O caminho essencial de uma
proximidade responsável
Faustino
Teixeira
O tema do fim da vida é sempre muito desafiante e complexo.
Uma questão que sempre me interessou, com suas inúmeras ramificações e
desdobramentos, entre eles o direito a uma morte com dignidade. Lendo o artigo
do historiador italiano, Alberto Melloni, publicado no jornal La Repubblica e
depois traduzido pelo IHU-Notícias (21/11/2017), fui novamente convocado ao
tema. Tudo a partir de uma excelente mensagem do papa Francisco dirigida aos
participantes do Encontro Regional Europeu da “World Medical Association” em
torno da questão do fim da vida, em novembro de 2017[1].
Com grande sabedoria, Francisco supera os empecilhos
tradicionais em torno da temática da eutanásia e busca encontrar um caminho
novo, de sabedoria evangélica, evitando o léxico costumeiro que fala em
“desligar as máquinas” ou coisas semelhantes, para abordar uma questão tão
delicada como a dignidade daquele que sofre. O pontífice busca uma
“contribuição de sabedoria”, partindo do patrimônio bíblico e evangélico,
complexificando o debate e dando um toque singular em toda a dinâmica que
acompanha o processo de encontro com a “Irmã Morte”.
Como apontou com acerto Melloni, a mensagem de Francisco
faculta uma “mudança de ritmo” no discurso do magistério a respeito do tema,
levantando “o problema do viver a morte como um direito moral”[2]. Em sua tomada de posição, Francisco recorre a
duas expressões importantes e que se tornaram familiares no magistério da
Igreja ao longo do século XX: “suplemento” (Bergson) e “integral” (Maritain).
Como indica Melloni, o “suplemento” que Francisco sugere “não é de ética, mas
de ´sabedoria`. Não é portanto, o recurso a um mecanismo moral ou moralista,
mas a sapientia cordis que sabe que
as dimensões éticas também devem ser medidas sabendo que, por trás de cada
palavra, há o mistério da existência”.
A mensagem de Francisco tem um encaminhamento bem preciso,
e vamos buscar aqui sublinhar alguns dos pontos destacados por ele em sua
mensagem. O papa reconhece inicialmente a riqueza que acompanha os
desenvolvimentos técnicos da medicina, com todo o aperfeiçoamento da capacidade
terapêutica. Os brilhantes esforços no sentido da luta contra o sofrimento e a
doença, bem como da melhora da saúde. Um papel certamente muito positivo,
reconhece Francisco. São intervenções técnicas cada vez mais eficazes, mas que
nem sempre trazem ações resolutivas: “podem sustentar funções biológicas
tornadas insuficientes, ou mesmo substituí-las, mas isto não equivale a promover
a saúde. Ocorre assim um suplemento de sabedoria, pois hoje é mais insidiosa a
tentação de insistir com tratamentos que produzem potentes efeitos sobre o
corpo, mas que nem sempre servem ao bem integral da pessoa”.
Francisco lembra o magistério de Pio XII, num discurso
realizado na década de 1960, destinado aos anestesistas e reanimadores, quando
sublinhou que “não há obrigação de empregar sempre todos os meios terapêuticos
potencialmente disponíveis e que, em casos bem determinados, é lícito abster-se
(...). É portanto moralmente lícito renunciar à aplicação de meios
terapêuticos, ou suspendê-los, quando o seu empenho não corresponde àquele
critério ético e humanista que em seguida será definido como
´proporcionalidade` do coração”. Trata-se de uma decisão “que se qualifica
moralmente como renúncia à ´obstinação terapêutica`”.
Não são questões de fácil resolução, mas procedimentos que
sinalizam importantes juízos no campo da moralidade, que envolvem singular e
atento discernimento. É o que lembra Francisco em sua mensagem. Não há que
aplicar de forma mecânica regras gerais,
mas analisar com cautela “as circunstâncias e as intenções dos sujeitos
envolvidos”. Na visão do papa, “a dimensão pessoal e relacional da vida – e
também do morrer – que é igualmente um momento extremo do viver – deve ter, no
cuidado e no acompanhamento do doente, um espaço adequado à dignidade do ser
humano”. Não se pode perder de vista em momento algum a “pessoa doente”, aquela
que ocupa o lugar principal. O paciente não pode ficar fora das decisões que
envolvem o seu destino. Com base no Catecismo da Igreja Católica, Francisco
lembra que é sobretudo ao paciente, em diálogo com os médicos, que cabe
“avaliar os tratamentos que a ele vêm propostos”, bem como sua
“proporcionalidade” nas situações concretas. Não é um procedimento fácil, mas
que se torna cada vez mais necessário, sobretudo quando se percebe que a
relação terapêutica se torna a cada dia mais fragmentária, isolando o ato
médico da sua relacionalidade essencial.
Francisco toca ainda numa outra questão extremamente
problemática nos tempos atuais, relacionada aos custos da saúde e da
desigualdade terapêutica. Reconhece que os tratamentos se fazem cada vez
mais especializados e onerosos, excluindo parte importante da população de sua
cobertura. Como assinala, “tratamentos progressivamente mais sofisticados e
custosos tornam-se acessíveis a faixas cada vez mais restritas e privilegiadas
de pessoas e de populações, levantando sérias questões sobre a sustentabilidade
dos serviços sanitários. Uma tendência que se pode dizer sistêmica ao
incremento da desigualdade terapêutica”. Trata-se de algo que se visibiliza em
âmbito global, sinalizando que o acesso aos cuidados terapêuticos corre o risco
de “depender mais da disponibilidade econômica das pessoas que das efetivas
exigências de cura”.
Diante desta complexa situação, onde incidem diversos
fatores na prática clínica, Francisco insiste sobre a importância fundamental
da retomada de uma “proximidade responsável”, lembrando com pertinência da
passagem evangélica do bom samaritano (Lc 10,25-37). Lembra que nestas
situações que envolvem o “limite humano supremo” não se pode subtrair a
dinâmica da relação, que envolve valores essenciais como o amor e a
proximidade. Mesmo sabendo que a cura nem sempre pode ser garantida, é
necessário manter aceso o ritmo do cuidado com aquele que vive esta experiência
do limite, respeitando seus direitos e sobretudo sua dignidade. Francisco fala
da importância da medicina paliativa, que se empenha no combate “a tudo o que
torna o morrer mais angustiante e sofrido, ou seja, a dor e o sofrimento”. Não
há que sustentar uma inútil obstinação contra a morte, mas “viver a morte como
um direito moral”. Ela é também portadora de um Mistério que nos escapa. Daí a necessidade
deste “suplemento de sabedoria” para lidar com a questão.
[2] Fim da vida: a dimensão da sabedoria. Artigo de
Alberto Melloni. IHU-Notícias, 21/11/2017: http://www.ihu.unisinos.br/573819-fim-da-vida-a-dimensao-da-sabedoria-artigo-de-alberto-melloni
(acesso em 21/11/2017).
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