no campo religioso. Conhecida é aquela expressão do jagunço Riobaldo Tartarana no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas.” Esse foi sempre um traço peculiar do brasileiro, que sempre encontrou formas criativas e plurais de ampliar o campo de sua proteção, com espíritos, anjos, entidades, santos e energias. As experiências religiosas no Brasil são bem marcadas por essa riqueza da complementaridade. Mesmo no âmbito do catolicismo hegemônico, mecanismos peculiares de fagocitoso são observados, indicando o traço plural com que este catolicismo se veste no território brasileiro.  Essa perspectiva, infelizmente, vem sofrendo mudanças nas últimas décadas, com o avanço preocupante de práticas excludentes e mesmo violentas nesse campo das convicções religiosas. Crescem os exclusivismos religiosos com práticas de intolerância que são ameaçadoras. Em livro publicado em 2007, sobre o tema da intolerância religiosa (Edusp, 2007), Vagner Gonçalves da Silva advertia no prefácio para essa ameaça no campo religioso brasileiro: “Verifica-se no Brasil nas últimas duas décadas um acirramento dos ataques das igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras, processo extensivo aos países latino-americanos, como Argentina e Uruguai, para onde tanto essas igrejas como os terreiros de umbanda e candomblé têm se expandido”. Em pesquisa de mapeamento das casas de religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro, realizada entre maio de 2009 e março de 2011, constatou-se relatos de discriminação bem precisos. A pesquisa veio publicada em livro em 2013 (PUC-Rio/Pallas), sob a direção de Denise da Fonseca e Sonia Giacomini. Mais da metade das 840 casas religiosas que responderam à questão específica sobre discriminação foram alvo de alguma ação qualificada como agressão ou discriminação. Como focos privilegiados da agressão, as casas religiosas (29%) ou os adeptos das religiões de matrizes africanas (60%). Dentre os tipos de agressão, um destaque especial para os ataques verbais, mas também as pichações nos muros e também agressões físicas. O que melhor se pode fazer diante de situações que envolvem o crescimento de intolerância, xenofobia, etnocentrismo, é buscar os caminhos serenos do diálogo. Nunca fraquejar na defesa fundamental dos valores da liberdade de consciência, do respeito à alteridade e da incomensurabilidade que traduz o mundo do outro. Situações como as de 11 de setembro de 2011 ou também como a de 7 de janeiro de 2011 em Paris podem acabar provocando o acirramento dos ódios e a aceleração de novos canais de intolerância, nesse caso contra os muçulmanos, identificados como inimigos da civilização. Concordo com a posição adotada pelo Secretário Geral da Onu, Ban Ki-Moon, em depoimento publicado depois do atentado ao jornal satírico “Charlie Hebdo”. Ele afirmou: “O horrível ataque contra Charlie Hebdo foi feito para dividir. Não devemos cair nessa armadilha. Temos que nos manter firmes, no mundo inteiro, na defesa da liberdade de expressão e da tolerância, contra as forças da divisão e do ódio.” Essa é também a posição que partilho. No caso brasileiro, com o crescimento de práticas de intolerância e desrespeito à alteridade, acho que a melhor posição a ser defendida é aquela da defesa fundamental dos direitos humanos, da liberdade de consciência e da liberdade religiosa.


3) Logo no primeiro mandato, quando assumiu em 2011, Dilma havia mandado retirar a bíblia e o crucifixo do gabinete. Foi a primeira vez que um presidente tomou tal atitude. Isso representou alguma mudança no sentido de um Estado Laico?

