Mística e Literatura: Apresentação
Faustino Teixeira
Os tradicionais encontros de mística no Seminário da
Floresta, iniciados naquele enigmático junho de 2011, foram ganhando uma
densidade de mistério ao longo dos anos, com edições cada vez mais profundas e
participadas. Sempre aquele núcleo restrito de pesquisadores e amigos, num
clima de muito respeito e abertura. Isto talvez tenha dado o toque de
singularidade desses encontros tão substantivos e que inauguraram uma atenção
especial do mundo acadêmico brasileiro para o tema da mística. Nos últimos
eventos, a abertura temática foi ganhando cidadania, envolvendo questões
preciosas como a literatura e o cinema, mas literatura entendida num sentido
lato, compondo campos de beleza impar.
Temas complexos e dolorosos estavam na pauta da reflexão, e
também uma atenção atenta ao presente, com seus encantos e suas dores, com suas
entradas e partidas. A mística, o cinema, a literatura nos fazem acordar para
essa dinâmica da impermanência que marca o humano. Como assinala com
pertinência Rilke, numa de suas Elegias de Duíno, “o que é nosso flutua e
desaparece”[1].
Sem dúvida – ele assinala: “olhai, as árvores são; as casas que habitamos,
resistem. Somente nós passamos, permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou quem sabe que indizível esperança”[2]. O
que o humano busca com insistência e teimosia é a “duração pura”, a sede
implacável de captar “o Aberto”, mas o olhar – contaminado pelo ares do tempo –
se vê revertido, incapaz de alçar tamanho voo. O espaço verdadeiramente livre,
captado pelo “animal espontâneo” se perde entre outras aventuras. E com isso
“ignoramos o que é contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde, sem
cessar, as flores desabrocham”[3]. A
grande poeta brasileira, Dora Ferreira da Silva, ao comentar a oitava elegia,
sublinha que as crianças e os moribundos “participam às vezes desse inefável”;
também os amantes, “sentem por momentos ´a obscura presença e se espantam`”[4].
Envolvidos por suas carícias, “sutilmente protegem, retêm a duração pura”, mas
se recolhem, temendo os sussurros do inaudito. Preferem permanecer alheios “no
turbilhão da volta a si mesmos”.
A mística, a literatura e a poesia em especial, sabem
também celebrar a afirmação da vida e entoar “o canto imortal de Zaratustra”. A
dor está aí, com sua inquietante fluidez, mas “a alegria é ainda mais
profunda”. Tudo se alinha para nos fazer acordar a consciência de que “estar
aqui é esplendor”. E surpresos somos convidados a celebrar a melodia das
coisas: as manhãs de estio, o fulgor das auroras, os dias ternos junto às
flores, a luz dos campos nas tardes inesquecíveis, “as grandes noites de verão, e as estrelas, as
estrelas da terra!”. Todos somos convocados a ouvir: “Uma simples coisa aqui
percebida, valerá o infinito” (Rilke). Tanto a mística como a literatura são
portas de entrada para essa alegria: de “nos perdermos no cotidiano para
encontrar o maravilhoso” (Octávio Paz).
Esta a razão mais forte e viva de pensar em mais um volume
de textos que recolhem os temas debatidos nos últimos seminários de mística.
Aliás, o quarto volume, que vem coroar um trabalho que transbordou uma década. O
livro compõe-se de dezesseis textos, precedidos de um prefácio de Marco
Lucchesi, que fala sobre a singularidade dos encontros realizados naquele
recanto tão especial da periferia de Juiz de Fora: seminários “inquietos” e
“fascinantes”, vividos num clima muito diverso daquele encontrado nas
tradicionais instituições acadêmicas. Daí seu traço inaugural.
Num primeiro bloco, dois textos trazem um pouco de sabedorias
aprendidas do Oriente, de uma literatura que bebe nas águas do Zen Budismo. O
ensaio de Faustino Teixeira – Passos da
realização espiritual: o boi e o pastor (1) – busca trabalhar o tema da
espiritualidade com base numa série de imagens clássicas presentes no
repertório da escola Zen florescida no Japão desde o século XII. O ensaio de
José Carlos Michelazzo – Mística e
experiência pura (2) – visa apresentar o diálogo entre a filosofia
ocidental e o Zen budismo, tendo por referência o pensamento de Kitarô Nishida,
e a noção base de sua reflexão: a experiência pura. Esse grande pensador, lume
da Escola de Kyoto, almejou um diálogo profícuo do Ocidente com o Oriente, num
caminho de síntese marcado pela comunhão entre reflexão e intuição, com o foco
na palavra “experiência”.
