quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Violência e Paixão, de Luchino Visconti

 Violência e Paixão, de Luchino Visconti – Paz e Bem, 10/11/2021


Faustino Teixeira / Paz e Bem-IHU-PPCIR

 

Itália/França 1974

 

Diretor: Luchino Visconti

 

Atores: Burt Lancaster, Helmut Berger, Silvano Mangano

Música de Franco Mannino

Fotografia de Pasqualino de Santis 

Figurinos de Piero Tosi e Yves Saint-Lorent

Roteiro: Luchino Visconti, Enrico Medioli e Suso Cecchi D´Amico

Produção: Giovanni Bertolucci

 

Trata-se do penúltimo filme de Visconti[1]. Em 1951, com Belíssima, Visconti dava seus últimos passos neorrealistas, antes de realizar uma obra prima que foi Rocco e seus irmãos (1960): “um drama social elevado ao máximo da estética narrativa, contando a história da família que vai morar em Milão e deve, com o tempo se adaptar à nova vida”. Depois veio Leopardo (1963), que ganhou a palma de ouro em Cannes (sobre um nobre príncipe que vive a decadência de sua nobreza e a ascensão da burguesia na Itália de 1860).

 

O cinema de Visconti é bem distinto daquele de Hollywood, indicando temas que tocam a nervura da vida e da imperfeição. A estética do diretor nos apresenta uma beleza “contaminada por processos que a corroem, figurados na degradação do corpo que envelhece em contraposição aos encantos físicos, que se supõe intactos, da juventude”

 

O que me faz lembrar o Rilke das Elegias de Duíno: “O que é nosso flutua e desaparece”; “Olhai, as árvores são; as casas que habitamos, resistem. Somente nós passamos” (segunda elegia); há “um ar de despedida em tudo que fazemos” (oitava elegia).

 

Violência e Paixão tem um toque auto-biográfico, e foi realizado dois anos antes da morte de Visconti, e já estava na ocasião com sua saúde debilitada, em razão de um infarto sofrido durante as filmagens de Ludwig (1973), que o prendeu a uma cadeira de rodas até a sua morte, em 1976. Tinha na ocasião, 68 anos.

 

Visconti era um cineasta descendente de uma família nobre de Milão, e seus filmes são sempre envolvidos por um clima aristocrático. Era um cineasta marxista e um gênio no teatro. Era também homossexual, que viveu um romance com o ator australiano Helmut Berger, que fez o papel de Konrad em Violência e Paixão, que era amante da Marquesa Bianca (interpretada por Silvana Mangano).

 

O filme Violência e Paixão (Conversation Piece[2]– Conversas em família) -  é visto por alguns críticos como um testamento político e estético de Visconti. O diretor tinha a consciência que esse seria um de seus derradeiros filmes.

 

Foi premiado com cinco categorias do Prêmio Nastro D´Argento e o prêmio de melhor filme e ator do Prêmio David di Donatello e o troféu de melhor filme no Prêmio David Europeu, todos em 1975.

 

Identificava-se com o “doloroso olhar pela vida que se sente escapar” do personagem professor, cujo “rosto envelhece, e as mãos se abrem impotentes” num “ceticismo sem fronteiras”. O filme retrata, de certa forma, um réquiem trágico do diretor,  em sua “viagem melancólica que tem a doença por companheira”. Daí a cena forte do eletrocardiograma, cujo gráfico se desdobra “dando-nos a trajetória do pulsar de um coração e o seu momento limite”.

 

No filme, o velho professor[3]vivia numa certa “torre de marfim”, como um intelectual solitário entre clássicos pintores ingleses do século XVIII e XIX, que estavam estampados em sua sala; e igualmente embalado pela música de Mozart.

 

O filme é todo gravado no interior da casa. 

