O choque de desenraizamento
Faustino Teixeira
Há um traço importante destacado no livro de Didier Eribon, “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (2024 – o original é de 2023), diz respeito ao problema que afeta aqueles que são “internados” pelos filhos ou parentes em casas de repouso durante a velhice. No livro assinalado, o autor está falando de sua mãe, uma mulher simples que passou pelas experiências de faxineira e operária e depois se aposentou. Mais adiante, passou a necessitar de cuidados mais especiais, quando então foi deslocada para uma casa de repouso pelo filho. O grande choque que marcou a internação de sua mãe veio identificado como um “choque de desenraizamento”. É o mesmo choque que esteve presente na personagem do filme “Une belle course”, de Christian Carion, que morre pouco depois da internação.
O livro de Eribon levanta para todos nós uma séria questão, em torno das escolhas que fazemos para os nossos pais. É um livro que se coloca no limite entre o testemunho e o ensaio sociológico. A experiência de internação da mãe de Eribon marcou uma mudança profunda em sua vida, que passa a ficar mais concentrada no quarto da instituição: “prisioneira em um quarto, sozinha, deitada em uma cama, incapaz de se levantar, de andar e de se mexer”. Como assinalou Eribon, “a velhice muito avançada, modifica, depois anula e destrói totalmente essa relação ontológica com o espaço e com o tempo”. Um dado é certo, o processo de envelhecimento produz, de fato, “estranhas alterações na sua relação com a realidade”.
Durante os tempos iniciais da internação, a mãe de Eribon manifestou por diversas vezes o seu estranhamento com a instituição, expressando sua revolta com sentimentos de agressividade e raiva: ela “estava zangada com o que lhe acontecia, queixava-se de tudo, mas aparentemente tinha deixado de delirar”. Tratava-se de algo que já se manifestara antes de sua internação. Passava uma boa parte de seu tempo dormindo, em razão também dos medicamentos que começou a tomar. Ao mesmo tempo, para complicar a situação, o número de efetivos para o cuidado com os internados era insuficiente, e a rotatividade grande. A dedicação dos auxiliares aos pacientes tinha um tempo bem reduzido. Relata Eribon:
“A verdade é simples: nesses estabelecimentos, o pessoal está permanentemente em número menor do que o necessário, e as auxiliares têm de correr de um quarto para outro para cuidar dos residentes que estão especificamente sob seu cuidado, porque, geralmente, dispõem de apenas alguns poucos minutos para se dedicarem a cada pessoa, e têm de correr de um quarto para outro para responder às chamadas de outros residentes que precisam delas...”
Eribon sublinha que não é incomum ocorrerem maus tratos e procedimentos realizados para poupar a presença cuidadora, como a diminuição dos banhos, o uso abusivo de fraudas, o gradeamento das janelas, a restrição ao uso de apetrechos particulares, inclusive celulares, e o maior “aprisionamento” dos “clientes” em camas com grades laterais. Era como “as paredes do quarto tivessem se deslocado”.
Foi quando então Eribon foi se dando conta da “imoralidade” presente nas instituições voltadas aos cuidados de idosos franceses (os EPHADs). O autor acrescenta que nas instituições privadas a situação ainda é mais precária, e a vontade de lucro predomina, num mercado cada vez mais lucrativo dos assim denominados “ouro cinza”, em referência aos cabelos grisalhos dos idosos. Eribon pôde se dar conta de que as casas de repouso e os hospitais públicos participam da mesma precariedade no acolhimento aos idosos, aos frágeis e doentes, ou seja, a todos aqueles que dependem de cuidados. São em boa parte instituições que estão “muito aquém do minimamente esperado, para não dizer que elas são hoje totalmente inaceitáveis”.
No caso da mãe de Eribon, ela não conseguiu viver ali além de sete semanas antes de falecer. E o autor assinala que nos artigos em que leu sobre o tema, pôde verificar que essa experiência de “abandono” dos idosos não são incomuns. E a ocorrência de morte de idosos depois dessas internações é verificada, e alguns médicos a descrevem como sendo um “suicídio inconsciente”. Quando internou sua mãe na instituição, Eribon foi alertado por um dos médicos que os dois primeiros meses nessas instituições são os mais difíceis, em razão do choque de desenraizamento. Muitos não suportam a mudança e morrem pouco tempo depois.
O relato de Eribon é específico para o caso da França, mas não tenho dúvida de que situações similares ocorrem em outras partes do mundo e também no Brasil. Não se trata de um relato antiquado, mas que aborda uma situação recente, num livro de 2023. É mais que urgente tratarmos com seriedade essa questão que envolve os nossos idosos.
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