quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Na força da devoção

Na força da devoção

“Muita religião,
seu moço!”

Faustino Teixeira


            Um traço característico da sociedade brasileira, apontado por muitos estudiosos, é a relação com o outro mundo. É algo que faz parte da dinâmica e da trajetória de boa parte da população. Uma familiaridade singular com os espíritos, entidades, almas, guias, orixás, que circulam e se comunicam com naturalidade. Como mostrou Gilberto Velho, ao falar dos sistemas de crença na cultura brasileira, é plausível indicar que cerca da metade da população no país participa de alguma forma de sistemas religiosos ou práticas que envolvem a crença nos espíritos e sua manifestação periódica. Esse é o Brasil, das “altas rezas”, das muitas e diversificadas expressões de fé, adornadas com o toque da pluralidade e da interconexão.

            É nesse campo encantado que se encaixam as benzedeiras e benzedores, tecendo as malhas das relações com o outro mundo. São pessoas muito especiais, portadoras de um poder singular, nomizador, que ajudam com suas preces e presença a manter o fundamental equilíbrio das pessoas com o seu ambiente. Tudo se dá através de uma linguagem que cura, de uma palavra que aciona e dinamiza as forças de harmonia e pacificação. É através da benzeção que se garante o funcionamento da normalidade almejada. A palavra guarda também um mistério, e ela se espraia muitas vezes de forma incompreensível, revelando um poder oculto capaz de reorganizar o mundo e conferir sentido. O segredo essencial está na confiança depositada na palavra, e sem ela fica bem difícil a realização do intento.

            Esses agentes da palavra são portadores de um poder, são lideranças reconhecidas pela comunidade. Não é tarefa facultada a todos, mas àqueles que recebem um dom especial, que retomam a cadeia de uma memória comunitária, onde cada palavra tem um lugar definido no “mapa do sagrado”. Na base do ofício há um aprendizado, onde cada agente sabe situar com precisão os espaços que interligam os sujeitos com os espíritos, santos, anjos, almas e entidades. Tudo vem aprendido “no melhor recanto da memória”, sendo aplicado nos momentos de precisão. Há também um traço sonoro peculiar no fenômeno da benzeção. As palavras são comumente ditas  às pressas, rompendo a intelecção comum, mas tudo acontece num movimento natural, sem erro, com o pensamento firmado, para garantir e resguardar a força da oração.

            A prática da benzeção rompe a lógica do mercado, garantindo uma gratuidade difícil de encontrar no ritmo cotidiano. Talvez seja o toque singular da experiência: “dar de graça o que de graça se recebeu”. E há uma consciência viva de que Deus é o portador da cura. A benzedeira ou o benzedor são simplesmente seus intermediários. É de Deus que recebem o dom, e sua palavra é sempre “emprestada”. No caso brasileiro, percebe-se a presença viva do elemento feminino. São muitas mulheres conjugando o verbo da benzeção, demarcando um espaço garantido e especial, de presença e força numa sociedade ainda machista e excludente.

            Essa preciosa obra de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira, Assim se benze em Minas Gerais, constitui porta essencial de entrada no mundo fascinante da benzeção. Agora na sua terceira edição, a obra é fruto de uma ampla pesquisa envolvendo 198 localidades da região mineira. Um trabalho incansável, realizado por pesquisadores que escapam ao enquadramento  exclusivamente acadêmico. Trazem consigo uma empatia singular com o mundo popular e suas tradições de cultura e fé. É o grande diferencial dessa obra, cuja difusão ganha hoje particular importância, num tempo onde o saber religioso popular se fragiliza em razão do enfraquecimento de sua cadeia de transmissão. Torne-se mais do que essencial acordar essa linda memória.



            

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