Por indicação de Nádia Gotlib fui ler a crônica de Lêdo Ivo sobre Clarice. O título é impactante: Clarice Lispector ou a travessia da infelicidade (Revista TriploV de artes, religiões e ciências - abril 2010). Gostei muito do trabalho. O autor sublinha um dado nem sempre lembrado pelos biógrafos de Clarice que é sua passagem por Maceió. A família em sua sofrida itinerância chega em Maceió e "pôde enfim respirar o ar de segurança e esperança numa cidade nordestina". Ele fala sobre o grande impacto em Clarice da "luminosidade solar" da cidade, tão diferente daquele neblina triste de Berna na Suiça, onde Clarice viveu suas mais duras depressões.
Lêdo Ivo sinaliza que a alagoanidade de Clarice "sempre foi escondida pelos seus biógrafos e intérpretes", que passam rapidamente por esse momento importante na vida da escritora.
Quando chega ao Brasil, Clarice chega despossuída de tudo: "Na operação transplantadora ela perdeu tudo o que trazia: a pátria, a língua e o nome. Uma nova pátria se abriu a seus passos e à sua imaginação. Uma lingua nova passou a substituir a lingua perdida. E um novo nome substituiu o nome verdadeiro, perdido para sempre, e para sempre escondido".
Como mostra Lêdo Ivo, Clarice Lispector acolheu com alegria a nova lingua, naturalizou a lingua, "um idioma sola, alagoanamente solar, destinado a narrar as tribulações de pequenas criaturas rodeadas de si mesmas e desaparelhadas para efetuar o trajeto em direção aos outros; uma prosa de escancarada diurnidade mesmo quando ela fala da noite e relata a escuridão".
Não foi fácil a travessia de Clarice, desde as dificuldades de publicação de suas obras que foi encontrando pelo caminho. As resistências de críticos literários, como Álvaro Lins e Otto Maria Capeaux. Lêdo Ivo relembra os tempos de desapontamento editorial, quando quase ninguém queria publicar Clarice; e quando depois de separada de diplomata, passou por muitas dificuldades financeiras. Até mesmo nas roupas, aproveitava daquelas dos tempos áureos do mundo diplomático, "que lhe conferiam um ar dessueto e estrangeiro, de fora da estação", num "processo de sua própria destruição e infelicidade".
Das influências que sofreu, Lêdo Ivo assinala as presenças de Katherine Mansfield, Rosamond Lehman, Clemence Sane e Virgínia Woolf, com quem Clarice partilhava muitas afinidades. Reitero aqui o influxo de Katherine Mansfield, lembrado por tantos outros autores. Entre ela e Clarice havia uma
"espécie de identidade de olhar: um olhar deslumbrado e pronto para enxergar as coisas miúdas ou quase imperceptíveis, a subterrânea fervilhação d a vida cotidiana, e captar o segredo das paisagens e o mistério engasgado nas criaturas aparentemente banais - um olhar de quem está vendo as coisas pela primeira vez e consigna essa descoberta num estilo poético partilhado entre a concretudo e a evanescência".
Lêdo Ivo conclui o seu texto falando do túmulo de Clarice, no cemitério judeu do Caju, onde a lápide apenas menciona o seu nome, sem indicar a idade. E sublinha: "Foi a sua última viagem de emigrante. Agora, mudada em pó e glória, ela está, ao mesmo tempo, perto e longe do coração selvagem da vida".
Nenhum comentário:
Postar um comentário