A linguagem do silêncio
Faustino Teixeira
O
que estar em silêncio significa para a mística ?
O silêncio é a essencial gramática dos místicos. Ele é
fundamental, pois revela a linguagem do Mistério Maior, sem nome. Tudo mais,
como diz Rûmî (1207-1273) – grande místico sufi – é “má tradução”. Estar em
silêncio é pausar o domínio cotidiano e repetitivo do ego e deixar-se habitar
pela dinâmica do Outro, daquele que é enigmático, capaz de provocar mudanças
substantivas na trajetória ordinária. Estar em silêncio é também despojar-se
para abrir o campo da atenção, poder “estar presente” e captar com alegria o
canto das coisas. Um dos grandes místicos cristãos, Thomas Merton (1915-1968),
que viveu um período de sua vida como eremita, dizia que do coração da “quentura”
do silêncio podia captar um segredo singular, que estava na raiz de todos os
amores. Estar em silêncio, em síntese, é poder organizar o mundo interior,
ajustar a vida para um tempo que é distinto, solene, diverso daquele que pauta
a correria do cotidiano: um tempo nobre, capaz de revelar horizontes dinâmicos
do enriquecimento do ser.
Quais
são as religiões que priorizam o silêncio ?
Difícil
falar em religiões que priorizam o silêncio, pois assim corremos o risco de
descartar específicas experiências religiosas. Mas identifico algumas tradições
onde o silêncio fala forte, como no caso da via budista. Muito curioso o
caminho seguido por esta tradição, nas suas diversas ramificações. Há uma
particular atenção e cuidado em “preservar a condição misteriosa do último”.
Tomando o exemplo do Zen Budismo, verificamos uma sadia resistência contra as
representações movediças. Há uma preocupação constante de rejeitar qualquer encarceramento na
aparência. É preciso renunciar às figuras para acessar o despertar. A prática
contínua do Zazen, meditação sentada, é o caminho silencioso escolhido para
galgar o ritmo do despojamento e da iluminação. Na tradição judaica, o silêncio
também ocupa um lugar de destaque, de reverência ao Mistério Maior, inominado,
que só pode ser aludido mediante a oração e o canto. Temos nos Salmos exemplos
bonitos desta reverência: “É um saber maravilhoso, e me ultrapassa, é alto
demais: não posso atingí-lo” (Sl 139,6). Há também no cristianismo exemplos
singelos de atenção ao silêncio, sobretudo nos místicos. É o caso de João da
Cruz (1542-1591). Ele falava na “música calada”, no “conhecimento sossegado”.
Em momento solene de seu Cântico Espiritual, relata a entrada da alma na
“interior adega” onde habita o Amado. O deleite que acompanha a experiência é
único: “Do Amado meu bebi”. E ao sair, como resultado do encontro jubiloso,
todo o conhecimento desvanece e apenas vibra o silêncio e o convite gratuito ao
amor. Bem na linha do que está presente no Cântico dos Cânticos: “Levou-me ele
à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor” (Ct 2,4). Na verdade,
“quanto mais alto se ousa” – diz João da Cruz – tanto menos se entende. Quanto
mais se olha para cima, mais “os discursos se contraem” face à luminosidade do
Mistério. Daí ser comum ao pensamento dos místicos a consciência da
insuficiência da linguagem e o recurso a um modo peculiar de expressão, marcado
pelas alusões, pelos paradoxos e pelos oxímoros. Na tradição islâmica temos os
místicos sufis, que reiteradamente falam do silêncio como horizonte
referencial. Não há como viver o enlace do amor, diz Rûmî, senão superando o
ritmo das “palavras vãs”. O poema, em verdade, só se completa quando deixa-se
habitar pelo silêncio, que traz consigo a presença do Amado.
Para
as religiões citadas acima, qual é o significado do silêncio para cada uma
delas?