A questão da laicidade do estado é uma questão séria, delicada, que merece ser trabalhada com muito discernimento e critério. Talvez um dos aspectos mais essenciais é o que envolve o respeito ao direito de consciência de todos. Defendo hoje com clareza cada vez maior o pluralismo de princípio, de respeito profundo ao “destino espiritual de cada ser humano”, bem como o rechaço à inaceitável ingerência espiritual na vida das pessoas. Já o Concílio Vaticano II, no documento que aborda a liberdade religiosa, dizia que cada pessoa tem o dever e o direito de buscar a verdade religiosa em acordo profundo com sua consciência (DH 3). Não pode haver em hipótese alguma coerção nesse campo das opções religiosas. Esse é um debate muito rico que ocorre, por exemplo, na França. Há que superar a idéia problemática de uma “laicidade de incompetência” (laicidade em combate), que simplesmente exclui o religioso, em favor de uma “laicidade de inteligência” (laicidade amistosa), que reconhece a importância da presença do religioso no campo social e que encontra o caminho mais sereno e competente para lidar com essa realidade, no diálogo com outras espiritualidades e forças sociais que não se definem com o referencial religioso. O caminho a ser seguido é aquele que envolve uma “virada cooperativa na relação entre as diferentes famílias de pensamento”. Lidar com essa diversidade, no respeito aos vários encaminhamentos – religiosos e seculares – é o o desafio que se apresenta hoje, também no Brasil. Uma posição que acho plausível é a defendida por Danièle Hervieu-Léger, em favor de uma “laicidade mediadora”. Ela busca abordar de forma pertinente as relações entre uma República laica e as forças religiosas e espirituais. O caminho a ser seguido não é o da exclusão da diferença, mas da “cooperação razoável em matéria de produção das referências éticas, de preservação da memória e da construção do vínculo social”. Uma sociedade marcada por complexidade e em processo de permanente mudança exige o exercício de relações dialogais com esse campo plural: tudo isso é louvável e espaço de aprendizado e enriquecimento. O que deve ser sempre evitado é o caminho da intolerância e da exclusão. O exercício de uma laicidade autêntica deve envolver com sabedoria o traço de contribuição democrática oferecido pelas diferentes famílias espirituais, que acontecem enriquecendo e não ofuscando a dinâmica da afirmação cultural e humana.

4) As religiões de matriz africana ainda são os "bodes expiatórios" neste universo de fundamentalismo. Por quê?

No caso brasileiro, as religiões de matriz africana vem sofrendo perseguição desde a segunda metade do século XIX, com a afirmação de um racismo científico acentuado. Em seguida, com o final da escravidão, o assim chamado “baixo espiritismo” foi alvo de forte repressão institucional, até cerca de 1940. Na documentação existente, sobretudo nos registros da imprensa, da justiça ou da polícia, assinala-se uma forte resistência contra as práticas religiosas dessas tradições, identificadas como curandeirismo, magia negra ou prática ilegal da medicina. Em tempos mais recentes, sobretudo após a irradiação pentecostal – em meados da década de 1980 -, uma nova onda de resistência e repressão aos cultos afro-brasileiros firma-se no país. E as críticas ganham respaldo nos programas pentecostais divulgados na extensa rede de rádios e TVs, bem como nos projetos legislativos defendidos pela bancada evangélica. Os resultados do último Censo demográfico, de 2010, apontam um significativo crescimento pentecostal, envolvendo cerca de 13,3% da população brasileira. Em termos absolutos, os pentecostais quase triplicaram de tamanho entre 1991 a 2010, saltando para 25 milhões de fiéis. Só a Assembléia de Deus responde por 1.067 adesões diárias. Enquanto isso, as religiões de matriz africana decaem a cada década, sobretudo após 1991, mantendo-se hoje num reduzido patamar de 0,3% de declaração de crença. Atualmente, segundo o último Censo, a soma dos declarantes da umbanda e do candomblé não ultrapassam a cifra de 600 mil fiéis. Como se pode observar, a tensão inter-religiosa envolvendo pentecostais e afro-brasileiros é bem desigual. Como vem mostrando o pesquisador Ricardo Mariano, essa desigualdade “constitui um dos maiores obstáculos dos cultos afro-brasileiros para se defender dos ataques de seus rivais e reagir, eficazmente, à altura deles. O imenso contraste entre os poderes religioso, demográfico, empresarial, midiático e politico desses grupos religiosos impossibilita falar em ´igualitarismo`”. Somos hoje, infelizmente, testemunhas de um triste espetáculo de intolerância contra as religiões de matriz africana: com os ataques rotineiros contra os adeptos de tais tradições e seus espaços de culto. Pichações críticas se espalham por todo canto, bem como a virulência verbal, colocando os fiéis e mesmo as lideranças religiosas em posição defensiva dentro do campo religioso, em razão do constante e pesado bombardeio recebido. Em recente artigo no jornal O Globo (Olodum e Lalibela), Marco Lucchesi falava do preço simbólico elevado da ausência dessas tradições nas praias cariocas na passagem para 2015: “O quase eclipse das religiões africanas, que coloriam nossas praias, no dia 31 de dezembro, com uma carga poética inesquecível, para quem as alcançou. Todo um arquipélago de velas brilhantes, que pontilhavam a areia de luz e sombra, com os perfumados barcos de Iemanjá, boa parte dos quais azulada, e os tambores cadenciados, ao mesmo tempo suaves e vigorosos, que se confundiam com as batidas do coração”.

