Na força da devoção
“Muita religião,
seu moço!”
Faustino Teixeira
Um traço característico da sociedade brasileira, apontado
por muitos estudiosos, é a relação com o outro mundo. É algo que faz parte da
dinâmica e da trajetória de boa parte da população. Uma familiaridade singular
com os espíritos, entidades, almas, guias, orixás, que circulam e se comunicam
com naturalidade. Como mostrou Gilberto Velho, ao falar dos sistemas de crença
na cultura brasileira, é plausível indicar que cerca da metade da população no
país participa de alguma forma de sistemas religiosos ou práticas que envolvem
a crença nos espíritos e sua manifestação periódica. Esse é o Brasil, das
“altas rezas”, das muitas e diversificadas expressões de fé, adornadas com o
toque da pluralidade e da interconexão.
É nesse campo encantado que se encaixam as benzedeiras e
benzedores, tecendo as malhas das relações com o outro mundo. São pessoas muito
especiais, portadoras de um poder singular, nomizador, que ajudam com suas
preces e presença a manter o fundamental equilíbrio das pessoas com o seu
ambiente. Tudo se dá através de uma linguagem que cura, de uma palavra que
aciona e dinamiza as forças de harmonia e pacificação. É através da benzeção
que se garante o funcionamento da normalidade almejada. A palavra guarda também
um mistério, e ela se espraia muitas vezes de forma incompreensível, revelando
um poder oculto capaz de reorganizar o mundo e conferir sentido. O segredo
essencial está na confiança depositada na palavra, e sem ela fica bem difícil a
realização do intento.
Esses agentes da palavra são portadores de um poder, são
lideranças reconhecidas pela comunidade. Não é tarefa facultada a todos, mas
àqueles que recebem um dom especial, que retomam a cadeia de uma memória comunitária,
onde cada palavra tem um lugar definido no “mapa do sagrado”. Na base do ofício
há um aprendizado, onde cada agente sabe situar com precisão os espaços que
interligam os sujeitos com os espíritos, santos, anjos, almas e entidades. Tudo
vem aprendido “no melhor recanto da memória”, sendo aplicado nos momentos de
precisão. Há também um traço sonoro peculiar no fenômeno da benzeção. As
palavras são comumente ditas às pressas,
rompendo a intelecção comum, mas tudo acontece num movimento natural, sem erro,
com o pensamento firmado, para garantir e resguardar a força da oração.
A prática da benzeção rompe a lógica do mercado,
garantindo uma gratuidade difícil de encontrar no ritmo cotidiano. Talvez seja
o toque singular da experiência: “dar de graça o que de graça se recebeu”. E há
uma consciência viva de que Deus é o portador da cura. A benzedeira ou o
benzedor são simplesmente seus intermediários. É de Deus que recebem o dom, e
sua palavra é sempre “emprestada”. No caso brasileiro, percebe-se a presença
viva do elemento feminino. São muitas mulheres conjugando o verbo da benzeção,
demarcando um espaço garantido e especial, de presença e força numa sociedade
ainda machista e excludente.
Essa preciosa obra de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e
Edimilson de Almeida Pereira, Assim se
benze em Minas Gerais, constitui porta essencial de entrada no mundo
fascinante da benzeção. Agora na sua terceira edição, a obra é fruto de uma
ampla pesquisa envolvendo 198 localidades da região mineira. Um trabalho
incansável, realizado por pesquisadores que escapam ao enquadramento exclusivamente acadêmico. Trazem consigo uma
empatia singular com o mundo popular e suas tradições de cultura e fé. É o grande
diferencial dessa obra, cuja difusão ganha hoje particular importância, num
tempo onde o saber religioso popular se fragiliza em razão do enfraquecimento
de sua cadeia de transmissão. Torne-se mais do que essencial acordar essa linda
memória.
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