Num segundo bloco, três textos destacam a reflexão
filosófica em torno da mística. O ensaio de José Carlos Michelazzo – As habitações do humano como expressões do
tempo (3) – aborda os três modos de
pensar e existir com respeito ao problema do tempo: o modo antropocêntrico,
relacionado com o pensamento metafísico; o modo existencial, que já envolve um
certo acolhimento da impermanência; o modo numinoso, que traduz um “abismo”
substantivo na reflexão sobre o tema, em direção a uma experiência religiosa
radical, de ultrapassagem do antropocentrismo. O desenvolvimento temático é
realizado com o aporte das reflexões de Martin Heidegger e Dôgen, o fundador do
Soto Zen. No ensaio de Carlos Roberto Drawin – Heidegger e a confrontação com a religião (4) – ele visa trabalhar
a delicada questão da relação de Heidegger com a metafísica, evitando o
nebuloso caminho trilhada pela “vulgata ´pós-metafísica`”. No desenvolvimento
dessa questão, trata dos diversos momentos que marcaram o posicionamento de
Heidegger com respeito à questão religiosa. O ensaio de Luiz Felipe Pondé – filosofia mística mínima (5) – trata da
abordagem mística em Georges Bernanos, em particular o modo peculiar como ele
desenvolve a relação entre o corrosivo vazio da alma e a misericórdia de Deus.
Como indica Pondé, talvez um dos maiores enigmas associados às visitações
místicas “seja essa parceria entre a fraqueza absoluta e a beleza absoluta”.
Trata-se de um tema recorrente na abordagem filosófica de Pondé, a presença da
Misericórdia: “a sensação de que o mundo é sustentado pelas mãos de uma beleza
que é também uma presença que fala”.
Num terceiro bloco de ensaios, destaca-se a reflexão sobre
alguns místicos importantes da tradição ocidental. Inicialmente, o trabalho de
Luciana Ignachiti Barbosa – Tecendo
palavras (6) -, em torno da literatura em Teresa de Jesus. Como objetivo,
destacar o caminho literário percorrido por Teresa para descrever sua
experiência de amor. Um caminho que para ela sempre esteve animado por uma
“experiência” colhida diretamente na presença do Mistério. No ensaio de
Sibélius Cefas Pereira – Descansar no
inexprimível – (7), ele visa apresentar a articulação entre poesia e
contemplação na obra de Thomas Merton. Já dizia William Blake, que fomos
“colocados na terra por um pequeno espaço de tempo para podermos aprender a
suportar os raios do amor”. Para Thomas Merton, a contemplação jamais vem
percebida como uma área separada da vida, ou deslocada da visada estética. Em
verdade, a contemplação é o traço de integração da vida, animado por viva inspiração poética. Em proximidade com a
visada poética, o olhar contemplativo é capaz de penetrar “para além da
superfície das coisas e dos acontecimentos, a fim de apreender algo do sentido
interior ´sagrado` do cosmos”[5],
de sua realidade espiritual. Ainda sobre Thomas Merton, o ensaio de Marcelo
Timotheo da Costa – Sublimes experiências
(meta) históricas (8), com o relato de duas viagens realizadas por Merton
em Roma e Cuba, nas décadas de 1930 e 1940. São experiências de forte densidade
mística, descritas na clássica obra A
montanha dos sete patamares, de 1948, associadas “a desígnios intangíveis
providenciais”. Em linha de grande sintonia com Merton, a presença de uma
mística bem singular, Etty Hillesum, que morreu em plena juventude no campo de
Auschwitz, em novembro de 1943. Sua vida foi um ininterrupto colóquio com Deus,
e em circunstâncias que foram sendo pontuadas por sombras cada vez mais densas.
Em razão de profundas reservas espirituais interiores, soube manter sempre
acesa a chama de Deus. Dizia em página de seu diário: “Haverá sempre um pedaço
de céu para poder olhar, e muito espaço dentro de mim para unir as mãos em
oração”[6].
