quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A linguagem do silêncio

A linguagem do silêncio

Faustino Teixeira


O que estar em silêncio significa para a mística ?

O silêncio é a essencial gramática dos místicos. Ele é fundamental, pois revela a linguagem do Mistério Maior, sem nome. Tudo mais, como diz Rûmî (1207-1273) – grande místico sufi – é “má tradução”. Estar em silêncio é pausar o domínio cotidiano e repetitivo do ego e deixar-se habitar pela dinâmica do Outro, daquele que é enigmático, capaz de provocar mudanças substantivas na trajetória ordinária. Estar em silêncio é também despojar-se para abrir o campo da atenção, poder “estar presente” e captar com alegria o canto das coisas. Um dos grandes místicos cristãos, Thomas Merton (1915-1968), que viveu um período de sua vida como eremita, dizia que do coração da “quentura” do silêncio podia captar um segredo singular, que estava na raiz de todos os amores. Estar em silêncio, em síntese, é poder organizar o mundo interior, ajustar a vida para um tempo que é distinto, solene, diverso daquele que pauta a correria do cotidiano: um tempo nobre, capaz de revelar horizontes dinâmicos do enriquecimento do ser.

Quais são as religiões que priorizam o silêncio ?

Difícil falar em religiões que priorizam o silêncio, pois assim corremos o risco de descartar específicas experiências religiosas. Mas identifico algumas tradições onde o silêncio fala forte, como no caso da via budista. Muito curioso o caminho seguido por esta tradição, nas suas diversas ramificações. Há uma particular atenção e cuidado em “preservar a condição misteriosa do último”. Tomando o exemplo do Zen Budismo, verificamos uma sadia resistência contra as representações movediças. Há uma preocupação constante  de rejeitar qualquer encarceramento na aparência. É preciso renunciar às figuras para acessar o despertar. A prática contínua do Zazen, meditação sentada, é o caminho silencioso escolhido para galgar o ritmo do despojamento e da iluminação. Na tradição judaica, o silêncio também ocupa um lugar de destaque, de reverência ao Mistério Maior, inominado, que só pode ser aludido mediante a oração e o canto. Temos nos Salmos exemplos bonitos desta reverência: “É um saber maravilhoso, e me ultrapassa, é alto demais: não posso atingí-lo” (Sl 139,6). Há também no cristianismo exemplos singelos de atenção ao silêncio, sobretudo nos místicos. É o caso de João da Cruz (1542-1591). Ele falava na “música calada”, no “conhecimento sossegado”. Em momento solene de seu Cântico Espiritual, relata a entrada da alma na “interior adega” onde habita o Amado. O deleite que acompanha a experiência é único: “Do Amado meu bebi”. E ao sair, como resultado do encontro jubiloso, todo o conhecimento desvanece e apenas vibra o silêncio e o convite gratuito ao amor. Bem na linha do que está presente no Cântico dos Cânticos: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor” (Ct 2,4). Na verdade, “quanto mais alto se ousa” – diz João da Cruz – tanto menos se entende. Quanto mais se olha para cima, mais “os discursos se contraem” face à luminosidade do Mistério. Daí ser comum ao pensamento dos místicos a consciência da insuficiência da linguagem e o recurso a um modo peculiar de expressão, marcado pelas alusões, pelos paradoxos e pelos oxímoros. Na tradição islâmica temos os místicos sufis, que reiteradamente falam do silêncio como horizonte referencial. Não há como viver o enlace do amor, diz Rûmî, senão superando o ritmo das “palavras vãs”. O poema, em verdade, só se completa quando deixa-se habitar pelo silêncio, que traz consigo a presença do Amado.

Para as religiões citadas acima, qual é o significado do silêncio para cada uma delas?

O silêncio é sempre uma barreira protetora contra a arrogância humana de pretender abarcar o Mistério ou a Verdade. O místico é alguém possuído pelo “desaforado amor pelo Todo”. Sua sede é insaciável, movida por um desejo infinito de “atravessar os umbrais da vida”, mas sempre vinculado ao tempo e seus desafios. Mas tem também viva a consciência de que não consegue avançar para além de um limiar, protegido por reserva inalcançável. Os místicos muçulmanos dizem que nem mesmo Muhammad (Maomé) em sua famosa ascensão noturna à inacessível cidade santa, conseguiu penetrar no amor de Deus, permanecendo no seu limiar. A ninguém é permitido, assinala o estudioso Louis Massignon, “ultrapassar o limiar onde Muhammad se fixou, nem penetrar na ´luz santa` (incêndio divino) anteriormente prometida a Abraão como herança: ela está interditada por um vidro, contra o qual as mariposas amorosas vêm se queimar”.

Quem são os principais nomes da história das religiões que ficaram conhecidos pelo silêncio que fizeram em determinado momento, e qual foi esse momento para cada um deles ?

Posso simplesmente apontar dois nomes que me surgem neste momento, e que me impressionaram por sua fragrância espiritual, regada continuamente pelo aroma do silêncio: um da tradição hindu e outro do cristianismo. Cito em primeiro lugar o grande guru Râmana Maharshi (1879-1950), também conhecido como Bhagavan. Vem largamente reconhecido com um dos grandes mestres espirituais indianos dos tempos modernos, portador dos segredos do Advaita Vedanta, ou seja, da intuição upanixade da não-dualidade. Na linha dos grande gurus indianos, tinha a consciência desperta para o circuito do Real, e a percepção de que todos os nomes precisam ser ultrapassados, num desafio de mergulho no silêncio e na escuridão. Seu aprendizado foi gestado na montanha sagrada de Arunachala (aruna = aurora; achala = imóvel). O grande ensinamento desse mestre, não estava referenciado a livros ou palavras. Tudo isso era secundário. O segredo estava na potencialidade de uma comunicação espiritual firmada no seu modo de ser, no canto de seu olhar, na força de sua presença. Assim transmitia o vigor da sua experiência. Tudo regado por sua trajetória de reserva e silêncio. Cito também, da parte cristã, o místico trapista Thomas Merton (1915-1968). Foi um grande amante da solidão e do silêncio. Dizia que na solidão “permanecemos diante da realidade crua das coisas”. Dizia ainda que “o silêncio nos ensina a conhecer a realidade respeitando-a lá onde as palavras a profanaram”. Não há máscaras na vida silenciosa: o sujeito está diante de si, na integralidade de sua realidade, sem disfarces. Por isso é tão difícil para muitos. Merton, ao contrário, avançou arriscadamente nesse trajeto, e pôde perceber que quanto mais aprofundava sua vida interior, regada pelo silêncio, mais percebia o elo de ligação entre todas as coisas. O silêncio, na verdade, não o retirava do real, mas favorecia o adentramento em suas entranhas. É o silêncio que abria para ele as portas da “grande percepção do Real”, como quando deparou-se com duas grandes imagens de Buda em Polonnaruwa (Ceilão). Ali naquele lugar, regado pelo “silêncio dos extraordinários rostos”, foi invadido por uma impressionante torrente de paz e serenidade. E assinala no seu diário: “De repente, enquanto olhava essas figuras, fui completa e quase violentamente arrancado da maneira habitual e restrita de ver as coisas. E uma clareza interior, patente, como que explodindo das próprias pedras, tornou-se evidente e óbvia”. Foi uma experiência única e novidadeira, quando então conseguiu penetrar através da superfície e ultrapassar a sombra e a aparência.

(Entrevista para a UOL – setembro de 2016)


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