sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A vida é bela

A vida é bela

Faustino Teixeira

Nos passos de meus cursos sobre mística tomei contato com uma personagem maravilhosa e única, Etty Hillesum, a jovem judia holandesa de ascendência russa que morreu em Auschwitz em 1943, aos 29 anos de idade. Foi uma mística singular, uma “santa” fora dos esquemas, mas movida por uma espiritualidade de intensa profundidade. Partilhei esse encanto com outras amigas, como a teóloga Maria Clara Bingemer e a poeta Mariana Ianelli. De Mariana recebi um lindo livro, de composição artesanal, em 2015, com a “versão festiva” de um artigo que ela tinha escrito, mas agora recheado de fotos dos lugares por onde passou Etty na sua juventude. Um livro belíssimo. Agora, recebo o livro de crônicas de Mariana, Entre imagens para guardar (2017), e logo no início deparo-me com um texto falando sobre Etty: A menina que não sabia se ajoelhar. Mariana relata passagens do diário da jovem holandesa, algumas curiosas como a de um guarda monido com sua metralhadora nas costas, colhendo flores. Vale a descrição de Mariana:

“Algumas cenas do campo são quase idílicas, tão irreais quanto a própria desgraça. Etty numa noite de verão comendo repolho junto dos tremoceiros. Etty deitada no seu catre e a Ursa Maior sobre os barracões. Porque nem tudo nesse inferno é torre de vigia, arame farpado, lamaçal. Há também alguém lendo Rilke para um amigo, há uma indignação profunda mas limpa de rancor, e de repente a sensação de que a vida parece diferente, que também ela se infiltra num campo de trânsito e coexiste com o horror”.

Sem dúvida, esse é o traço mais bonito presente na vida dessa jovem holandesa: ser capaz de captar entre os escombros um raio de luz, ou como diz o poeta Ungaretti, “a límpida maravilha da imensidão”. Em meio a tanto sofrimento conseguia perceber “uma nesga de céu visível” e gritar com alegria: “A vida é muito bela, apesar de tudo é muito bela”. O segredo disto estava no seu repertório interior, na sua vida em profundidade, cativada ao longo dos anos.  Ela dizia numa página de seu diário, em 9/10/1942: “Através de mim correm os largos rios e situam-se altas montanhas. E por detrás dos matagais do meu desassossego e confusão estendem-se as largas planícies rasas de meu sossego e entrega. Todas as paisagens estão dentro de mim”.

Dizia ainda em outra página de seu diário, em 12/03/1942, que “quando uma pessoa leva uma VIDA INTERIOR, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo”. Seu olhar conseguia captar jardins num campo de escombros: “O jasmim nas traseiras da minha casa encontra-se agora completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos dias. As suas florzinhas brancas bóiam dispersas nas lamacentas poças negras do telhado raso da garagem. Mas, algures em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu”.

Etty tinha consciência da presença das pedras e dos cascalhos no poço de seu mundo interior, como soterrando a voz de Deus. Sabia, porém, que ele estava ali presente e atento, e que era preciso desenterrá-lo. Lutava com todas as suas forças para manter acesa essa memória de vida. Conversava com ele, como um familiar querido: “Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei-de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás-de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível”.

Na triste paisagem humana do campo de concentraçãoo de Westerbork, ao norte da Holanda, ela era o “coração pensante”, a alma jubilosa em busca da permanência da Alegria. Ali estavam desolados tantos companheiros, líderes de círculos culturais e políticos, desfocados de esperança. Em carta que escreveu a duas irmãs de Haia durante a guerra, Etty denuncia a situação. Estavam ali todos juntos “num espaço vazio, entre terra e céu, que têm de preencher eles mesmos, com o que ainda possuem dentro deles – por fora, já nada existe”.

Os relatos sublinham que mesmo durante sua última viagem, para Auschwitz, manteve acesa a esperança. Partiu cantando: uma forma de preservar “a emoção de poucas palavras”. Como indicou Mariana Ianelli em recente crônica, em torno de três corações pensantes da poesia brasileira:

“Quando caem alicerces e bandeiras, quando alguém só dispõe de sua humanidade em meio a uma terra desolada, quando valores fundamentais estão sendo postos à prova, o que ainda pode a linguagem? O que se pode reerguer depois de estremecida uma fé interna, o que se pode redesenhar com sentido a partir do caos, qual palavra vale a quebra do silêncio eloquente dos que perderam (quase) tudo, só com a alma por um fio? E qual poeta ainda consegue manter uma melodia sustentável diante do afundamento das próprias seguranças, diante da destruição de territórios e identidades familiares, a casa, a pátria, um ideário?”.


Acredito que a jovem Etty conseguiu com sua vida e testemunho registrar a presença desta esperança e desta alegria. E num lindo toque eucarístico, rasgou o seu corpo como se fosse um pão para oferecer como dádiva aos amigos queridos e sedentos de seu tempo.

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