quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O fardo dos inocentes: pedofilia na igreja católica


O fardo dos inocentes: pedofilia na igreja católica

No impressionante conto de Clarice Lispector, "A pecadora queimada e os anjos harmoniosos", a figura do sacerdote foi a que mais me marcou. Trata-se de alguém perpassado por dúvidas difíceis, diante da condenação de uma mulher que pecou. No fundo, ele está dilacerado diante do julgamento pois ninguém nesse mundo está livre de pecados e falhas. Em certo momento do conto ele relata: "Os inimigos do homem estão na sua própria casa". Sua grande dor estava em ser cúmplice de um "pecado de castigar o pecado".

O conto serviu de base para uma reflexão minha e de minha turma sobre o grave problema da pedofilia na igreja católica, e nas igrejas em geral. O problema é grave e universal. Imagina o que significa para o fiel viver essa experiência com alguém que deveria ser para ele um exemplo de vida...
Em matéria de página inteira do Jornal O Globo, de 06/10/2021, essa questão vem tratada de forma viva e ardente. Com o título, "Indiferença até cruel", o artigo expõe as veias abertas da pedofilia no âmbito do catolicismo mundial.
Na França são 216 mil vítimas de abuso sexual desde 1950, como apontou um recente relatório. Nos Estados Unidos conhecemos o escândalo que envolveu o ex-arcebispo Bernard Law, que encobriu os abusos sexuais envolvendo 90 padres durante décadas; na Alemanha, um relatório de 2018 apontou o abuso de pelo menos 3.677 crianças, com 13 anos ou menos, por 1.670 membros do clero entre 1946 e 2014; No Chile, outro relatório apontou a presença de 158 pessoas ligadas à igreja católica envolvidas em abusos sexuais desde 1960; na Polônia, país tradicionalmente católico, os casos de abusos sexuais também foram inúmeros. Um relatório revelou casos de abusos sexuais envolvendo 382 membros da igreja pelo abuso sexual de 625 crianças, e a grande maioria menor que 16 anos.

De forma ousada e corajosa o papa Francisco, na audiência geral de 06 de outubro de 2021, no Vaticano, retomou o relatório acolhido pela Conferência dos religiosos e religiosas franceses, redigido por uma comissão independente, a respeito dos abusos sexuais ocorridos no âmbito eclesial desde a década de 1950. Emocionado, o papa expressa sua tristeza e dor diante do que ocorreu com todas as vítimas dessa violência e mais ainda, sua vergonha, que é de todos, sobretudo pela incapacidade da igreja em colocar tudo isso no centro de suas preocupações. E partilha uma oração: "A ti Senhor a glória, e a nós a vergonha". Em seguida, encoraja "os bispos e superiores religiosos a continuarem a cumprir todos os esforços a fim de que semelhantes dramas não mais se repitam".
O caso dos Legionários de Cristo e de seu fundador, Marcial Maciel Degollado, foi desentranhado por Marco Politi, grande vaticanista, em precioso livro: "Joseph Ratzinger, crisi di un papato" (Laterza, 2011). Ainda no pontificado de Ratzinger (Bento XVI) foi divulgada uma impressionante carta aos católicos da Irlanda, em 19 de março de 2010, em que o papa faz um mea culpa pelos graves pecados da igreja. Pela primeira vez, um papa reconhece coletivamente esse pecado no interior da igreja católica. E todas as vítimas, como em geral ocorre, ficaram submersas num "muro de silêncio".
Revelações impactantes nesse campo da violência sexual na igreja católica são apresentadas em filmes como Em nome de Deus (2012), O clube (2015), Spotlight (2016); Graças a Deus (2019), Não conte a ninguém (2019), Exame de consciência (2019), dentre outros.

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