Nos caminhos da não
dualidade
Faustino Teixeira
É motivo de grande alegria poder apresentar esta obra de
Clodomir Barros de Andrade sobre o budismo e a filosofia indiana antiga. Somos
companheiros de trabalho no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, e pude ter o privilégio de participar de
sua banca de doutorado, que está na origem do presente trabalho. Há que
registrar o dado inaugural e promissor dos estudos sobre a Índia, sua cultura,
filosofias e religiões no campo acadêmico brasileiro. Um novo âmbito de
reflexão que vem quebrar o empobrecedor desinteresse acadêmico que moveu a
Universidade Brasileira nessa área de estudos até recentemente. O livro de
Clodomir insere-se, assim, no rico trabalho que vem sendo desenvolvido em
núcleos de pesquisa nacionais envolvendo o tema das Religiões e Filosofias da
Índia.
O trabalho aqui apresentado é fruto de mais de três décadas
de reflexão do autor sobre o tema, trazendo uma contribuição rica e inovadora.
O objetivo é bem claro: apresentar para o leitor duas pedagogias soteriológicas
que nasceram em ambiente comum e que expressam duas das mais importantes e
influentes tradições sapienciais presentes em nosso tempo. São tradições
marcadamente dialogais e não dualistas, que trazem, sem dúvida alguma, novas e
relevantes inspirações para o trabalho acadêmico brasileiro.
A marca da não-dualidade está vivamente presente nos
projetos soteriológicos e terapêuticos indianos, em particular nos ambientes
marcados pela presença upanixádica e budista. A soteriologia vem aqui entendida
sobretudo como um método, ou seja, como um conjunto de expedientes que objetivam “criar as condições de
possibilidade para a realização de uma unicidade ontológica fundamental que,
numa linguagem ocidental, poder-se-ia designar por uma experiência mística.”[1] O
que Clodomir busca evidenciar na sua reflexão é esse traço singular da
filosofia na Índia, sempre marcada pela dinâmica espiritual. Serve-se do apoio
de autores como Pierre Hadot, para o qual a filosofia apresenta-se como um modo
de vida e uma arte de viver. Para este autor, muitas das religiões
tradicionais, como o budismo ou o taoísmo, indicam para os seus adeptos “um
modo de vida filosófico que comporta exercícios espirituais.”[2]
Na clássica obra de Clemente de Alexandria, Stromata, ele assinala que a filosofia
floresceu entre os “bárbaros” e gentios. Dentre os iniciadores, menciona os gymnosophistas (ascetas e religiosos
indianos) e os seguidores da doutrina de Buda.[3] Em
comentário a essa reflexão, o estudioso francês, Michel Fédou, assinala que a
compreensão de filosofia para o alexandrino não se resumia a “sistemas de
pensamento”, mas envolvia igualmente doutrinas que poderíamos hoje qualificar
de religiosas.[4]
Como indica Clodomir, o modo de se conceber a racionalidade
na Índia é distinta do que ocorre no Ocidente. É algo que está a serviço de um
bem superior. A reflexão sistemática está subordinada à soteriologia, ou seja,
ao “esforço constante de uma transformação e aprimoramento humano através de um
encaminhamento que objetivava ressaltar os aspectos práticos em detrimento dos
puramente teóricos e especulativos (...).[5] No
caso das soteriologias escolhidas, a upanixádica e a budista, o caminho de
afirmação da não dualidade. No âmbito indiano, razão e espiritualidade nunca se
digladiaram. O que no Ocidente vem identificado como caminho místico, de busca
da unicidade, na Índia refere-se ao horizonte de uma específica metodologia
soteriológica.
