Francisco e o desafio dos povos da Amazônia
Faustino Teixeira
Questões
relacionadas à teologia do pluralismo religioso reaparecem quando analisamos
determinados discursos ou documentos do magistério eclesial católico. Verificamos
como a teologia do acabamento permanece vigente, ainda hoje, embora já
visualizamos horizontes importantes de mudança nesse campo. Impressiona-me, por
exemplo, o discurso do papa Bento XVI, na sessão de abertura dos trabalhos da V
Conferência de Aparecida, em São Paulo (13/05/2007). Ali ele dizia:
“O que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção”.
Essa
visão teológica de Bento XVI estava também arraigada no pensamento de João
Paulo II. Veja o exemplo contundente na Carta Encíclica Redemptoris Missio, sobre a validade permanente do mandato
missionário (1990). A mesma ideia de acabamento e remate, favorecido pela
novidade do evangelho:
“Ao
anunciar Cristo aos não-cristãos, o missionário está convencido de que existe
já, nas pessoas e nos povos, pela ação do Espírito, uma ânsia – mesmo se
inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que
conduz à libertação do pecado e da morte” (RM 45)
Na
linha desta percepção, o batismo seria o sacramento que operaria “um novo
nascimento do Espírito”, instaurando “vínculos reais e inseparáveis com a
Trindade” (RM 47)
Por
diversas vezes em meus textos contestei este tipo de posicionamento, buscando
caminhos novidadeiros para esta reflexão.
Ao
ler esses dias o belo discurso do papa Francisco no encontro com os povos da
Amazônia, durante sua viagem ao Peru, em 19 de janeiro de 2018, verifiquei o
influxo do Documento de Aparecida em trechos de sua reflexão. Veja em especial
os números 529 e 531 do documento mencionado.
O
discurso é marcado por um espírito de grande abertura. Há passagens magníficas
que sinalizam um novo passo. Fala do “rosto plural”, de “variedade infinita”
marcando a caminhada destes povos da Amazônia: “Nós, que não habitamos nestas
terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos
penetrar – sem o destruir – no tesouro que encerra esta região”.
O
papa fala com contundência das ameaças que cercam estes povos: um território em
disputa, com a violenta ideologia extrativa e a enorme pressão de grandes
interesses econômicos. Fala da “perversão” presente nas políticas que pretendem
promover a “conservação” da natureza; fala ainda do grave problema do “tráfico
de pessoas”.
Após
relatar as ameaças sofridas, Francisco reitera a importância dos esforços para
“gerar espaços institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os
povos nativos, assumindo e resgatando a cultura, a linguagem, as tradições, os
direitos e a espiritualidade que lhes são próprios”. Sublinha que iniciativas
alvissareiras encontram-se já em campo, com os povos originários assumindo o
protagonismo da luta em favor do “bom agir” e do “bom viver”. Povos que assumem
a responsabilidade essencial de serem os guardiães da Casa Comum.
Para
Francisco, estes povos não podem ser considerados “uma minoria, mas autênticos
interlocutores”. Rompe-se, assim, aquela ideia perversa de que os brancos
ocidentais são os “donos absolutos da criação”. O papa já havia falado sobre
isto na Laudato si, quando questionou
o “antropocentrismo despótico que se desinteressa das outras criaturas” (LS
68); e agora retoma o argumento:
“É urgente acolher o contributo essencial que oferecem à sociedade inteira, não fazer das suas culturas uma idealização dum estado natural nem uma espécie de museu dum estilo de vida de outrora. A sua visão de mundo, a sua sabedoria têm muito para nos ensinar a nós que não pertencemos à sua cultura. Todos os esforços que fizemos para melhorar a vida dos povos amazônicos serão sempre poucos”.
“É urgente acolher o contributo essencial que oferecem à sociedade inteira, não fazer das suas culturas uma idealização dum estado natural nem uma espécie de museu dum estilo de vida de outrora. A sua visão de mundo, a sua sabedoria têm muito para nos ensinar a nós que não pertencemos à sua cultura. Todos os esforços que fizemos para melhorar a vida dos povos amazônicos serão sempre poucos”.
Essa
cultura dos povos originários, como assinala Francisco, é “sinal de vida”.
Temos
aqui uma reflexão extraordinária, que se associa a importantes reflexões no
campo da antropologia. Vale lembrar a reflexão feita por Eduardo Viveiros de
Castro no prefácio do precioso livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2015): “Como observou
Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe
ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um ´retorno progressivo
às cosmologias antigas e às suas inquietações, as quais percebemos subitamente,
não serem assim tão infundadas`”.
Na
parte final do discurso de Francisco aos povos da Amazônia aparece então o tema
da missão. E aí o “espírito” de Aparecida vem retomado, com traços que são,
alguns positivos, mas outros problemáticos, ao menos na minha mirada. Vejo como
pertinente a ideia de que certos missionários e missionárias comprometeram-se
vivamente com os povos indígenas, na defesa de sua cultura, e o fizeram
“inspirados no Evangelho”. Quanto a isto, não tenho dúvida. Mas nem sempre assim
ocorreu, como sabemos bem. As descrições tecidas por Davi Kopenawa em seu livro
sobre a ação dos missionários protestantes são impactantes, sobretudo na parte
que aborda “a fumaça do metal”. Isto ocorreu igualmente na ação de missionários
católicos.
O
influxo de Aparecida, em linha de sintonia com a perspectiva do acabamento,
aparece em trecho ao final do discurso de Francisco: “Não sucumbais às
tentativas em ato para desarraigar a fé católica dos vossos povos”. Neste
ponto, tenho minhas particulares dificuldades. O desafio não está em manter a
fé católica viva, mas em buscar ouvir, captar e defender a dignidade da
diferença. A inculturação se processa não apenas traduzindo o evangelho numa
nova perspectiva, mas em sondar os
traços originais e novidadeiros presentes na cosmovisão do outro, o que ajuda a
delinear novos contornos para a fé cristã, sem que isto signifique em momento
algum apagar a singularidade do outro. É assim, a meu ver, que se busca
construir uma igreja diferente, com rosto amazônico e indígena.
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