A
vida é bela
Faustino Teixeira
Nos
passos de meus cursos sobre mística tomei contato com uma personagem
maravilhosa e única, Etty Hillesum, a jovem judia holandesa de ascendência
russa que morreu em Auschwitz em 1943, aos 29 anos de idade. Foi uma mística
singular, uma “santa” fora dos esquemas, mas movida por uma espiritualidade de
intensa profundidade. Partilhei esse encanto com outras amigas, como a teóloga
Maria Clara Bingemer e a poeta Mariana Ianelli. De Mariana recebi um lindo
livro, de composição artesanal, em 2015, com a “versão festiva” de um artigo
que ela tinha escrito, mas agora recheado de fotos dos lugares por onde passou
Etty na sua juventude. Um livro belíssimo. Agora, recebo o livro de crônicas de
Mariana, Entre imagens para guardar (2017), e logo no início deparo-me com um
texto falando sobre Etty: A menina que não sabia se ajoelhar. Mariana relata
passagens do diário da jovem holandesa, algumas curiosas como a de um guarda
monido com sua metralhadora nas costas, colhendo flores. Vale a descrição de
Mariana:
“Algumas cenas do campo são quase idílicas, tão irreais quanto a própria desgraça. Etty numa noite de verão comendo repolho junto dos tremoceiros. Etty deitada no seu catre e a Ursa Maior sobre os barracões. Porque nem tudo nesse inferno é torre de vigia, arame farpado, lamaçal. Há também alguém lendo Rilke para um amigo, há uma indignação profunda mas limpa de rancor, e de repente a sensação de que a vida parece diferente, que também ela se infiltra num campo de trânsito e coexiste com o horror”.
“Algumas cenas do campo são quase idílicas, tão irreais quanto a própria desgraça. Etty numa noite de verão comendo repolho junto dos tremoceiros. Etty deitada no seu catre e a Ursa Maior sobre os barracões. Porque nem tudo nesse inferno é torre de vigia, arame farpado, lamaçal. Há também alguém lendo Rilke para um amigo, há uma indignação profunda mas limpa de rancor, e de repente a sensação de que a vida parece diferente, que também ela se infiltra num campo de trânsito e coexiste com o horror”.
Sem
dúvida, esse é o traço mais bonito presente na vida dessa jovem holandesa: ser
capaz de captar entre os escombros um raio de luz, ou como diz o poeta
Ungaretti, “a límpida maravilha da imensidão”. Em meio a tanto sofrimento
conseguia perceber “uma nesga de céu visível” e gritar com alegria: “A vida é
muito bela, apesar de tudo é muito bela”. O segredo disto estava no seu
repertório interior, na sua vida em profundidade, cativada ao longo dos
anos. Ela dizia numa página de seu
diário, em 9/10/1942: “Através de mim correm os largos rios e situam-se altas
montanhas. E por detrás dos matagais do meu desassossego e confusão estendem-se
as largas planícies rasas de meu sossego e entrega. Todas as paisagens estão
dentro de mim”.
Dizia
ainda em outra página de seu diário, em 12/03/1942, que “quando uma pessoa leva
uma VIDA INTERIOR, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou
dentro dos muros de um campo”. Seu olhar conseguia captar jardins num campo de
escombros: “O jasmim nas traseiras da minha casa encontra-se agora
completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos dias. As suas
florzinhas brancas bóiam dispersas nas lamacentas poças negras do telhado raso
da garagem. Mas, algures em mim, esse jasmim continua a florir sem
impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu”.
Etty
tinha consciência da presença das pedras e dos cascalhos no poço de seu mundo
interior, como soterrando a voz de Deus. Sabia, porém, que ele estava ali
presente e atento, e que era preciso desenterrá-lo. Lutava com todas as suas
forças para manter acesa essa memória de vida. Conversava com ele, como um
familiar querido: “Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas
lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda
manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei-de trazer-te todas as flores que
encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás-de ficar
sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível”.
Na
triste paisagem humana do campo de concentraçãoo de Westerbork, ao norte da
Holanda, ela era o “coração pensante”, a alma jubilosa em busca da permanência
da Alegria. Ali estavam desolados tantos companheiros, líderes de círculos
culturais e políticos, desfocados de esperança. Em carta que escreveu a duas
irmãs de Haia durante a guerra, Etty denuncia a situação. Estavam ali todos
juntos “num espaço vazio, entre terra e céu, que têm de preencher eles mesmos,
com o que ainda possuem dentro deles – por fora, já nada existe”.
Os relatos
sublinham que mesmo durante sua última viagem, para Auschwitz, manteve acesa a
esperança. Partiu cantando: uma forma de preservar “a emoção de poucas
palavras”. Como indicou Mariana Ianelli em recente crônica, em torno de três
corações pensantes da poesia brasileira:
“Quando caem alicerces e bandeiras, quando alguém só dispõe de sua humanidade em meio a uma terra desolada, quando valores fundamentais estão sendo postos à prova, o que ainda pode a linguagem? O que se pode reerguer depois de estremecida uma fé interna, o que se pode redesenhar com sentido a partir do caos, qual palavra vale a quebra do silêncio eloquente dos que perderam (quase) tudo, só com a alma por um fio? E qual poeta ainda consegue manter uma melodia sustentável diante do afundamento das próprias seguranças, diante da destruição de territórios e identidades familiares, a casa, a pátria, um ideário?”.
Acredito
que a jovem Etty conseguiu com sua vida e testemunho registrar a presença desta
esperança e desta alegria. E num lindo toque
eucarístico, rasgou o seu corpo como se fosse um pão para oferecer como dádiva
aos amigos queridos e sedentos de seu tempo.
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