O
silêncio é sempre uma barreira protetora contra a arrogância humana de
pretender abarcar o Mistério ou a Verdade. O místico é alguém possuído pelo
“desaforado amor pelo Todo”. Sua sede é insaciável, movida por um desejo
infinito de “atravessar os umbrais da vida”, mas sempre vinculado ao tempo e
seus desafios. Mas tem também viva a consciência de que não consegue avançar
para além de um limiar, protegido por reserva inalcançável. Os místicos muçulmanos
dizem que nem mesmo Muhammad (Maomé) em sua famosa ascensão noturna à
inacessível cidade santa, conseguiu penetrar no amor de Deus, permanecendo no
seu limiar. A ninguém é permitido, assinala o estudioso Louis Massignon,
“ultrapassar o limiar onde Muhammad se fixou, nem penetrar na ´luz santa`
(incêndio divino) anteriormente prometida a Abraão como herança: ela está
interditada por um vidro, contra o qual as mariposas amorosas vêm se queimar”.
Quem
são os principais nomes da história das religiões que ficaram conhecidos pelo
silêncio que fizeram em determinado momento, e qual foi esse momento para cada
um deles ?
Posso
simplesmente apontar dois nomes que me surgem neste momento, e que me
impressionaram por sua fragrância espiritual, regada continuamente pelo aroma
do silêncio: um da tradição hindu e outro do cristianismo. Cito em primeiro
lugar o grande guru Râmana Maharshi (1879-1950), também conhecido como
Bhagavan. Vem largamente reconhecido com um dos grandes mestres espirituais
indianos dos tempos modernos, portador dos segredos do Advaita Vedanta, ou
seja, da intuição upanixade da não-dualidade. Na linha dos grande gurus
indianos, tinha a consciência desperta para o circuito do Real, e a percepção
de que todos os nomes precisam ser ultrapassados, num desafio de mergulho no
silêncio e na escuridão. Seu aprendizado foi gestado na montanha sagrada de
Arunachala (aruna = aurora; achala = imóvel). O grande ensinamento desse
mestre, não estava referenciado a livros ou palavras. Tudo isso era secundário.
O segredo estava na potencialidade de uma comunicação espiritual firmada no seu
modo de ser, no canto de seu olhar, na força de sua presença. Assim transmitia
o vigor da sua experiência. Tudo regado por sua trajetória de reserva e
silêncio. Cito também, da parte cristã, o místico trapista Thomas Merton
(1915-1968). Foi um grande amante da solidão e do silêncio. Dizia que na
solidão “permanecemos diante da realidade crua das coisas”. Dizia ainda que “o
silêncio nos ensina a conhecer a realidade respeitando-a lá onde as palavras a
profanaram”. Não há máscaras na vida silenciosa: o sujeito está diante de si,
na integralidade de sua realidade, sem disfarces. Por isso é tão difícil para
muitos. Merton, ao contrário, avançou arriscadamente nesse trajeto, e pôde perceber
que quanto mais aprofundava sua vida interior, regada pelo silêncio, mais
percebia o elo de ligação entre todas as coisas. O silêncio, na verdade, não o
retirava do real, mas favorecia o adentramento em suas entranhas. É o silêncio
que abria para ele as portas da “grande percepção do Real”, como quando
deparou-se com duas grandes imagens de Buda em Polonnaruwa (Ceilão). Ali
naquele lugar, regado pelo “silêncio dos extraordinários rostos”, foi invadido
por uma impressionante torrente de paz e serenidade. E assinala no seu diário:
“De repente, enquanto olhava essas figuras, fui completa e quase violentamente
arrancado da maneira habitual e restrita de ver as coisas. E uma clareza
interior, patente, como que explodindo das próprias pedras, tornou-se evidente
e óbvia”. Foi uma experiência única e novidadeira, quando então conseguiu
penetrar através da superfície e ultrapassar a sombra e a aparência.
(Entrevista
para a UOL – setembro de 2016)
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