5) E como dialogar com grupos que simplesmente recusam sentar-se à mesa com quem pensa diferente?

Um conhecido teólogo protestante, Jürgen Moltmann, reconhecia num de seus textos sobre diálogo e missão sobre essa dificuldade de intercâmbio com quem não consegue corresponder. No seu caso, falava de impasses no diálogo com interlocutores muçulmanos: interlocutores que exigiam tolerância para com o isl, m﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽com o islores muçulmanos: interlocutores que que exigiam tolerã, mas que ao mesmo tempo, na “casa do islã” negavam esse direito a cristaos, judeus e hindus. Questão delicada, não há dúvida. Um dos importantes buscadores cristãos do diálogo com o islã, o prior trapista de Tibhirine – Christian de Chergé -, que morreu mártir desta causa, respondeu a tal questão de forma primorosa. Dizia que a verdadeira hospitalidade dialogal não pode ocorrer na dependêcia de reciprocidade ou outros condicionantes. O que deve mover a abertura ao outro é o dom gratuito do amor, daí a inutilidade de qualquer exigência de reciprocidade. Como explicar, porém, essa tremenda dificuldade de lidar com o “outro” no universo religioso brasileiro ? Essa é uma difícil e complexa questão que nos provoca nesse momento atual, pontilhado pela sedução fundamentalista. As pessoas resistem a essa “auto-exposição ao outro” em razão de tudo que isso significa em termos de questionamento de certezas reificadas e abertura de possibilidades que se revelam ameaçadoras para aqueles que se encontram bem instalados no reino da identidade. O diálogo é provocador, como diz Marco Lucchesi, é uma “zona de passagem, um espaço potencial, uma cartografia inacabada, a que aderem as partes, ciosas de sua identidade , convidadas a pensarem sob uma nova luz”. O diálogo rompe com os proselitismos e nos lança﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ com os proselitismos e nos lancabada, a que aderem as partes, ciosas de sua identidadesibilidades que se revelam ameaça num caminho novo, de atenção e acolhida. Somos assim tocados pelo olhar do outro, que nos indaga e nos convida a “mover os lábios”. Talvez na raiz mais remota do diálogo está o contato com alguém que vem animado pela mais profunda incomensurabilidade, e a relação com esse universo não pode ocorrer de forma profunda a não ser com a presença de um ethos fluido e poroso, delicado e disponível. O teólogo indiano, Felix Wilfred, sinaliza que uma das dificuldades maiores nesse campo da aceitação do outro é a pretensão de absolutez que invade o campo identitário, impedindo a percepção do traço limitado e parcial que marca qualquer experiência religiosa. A seu ver, “o absolutismo impede a responsabilidade de ouvir o ´outro` em tudo aquilo que constitui sua identidade”.


6) Por fim, como você vê o Brasil daqui 20 anos?

Como inveterado otimista, acredito na possibilidade de um horizonte diferente para o nosso país num futuro próximo. Todos os esforços deverão ser acionados para que o mundo da diferença seja acolhido e reconhecido na sua dignidade: seja os povos originários, indígenas, os povos de matriz afro-brasileira e os demais povos de Deus com suas crenças e/ou espiritualidades. Bonito será o dia em que pudermos reconhecer com alegria a beleza daquela simples baiana, igual a milhares de outras, que se transforma em rainha na profundidade de se ser, adornada com as cores de Xangô ou Iemanjá. Aquele dia que, como diz Pierre Fatumbi Verger, soubermos acolher e celebrar esse “espetáculo único, o maior espetáculo da Terra, que é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano”. Nesse dia, da festa da fraternidade e da reconciliação, teremos, enfim, a vitória da hospitalidade, com a saudação dos tambores e a comunhão da África com o Brasil, abolindo-se o oceano e apagando-se o tempo da escravidão (R.Bastide).

(Publicada na página do CONIC, em 21/01/2015 –

http://www.conic.org.br/cms/noticias/1007-21-de-janeiro-n-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa)

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