domingo, 8 de janeiro de 2023

A eternidade no tempo

 A eternidade no tempo

 

Essa reflexão nasce de um debate on-line ocorrido no Grupo de Emaús, em janeiro de 2022. Tudo ocorreu depois da morte do papa Ratzinger.  O debate foi rico e diversificado. Aqui retoma a discussão: 


Voltando ainda ao nosso debate, que já daria um livro, queria buscar trazer alguns novos elementos. Entendo perfeitamente a dificuldade apresentada por alguns, entre os quais, o querido Celso Carias, sobre essa questão do juízo final, do céu, purgatório, ou inferno. Ocorre que depois de minhas leituras sobre o “mundo invisível dos fungos” e da teia vital que une todos os seres num laço de profunda unidade, mudanças substantivas ocorreram em minha teologia. Pude também tentar aprofundar com mais calma a reflexão de Francisco na Laudato si, quando fala na interligação entre as coisas, mas sobretudo quando indica logo no início da encíclica que todos nós somos terra, e que nosso corpo vem constituído de elementos dos planetas.

 

Depois de ler o estonteante livro do filósofo italiano Emanuele Coccia, Metamorfoses(2021 – o original francês é de 2020), muitas reflexões brotaram iluminando temas de meus trabalhos. Abro aqui com uma pista já levantada por Jung em seu livro: Memórias, sonhos, reflexões(1961). No prólogo de sua obra ele diz que a vida sempre se afigurou a ele como “uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma”. Diz acreditar na “perenidade da vida sob a eterna mudança”. É também o que fala Gil em sua bela canção Tempo Rei, contrastando com a visão de Caetano onde fala em fim do ciclo do tempo. 

 

A reflexão de Coccia vai nessa linha de Jung, defendendo vivamente uma ideia de Metamorfosee não de fim. Sublinha, com razão, que o sopro que nos habita não finda com o cadáver. Nós e toda a humanidade estamos vinculados ao ciclo de relacionamentos, onde nada tem, propriamente, substancialidade. O que somos é um “prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior”. O nascimento é um “acréscimo” em elo de corrente de transformação da vida, e a morte é simplesmente “o limiar de uma metamorfose”.

 

Cada ser vivo expressa em seu ser “a vida do planeta inteiro”, e quando passamos para outra margem, não se dá um descanso, como tendemos a dizer, mas a movimentação continua, sob outra forma. Por isso a pensadora Donna Haraway se define hoje mais como “compostista” do que “pós-humanista”. E por que ? Pelo fato de nosso corpo se transformar em composto que vai alimentar novas vidas.

 

Essa reflexão provoca sérias interrogações para a nossa teologia. Com a teologia moderna e contemporânea já começamos a questionar essa ideia de vida separada, para além da morte, onde reina um espírito que se liberta do corpo para viver num outro lugar. 

 

Superamos, felizmente essa ideia, e os livros de Leonardo Boff nos ajudaram a pensar com mais integralidade: a ideia de que o Reino de Deus está no meio de nós, de que “céu” e “inferno” traduzem modos de existência e não lugares. Leonardo é bem claro em seu livro de 1972, Jesus Cristo libertador: “o reino de Deus não é um território mas uma nova ordem das coisas”. O reino, diz com acerto, “é a totalidade desse mundo material, espiritual e humano agora introduzidos na ordem de Deus”.

 

Também Karl Rahner  ajudou-nos a transformar nossa ideia de eternidade. Para ele “é no tempo – como fruto maduro dele – que surge a eternidade”. Não há porque empurrar esse tempo para um “além”. Aprendi também com Adolphe Geshé que a salvação não é algo que se dá além, mas é o resultado positivo de uma vida nobre e bem sucedida no tempo. Aprendemos também um novo modo de entender a ressurreição de Jesus, vista não mais como a revivescência de um cadáver, mas como a manutenção viva de uma memória, que não se apaga na história. 

 

Com isso, fica obtuso pensar em “juízo final”, fora do tempo ou em lugares fantasmagóricos, fora do tempo, identificados como inferno, purgatório ou céu. Isso não significa abster-se de trabalhar com esses símbolos, que permanecem vigorantes e importantes. Mas agora sinto que o tal “juízo” se dá no tempo, quando as pessoas que fazem de sua vida uma experiência do mal, não permanecem vivas no aquém e no coração da pessoas. A maldade delas não tem futuro, no sentido de que serão esquecidas e permanecerão na morte. 

 

Há aqueles que deverão passar por uma “purgação”, como diz com acerto Susin, mediante um processo de discernimento, que pode até ser da própria pessoa ao final de sua vida. Não sei se foi o caso de Ratzinger. Mas pode até ser. 

 

Lendo aqui um dos três livros da trilogia de Schillebeeckx, História humana, revelação de Deus (1994), ele diz que “não há inferno para os homens maus, mas eles “castigam-se eternamente a si mesmos”. Isso me faz lembrar o filme O inocente, de Lucchino Visconti, quando o autor do mau passa toda sua vida lavando-se do sangue “invisível” de suas mãos. A maldade, diz Schillebeeckx, bem como a opressão, não têm futuro: “é sem esperança, em virtude de sua própria lógica interna”. 

 

Ir para o inferno não é ir para um lugar, mas permanecer no esquecimento ou queimar-se na dor de uma vida sem sentido. É como o personagem do romance de Graciliano Ramos, Paulo Honório, cuja vida foi toda tecida por maldade. Ao final de seus dias, refletindo em sua fazenda, depois que todos o abandonaram, e também sua mulher com o suicídio, encontra-se ali na mesa, sozinho, refletindo sobre o que foi o seu passado. Ele diz:

 

“O que estou é velho. Cinquenta anos (...). Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casa espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada (...). Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam (...) Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes (...) Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria (...) Eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos”.

 

Isso, gente, para mim, é o inferno. O céu, é outra coisa, e aquele modo de ser tranquilo de uma vida vivida com dignidade e nobreza. Quando estamos tranquilos e serenos tendo como oferta nas mãos simplesmente a riqueza e generosidade que pautaram uma vida de honradez.

 

 

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