 

O professor tinha deixado o trabalho já há algum tempo, e agora podia sorver o puro deleite estético, entre quadros, livros e discos (das melhores gravações de peças eruditas). Como sua companhia, apenas uma velha criada. A solidão tinha se instaurado no interior daquelas paredes. Ele era americano, de mãe italiana. Viveu muito tempo nos Estados Unidos, tendo lutado na Segunda Guerra, e há tempos morava no imenso apartamento herdado da mãe.

 

O professor era um homem sábio e refinado, com todo porte de um aristocrata europeu. Alguém cioso de sua solidão, numa vida pacata e tranquila. 

 

De repente, essa vida tranquila vem interrompida pela entrada em cena da marquesa Bianca Brumonti. A intrusa, com aquele ar de novo rico, pretende alugar o andar de cima do ampla apartamento do professor. Ele recusa no início, mas depois cede. Com ela inserem-se na trama a jovem Lieta, com seus 18 anos (interpretada por Claudia Marsani), filha da marquesa; e também um jovem amigo da família, Stefano (interpretado por Stefano Patrizi) e Konrad, amante da marquesa (interpretado por Helmut Berger)

 

Cabe aqui lembrar o grande interesse de Visconti em colocar personagens belos em seus filmes. Era alguém apaixonado pela beleza: veja a presença de belos atores como Alain Delon (Rocco e seus irmãos; O Leopardo); Claudia Cardinale (Vagas estrelas da Ursa, em 1965 e um breve papel em Violência e Paixão, como a mulher do professoraque), Dominique Sanda (Jardin dos Finzi-Contini, de Vittorio de Sica; Em violência e Paixão aparece rapidamente como a mãe do professor) e Helmut Berger (Os deuses malditos – 1969, Ludwig – 1972, Violência e Paixão).

 

Retomando o filme, a mudança de posição do professor foi também motivada pelo encantamento do professor com Konrad e por sua sensibilidade, inexistente na marquesa e sua filha.

 

Essa aproximação de Visconti pela beleza, pelo fascínio da juventude: aqui no personagem Konrad, como em Morte e Veneza, por Tadzio.

 

O professor, apesar da grande distância com relação aos outros, deixa que eles penetrem em sua solidão. Talvez pudesse estar cansado da vida solitária, abrindo portas para, quem sabe, a última oportunidade de “ter algo como uma família”. Com grande sensibilidade, Visconti revela as entranhas de um professor situado “num presente sem futuro”.

 

Fina ironia, a entrada da “chusma barulhenta” na vida do professor vai provocar um grande tumulto interior. 

 

O professor vem envolvido numa trama de jogos neuróticos entre a marquesa, sua filha com seu namorado e o amante da marquesa.

 

Konrad passa a habitar o apartamento de cima, e o professor “vai deixando-se fascinar pelo mundo obscuro do rapaz. Uma atração homoerótica se insinua entre eles. Mas Konrad continua enredado em seu relacionamento agressivo com a Marquesa, além também de transar a três com Lietta e Stefano (ao som de Roberto Carlos – A distância: Testarda io, na voz de Iva Zanicchi[4])

 

“Nunca mais você ouviu falar de mim

Mas eu continuei a ter você

Em toda esta saudade que ficou

Tanto tempo já passou e eu não te esqueci

 

Quantas vezes eu pensei voltar

E dizer que o meu amor nada mudou

Mas o meu silêncio foi maior

E na distância morro todo dia sem você saber”

 

Algumas cenas antológicas: a cena do professor amparando Konrad quando este leva uma surra de um grupo de marginais (e a cena em que assiste ao rapaz tomando banho); quando o professor flagra o trio Lietta, Stefano e Konrado, totalmente nus e fumando maconha em plena biblioteca do apartamento dele; e a discussão entre o grupo no jantar final.

 

Após a cena de amor entre os três, Lietta percebe a aproximação do professor e diz:

 

“Vendo uma bela forma, beije-a e, se possível, a abrace... seja menina ou menino. Não seja tímido, seja impetuoso, seja vigoroso. A vida é curta. Aproveite todo o contato que sua carne possa querer. Não há vida sexual na dor. 

