Reflexões sobre a passagem de um papa emérito
Faustino Teixeira
IHU-Unisinos / Paz e Bem
Vejo-me na necessidade de justificar aqui as razões de minhas críticas ao cardeal Ratzinger, que se tornou papa Bento VI, quando ainda está sendo velado.
Não desconheço os seus méritos de teólogo, com obras importantes publicadas quando ele estava em período de docência.
Mas como homem de autoridade, sobretudo depois de tornar-se prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a partir de janeiro de 1982, tenho muitas críticas a seu respeito.
Foi doloroso para mim ver sua visão trituradora da teologia da libertação, e em particular sua punição ao amigo teólogo Leonardo Boff, que viveu momentos de grande dor depois de ter sido silenciado e punido pela Congregação da Doutrina da Fé.
Seguiram-se tantos outros teólogos, também punidos por Ratzinger e seus auxiliares. Cito também o caso de outro teólogo da libertação, Jon Sobrinho, cujas obras foram notificadas pela CdF em 26 de novembro de 2006, quando já estávamos sob o pontificado de Bento XVI (papa Ratzinger). Mas não só teólogos foram punidos ou advertidos, também bispos importantes como Pedro Casaldáliga.
Uma dor particularmente difícil de ser por mim enfrentada foi a que se relacionou à punição de meu supervisor de pós-doutorado, o exemplar teólogo jesuíta Jacques Dupuis, que tive o privilégio de conhecer de perto e sorver com alegria os seus ensinamentos sobre o cristianismo e o pluralismo religioso.
O caso Dupuis, como ficou conhecido, foi um dos mais dramáticos ocorridos durante a gestão de Ratzinger na CdF.
Sua presença na Gregoriana, como professor dos mais queridos, foi sempre motivo de muita desconfiança por Ratzinger. Seu livro principal, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, de 1977, foi motivo de uma drástica notificação da CdF sob a presidência de Ratzinger.
Depois de um longo sofrimento e tentativas de defesa, o seu livro veio notificado pela CdF em janeiro de 2001, pouco depois da publicação da famigerada Declaração Dominus Iesus, de agosto de 2000.
O caso Dupuis vem exemplarmente documentado no precioso livro “Il mio caso non è chiuso”. Conversazioni con Jacques Dupuis, de autoria de Gerard O´Connel. Trata-se de um volumoso livro, com 439 páginas, publicado na Itália pela Editora EMI, em 2019.
Digo a vocês que li esse livro com lágrimas nos olhos, ao acompanhar a realista narração traçada no livro.
Não sem razão, o grande teólogo dominicano, Yves Congar, em seu “Diário de um teólogo” (publicado postumante pela CERF em 2000), identificou o Santo Ofício como a “Gestapo” católica. Ele e outros importantes teólogos como Henri de Lubac, tinham sofrido antes nas mãos desta instituição sombria.
Na época de Ratzinger, outros tantos teólogos foram violentados em sua busca de livre expressão teológica.
O caso Dupuis pude acompanhar mais de perto, pois sua punição ocorreu no período mesmo em que eu estava em Roma sob sua supervisão no pós-doutorado.
No mesmo dia em que saiu a primeira matéria crítica à sua obra, ele estava em minha casa, a convite de minha família. Pude observar de perto o seu sofrimento. Dizia para mim na ocasião: "Não sei ensinar o que eu não penso".
No livro de O´Connel, infelizmente não publicado em português, o relato é impressionante. Vale lembrar que entre os consultores da CdF estavam quatro professores da Gregoriana, que não tinham lá suas simpatias por Dupuis. Entre eles os teólogos Albert Vanhoye e Karl Becker.
Eles participaram da única reunião da CdF onde se tomou a decisão de condenação do livro de Dupuis. Durante o processo de investigação de seu livro, Jacques Dupuis foi convidado a deixar o ensinamento na Gregoriana e essa decisão foi afixada no átrio da Universidade Pontifícia, disponível para o olhar apreensivo de todos os estudantes. Uma humilhação...
Dupuis reconhece no livro-entrevista de O´Connel que não houve diálogo algum com ele. Foi uma decisão arbitrária, que passou por cima de todas as tentativas de respostas às observações críticas lançadas contra o seu livro.
O que estava em jogo era a pesada crítica da CdF contra “os graves erros contra a fé” presentes em sua obra.
Dupuis relata que tudo isso provocou nele uma “profunda angústia” e um “sentimento de revolta”. A dor foi ainda maior, pois ele não encontrou o apoio que precisava na própria comunidade da Gregoriana, com raras exceções.
Em sua última aula ministrada na Gregoriana, em 1997, onde eu estava presente, foi longamente aplaudido pelos cerca de duzentos alunos de seu curso.
Ele mesmo sublinha no livro: “Recordo, em particular, quando me levantei, recebi um longo e forte aplauso, na aula magna, no que acabou sendo, minha última aula na Universidade”.
Recorda que talvez os alunos pressentiam que aquela seria a sua última aula e quiseram saudá-lo com um generoso aplauso.