O livro busca apresentar os dois modelos
não dualistas, o da imanência de brahman
(a não dualidade do um) e o da vacuidade, interdependência e insubstancialidade
(a não dualidade do zero). De forma bem didática, o desenvolvimento da reflexão
envolve três momentos. Na primeira parte, com um único capítulo, busca-se
apresentar o caminho védico original e a tradição soteriológica dos Upanixades,
bem como o ensinamento do budismo primitivo. Na segunda parte, busca-se
delinear os traços da não dualidade na tradição vedântica, bem como o caminho
soteriológico presente nos Upanixades, com destaque para a modalidade dialógica
presente na relação discipular. Na terceira parte, visa-se apreender o passo da
não dualidade nos sutra que animam e informam a tradição budista, e também a
terapia soteriológica budista expressa no caminho óctuplo.
Como ponto de
destaque na reflexão de Clodomir, a sua apresentação da noção essencial de
originação interdependente (pratityasamutpada),
um conceito nuclear em torno ao qual gravitam os demais conceitos do budismo. Esse
tema vem proposto na primeira parte do livro, quando se aborda o budismo
primitivo, ganhando desenvolvimento na terceira parte, no capítulo quarto, com o
tema da não dualidade nos sutra (advaya).
Como aponta o autor, citando uma passagem do principal companheiro de Buda,
Ananda: “Aquele que vê a originação interdependente (pratityasamutpada) vê o dharma.”[6] Este precioso conceito,
que expressa o cerne da experiência budista, firma-se como “um poderoso
instrumento de análise ontológica, epistemologica e praxis soteriológica”. Quer
sublinhar a inserção de todas as coisas numa teia causal. Tudo o que existe
está interligado. E esta percepção de uma interdependência exerce um importante
influxo operativo, como também mostrou Clodomir em seu trabalho: “A
interdependência procura sensibilizar os seres humanos para a necessidade do
cultivo de laços de uma solidariedade simbiótica e global com todas as
criaturas.”[7]
Há um nexo profundo que vincula a originação interdependente com o ideal do
altruismo e da compaixão (karuna).
O trabalho de
Clodomir nos ajuda a compreender que o caminho soteriológico destas duas
tradições, a vedântica e budista, não são assim tão distintas, mas expressam
uma fina sintonia no âmbito da busca da não dualidade. Como expressa o autor:
“Parece ser o caso de que uma tradição nos aponta, para além da linguagem, o um
das coisas, brahman e, como caminho,
o atman; a outra, o precário
equilíbrio do balé interdependente e insubstancial das coisas, este ´zero` das
coisas, um concerto, e não o nada, para além das concepções tanto
substancialistas quanto niilistas (…).”[8] As duas tradições apontam,
num limiar que avança para além da linguagem, a algo que poderíamos identificar
como experiência mística. Um caminho soteriológico que transforma
substancialmente o olhar, indicando a possibilidade de ver o mundo por um
prisma novo, do moksa para, com a mirada
do nirvana (paramartha).
Sem dúvida, estamos
diante de um trabalho pioneiro, que vem impulsionar o campo da reflexão em
curso nas ciências da religião no Brasil, nos núcleos de estudos que frutificam
e nos grupos temáticos que enriquecem os encontros que se realizam hoje nessa
área. Trata-se de um trabalho essencial para a academia brasileira, que abre
uma perspectiva nova, de um olhar que se volta com atenção e competência para
as Índias, trazendo novas inspirações e inusitados aprendizados.
(Publicado em: Clodomir Andrade. Budismo
e a filosofia indiana antiga. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte
Editorial/PPCIR, 2015, p. 15-17)
[1] Veja p. 21.
[2] Pierre Hadot. La
filosofia como modo di vivere. Torino: Einaudi, 2008, p. 52.
[3] Clemente Alessandrino. Gli Stromati. Note di vera filosofia. Milano: Paoline, 1985, p.
134-135 (Stromati I, 15,71).
[4] Michel Fédou. Les
religions selon la foi crhétienne. Paris: Cerf, 1996, p. 39.
[5] Veja p. 15.
[6] Veja p. 147.
[7] Veja p. 155.
[8] Veja p. 216.
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