 

E em seguida continua:

 

Veja, é como um jogo. Não tem nada de terrível.

 

E indaga ao professor:

 

Quando era jovem, não era igual?

 

E ele:

 

Não, de modo algum. 

 

E ela:

 

Perdeu muita coisa, mas deve ter se divertido. É rico e bonito. O que fez?

 

E ele:

 

O que fiz? Eu estudei, viajei, estive na guerra, me casei. Não deu certo. E quando tive tempo de olhar em volta... Vi que estava entre gente com quem não tinha nada em comum (...) Agora sou um velho. A única história de amor que combina comigo... é “Rei Lear”, o amor do pai pelos filhos.

 

E aí intervém Stefano, amigo da família:

 

Evitou isso bem, nada de filhos. Muita confusão.

 

E aí retoma Lietta:

 

Se um daqueles tarados for descuidado e me engravidar... mando o aborto para o inferno e dou o bebê para você (dirigindo-se ao professor)

 

O professor:

 

Não me sobra tempo. Preciso de um filho mais velho. Alguém para quem possa dizer umas coisas que sei.

 

E Lietta:

 

Konrad! Adote Konrad. Ele é inteligente, bonito, tem boa aparência. E se ele parasse com os jogos para ganhar dinheiro... ele seria perfeito.

 

Konrad estaria no lugar certo. Mas ele sairia caro. Ao menos no começo. As coisas precisam se aquecer.

 

O professor os convida para o jantar no dia seguinte:

 

Stefano fala que não encontrava com sua família há tempos, que esteve com eles naquele mesmo dia e tinha dado tudo errado. Seu pai, como o professor, esteve calado todo o tempo. Estava aborrecido com a greve de seus operários, que já durava uma semana. E ele, o pai, não falava com o irmão de Stefano que era da esquerda.

 

E então provoca o professor:

 

O senhor não tem operários em greve, nem um filho que dá uma de marxista... (e olha para Konrad). É como a figura de suas pinturas: cercado de pessoas calmas e serenas, sem problemas. Gosta de todas?

 

Responde o professor:

 

Tenho minhas preferencias, e minha infidelidade.

 

Lietta faz menção à relação do professor com a nova família, que está a jantar com ele, e diz que logo vai brigar com todos...

 

O professor responde:

 

Os velhos são animais estranhos... Aflitos, intolerantes. Com medo da solidão que criaram para si mesmos e que defendem assim a vêem ameaçada.”

 

O filme é repleto de simbologias gays, sobretudo com a presença de Helmut Berger, que exala homoerotismo todo o tempo.


O certo é que a visão do professor nunca foi a mesma, depois dessa "entrada" abrupta de novos personagens em sua vida. Os momentos finais do filme, belíssimos, revelam essa mudança pela qual passou. Uma das coisas que mais me impressionaram na minha última visão do filme, foi a presença da personagem Lietta, com seu carinho tão especial com o professor. O filme é de uma grande atualidade, trazendo temas importantes relacionados à solidão, sexualidade, envelhecimento e a presença do fascismo.

 

 

 

 



[1]O último vai se O Inocente (1976)

[2]Conversation piece significa retratos de família, ou seja, o termo usado para um grupo informar de retratos, especialmente os pintados na Grã Bretanha nos século XVIII, a partir de 1970.

[3]interpretado pelo ator Burt Lancaster (1913-1994): numa performance “melancólica e de olhos tristes”. Lancaster havia sido artista de circo antes de virar ator de cinema e sua beleza era “máscula”, o oposto da beleza quase feminina de um Alain Delon ou Helmut Berger. Nas mãos de Visconti, Lancaster transforma-se num “ator que fala pausadamente, que brilha mais nos silêncios, nas pausas, do que na voz alta”.

[4]“Nunca mais você ouviu falar de mim

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