Dupuis ainda tentou continua atuando depois de sua punição pela CdF, mas as resistência, também de Ratzinger, continuaram vivas, impendindo sua atuação pública.
O novo livro escrito por ele depois da notificação, finalizado em 2004, foi impedido de ser publicado: “Pluralismo religioso e diálogo”. As razões do impedimento eram claras: por motivos doutrinas e prudenciais.
Em carta dirigida a ele pelo vice-reitor da Gregoriana, pe. Francisco Egaña, foi advertido sobre a vigilância de seus superiores sobre ele, e que provocar a CdF com um novo livro seria um dando não só para ele, como também para a Universidade e os Jesuitas.
Em sua resposta ao vice-reitor, publicada na ocasião, Dupuis sublinhou que tinha “perdido a vontade de viver desde 02 de outubro de 1998”.
Na sequência dos acontecimentos, as coisas foram só piorando para ele, jogado ao túmulo do esquecimento.
Foi convidado a receber um título de doutor honoris causa na Universidade de Toronto, mas foi aconselhado a não ir, como também ocorreu com todos as outras viagens previstas.
O livro “Perché non sono eretico”, foi publicado postumamente, em 2012, mesmo estando pronto bem antes. Nesse livro, Dupuis comentava a sua opinião sobre a declaração Dominus Iesus e também todo o processo relacionado à sua notificação.
O livro foi editado por William Burrows, e publicado na Itália em 2012, com base na versão original inglesa. Até hoje o livro também não foi publicado em português.
Voltando ao livro de O´Connel, Dupuis relata já depois da notificação, a ação controladora de Ratzinger continuou, com a censura às suas saídas para conferências, como sempre fazia.
Em carta de Ratzinger ao superior de Dupuis, o padre Kolvenbach, em janeiro de 2002, ficava claro que o rechaço à presença de Dupuis em duas das conferências citadas era uma iniciativa pessoal dele, do "Panzer-Kardinal"
Dupuis foi também retirado da editoria da revista Gregorianum, da qual fizera parte durante muitos anos.
Tudo isso ocorria sob o frio e indiferente olhar do reitor da Gregoriana. Todo o processo foi vivido por Dupuis com muito sofrimento.
Ele dizia a respeito: “Passei e suportei uma profunda ferida que jamais terá cura. Não poderei ser a mesma pessoa de antes, que se alegrava com a vida com um senso de liberdade a que todos deveriam ter direito”.
Dupuis relata que seu ensino na Gregoriana gozava de grande sucesso, mas isso também o fragilizava, provocando igualmente muito ciúme entre outros docentes.
Relata que alguns diziam que os ataques que sofria tinham também como alvo a teologia asiática, de que era um entusiasta.
Dupuis chega a dizer no livro de O´Connel que o cardeal Ratzinger nem chegou a examinar pessoalmente o seu caso, restringindo-se a contentar-se com a opinião de alguns consultores da CdF.
Fala ainda da própria “ignorância” dos cardeais que compunham a CdF a respeito de informações mais precisas sobre o seu processo.
O livro feito em homenagem ao seu trabalho de teólogo, em 05 de dezembro de 2002 (seu Festschrift) não recebeu nenhuma saudação dos altos funcionário do Vaticano, nem mesmo da Gregoriana.
Durante o lançamento do livro-homenagem, Dupuis relatou com emoção que o único verdadeiro amor de sua vida tinha sido sempre Jesus Cristo.
Desde que ocorreu a notificação de seu livro, Dupuis passou a ser “abandonado” por sua Universidade. Mesmo recebendo a aprovação de seu superior, o padre geral, para permanecer morando na Gregoriana, ele percebeu que estava ali cada vez mais deslocado, com pouquíssimos os que ainda podiam acolhê-lo com carinho.
Suas refeições eram feitas solitariamente. Seu sentimento e vontade era de deixar logo aquele lugar. Como recurso, contava apenas com os 150 Euros mensais para suas despesas pessoais.
Suas energias vitais foram minguando cada vez mais, e sua caminhada foi perdendo a luz.
A dor por que passou, de dimensão violenta, foi aumentando, vindo a falecer pouco depois do Natal. Foi internado depois de desfalecer no refeitório da Universidade Gregoriana, e veio a falecer em 28 de dezembro de 2004.
Por causa disto e de tantas outras coisas, fica muito difícil para mim dizer que celebro com alegria a passagem de Bento XVI.
O que posso afirmar, como católico peculiar, é que não consegui alcançar a virtude de amar Bento XVI.
Lembro-me que quando ele se tornou papa, num dos jornais do dia seguinte, Leonardo Boff, afirmou: “Vai ser muito difícil amar esse papa”.
Digo a vocês hoje, também com penar, que continuei tendo essa mesma dificuldade ao longo de sua atuação como papa. Peço a Deus, que o receba com carinho, mas há névoas que precisam ser ainda trabalhadas no seu juízo final.
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