Essa jornada espiritual de Etty Hillesum vem destacada por Mariana Ianelle em
sua reflexão sobre O livro das horas de
Etty Hillesum (9), pontuando as marcas de Rilke e as ressonâncias
inter-religiosas em sua espiritualidade
Em outro bloco de reflexões, as
abordagens focam-se agora na literatura brasileira. Primeiramente, o ensaio de
Cleide Maria de Oliveira – Incorpóreo é o
desejo (10), visa trabalhar o erotismo místico de Hilda Hilst. A autora
apresenta com maestria o “apelo erótico-amoroso” da poeta brasileira, e o
caminho por ela traçado para responder a equação Deus-Mundo. Na sequência, o
ensaio de Maria Clara Luccheti Bingemer – Iniciação
e paixão (11) -, onde busca tratar a tensão dialética entre Eros e Agape em
dois romances de Clarice Lispector: Paixão
segundo GH e Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres. No ensaio de Alex Villas Boas – Com licença poética (12) -, o objetivo é descrever a recepção
estética da obra de Drummond na poética de Adélia Prado.
Em bloco final de ensaios, outros
temas emergem como significativos, como no caso da abordagem de Rodrigo Petronio,
que busca apresentar a questão do Niilismo
e transcendência no cinema oriental (13). Trata-se para ele de uma
“corrente subterrânea” que envolve a cinematografia oriental. Os cineastas
japoneses, chineses, coreanos e sul-asiáticos partem, assim, do niilismo –
entendido como marco do processo modernizador – e através dele conseguem
“atingir a outra margem e tocar a outra face do nada: a transcendência”. Um
exemplo vivo disso, apresentado por Rodrigo, está no filme A partida, de Yojiro Takita, premiado no Oscar de 2009. No ensaio
seguinte – Leituras da morte e da beleza
(14) -, Marcus Reis Pinheiro busca responder ao desafio de pensar uma linguagem
distinta para tratar o misterioso e angustiante jogo de Eros e Thánatos. O tema vem trabalhado com o aporte de obras de
Philip Roth e Platão (O animal agonizante
e Fedon). O ensaio de Eduardo Guerreiro B. Losso – Prática espiritual na poesia: origens da
modernidade (15) -, visa trazer para o leitor o valor do legado ascético
para a literatura, entendido como singularidade de uma “práxis vital”,
fornecendo um aporte importante a uma estética da existência contemporânea.
Como indicou Eduardo Losso, a prática da contemplação ganha uma singularidade
especial, pois “mobiliza uma atividade extremamente ativa da percepção, precisamente
dando atenção ao movimento da atividade perceptiva, em estado de silêncio
(...). O objeto se torna motivo de um trabalho de si”. A contemplação fornece, assim, um
significativo contraponto para a “constância avassaladora da distração
generalizada por meio de estímulos audiovisuais” presente no tempo atual. Por
fim, o breve ensaio de Faustino Teixeira – Luzes do Sinai no Subsolo (16) -,
busca apresentar algo sobre a presença mística na reflexão de Luiz Felipe
Pondé. De forma mais precisa, o jogo que articula o seu “ceticismo
antropológico” com as imprevistas visitas da Misericórdia divina.
A variedade de recortes temáticos
que envolvem esse livro é a expressão viva da riqueza plural dos diversos
seminários de mística de Juiz de Fora, que ao longo de mais de uma década
reuniu pesquisadores e estudantes de mística de várias partes do Brasil,
provenientes de diferentes áreas acadêmicas, fornecendo um “toque” singular e
novidadeiro aos estudos de mística realizados no mundo acadêmico brasileiro. E
que essa obra, na sequências das outras publicadas nessa mesma editora, seja um
estímulo a mais para a continuidade das reflexões e pesquisas sobre o tema em nosso país.
(Faustino
Teixeira (Org). Mística e Literatura.
São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015)
[1] Rainer Maria RILKE. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 21 (Segunda
Elegia).
[2] Ibidem, p. 21-22.
[3] Ibidem, p. 67 (Oitava Elegia).
[4] Ibidem, p. 116.
[5]
Thomas MERTON. Poesia e contemplação.
Rio de Janeiro: Agir, 1972, p. 196.
[6]
Etty HILLESUM. Diario. Edizione
integrale. Milano: Adelphi, 2012, p.
718.
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