terça-feira, 3 de novembro de 2015

Nos caminhos da não dualidade

Nos caminhos da não dualidade


Faustino Teixeira


É motivo de grande alegria poder apresentar esta obra de Clodomir Barros de Andrade sobre o budismo e a filosofia indiana antiga. Somos companheiros de trabalho no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, e pude ter o privilégio de participar de sua banca de doutorado, que está na origem do presente trabalho. Há que registrar o dado inaugural e promissor dos estudos sobre a Índia, sua cultura, filosofias e religiões no campo acadêmico brasileiro. Um novo âmbito de reflexão que vem quebrar o empobrecedor desinteresse acadêmico que moveu a Universidade Brasileira nessa área de estudos até recentemente. O livro de Clodomir insere-se, assim, no rico trabalho que vem sendo desenvolvido em núcleos de pesquisa nacionais envolvendo o tema das Religiões e Filosofias da Índia.

O trabalho aqui apresentado é fruto de mais de três décadas de reflexão do autor sobre o tema, trazendo uma contribuição rica e inovadora. O objetivo é bem claro: apresentar para o leitor duas pedagogias soteriológicas que nasceram em ambiente comum e que expressam duas das mais importantes e influentes tradições sapienciais presentes em nosso tempo. São tradições marcadamente dialogais e não dualistas, que trazem, sem dúvida alguma, novas e relevantes inspirações para o trabalho acadêmico brasileiro.

A marca da não-dualidade está vivamente presente nos projetos soteriológicos e terapêuticos indianos, em particular nos ambientes marcados pela presença upanixádica e budista. A soteriologia vem aqui entendida sobretudo como um método, ou seja, como um conjunto de expedientes  que objetivam “criar as condições de possibilidade para a realização de uma unicidade ontológica fundamental que, numa linguagem ocidental, poder-se-ia designar por uma experiência mística.”[1] O que Clodomir busca evidenciar na sua reflexão é esse traço singular da filosofia na Índia, sempre marcada pela dinâmica espiritual. Serve-se do apoio de autores como Pierre Hadot, para o qual a filosofia apresenta-se como um modo de vida e uma arte de viver. Para este autor, muitas das religiões tradicionais, como o budismo ou o taoísmo, indicam para os seus adeptos “um modo de vida filosófico que comporta exercícios espirituais.”[2]

Na clássica obra de Clemente de Alexandria, Stromata, ele assinala que a filosofia floresceu entre os “bárbaros” e gentios. Dentre os iniciadores, menciona os gymnosophistas (ascetas e religiosos indianos) e os seguidores da doutrina de Buda.[3] Em comentário a essa reflexão, o estudioso francês, Michel Fédou, assinala que a compreensão de filosofia para o alexandrino não se resumia a “sistemas de pensamento”, mas envolvia igualmente doutrinas que poderíamos hoje qualificar de religiosas.[4]

Como indica Clodomir, o modo de se conceber a racionalidade na Índia é distinta do que ocorre no Ocidente. É algo que está a serviço de um bem superior. A reflexão sistemática está subordinada à soteriologia, ou seja, ao “esforço constante de uma transformação e aprimoramento humano através de um encaminhamento que objetivava ressaltar os aspectos práticos em detrimento dos puramente teóricos e especulativos (...).[5] No caso das soteriologias escolhidas, a upanixádica e a budista, o caminho de afirmação da não dualidade. No âmbito indiano, razão e espiritualidade nunca se digladiaram. O que no Ocidente vem identificado como caminho místico, de busca da unicidade, na Índia refere-se ao horizonte de uma específica metodologia soteriológica.

O livro busca apresentar os dois modelos não dualistas, o da imanência de brahman (a não dualidade do um) e o da vacuidade, interdependência e insubstancialidade (a não dualidade do zero). De forma bem didática, o desenvolvimento da reflexão envolve três momentos. Na primeira parte, com um único capítulo, busca-se apresentar o caminho védico original e a tradição soteriológica dos Upanixades, bem como o ensinamento do budismo primitivo. Na segunda parte, busca-se delinear os traços da não dualidade na tradição vedântica, bem como o caminho soteriológico presente nos Upanixades, com destaque para a modalidade dialógica presente na relação discipular. Na terceira parte, visa-se apreender o passo da não dualidade nos sutra que animam e informam a tradição budista, e também a terapia soteriológica budista expressa no caminho óctuplo.

            Como ponto de destaque na reflexão de Clodomir, a sua apresentação da noção essencial de originação interdependente (pratityasamutpada), um conceito nuclear em torno ao qual gravitam os demais conceitos do budismo. Esse tema vem proposto na primeira parte do livro, quando se aborda o budismo primitivo, ganhando desenvolvimento na terceira parte, no capítulo quarto, com o tema da não dualidade nos sutra (advaya). Como aponta o autor, citando uma passagem do principal companheiro de Buda, Ananda: “Aquele que vê a originação interdependente (pratityasamutpada) vê o dharma.[6] Este precioso conceito, que expressa o cerne da experiência budista, firma-se como “um poderoso instrumento de análise ontológica, epistemologica e praxis soteriológica”. Quer sublinhar a inserção de todas as coisas numa teia causal. Tudo o que existe está interligado. E esta percepção de uma interdependência exerce um importante influxo operativo, como também mostrou Clodomir em seu trabalho: “A interdependência procura sensibilizar os seres humanos para a necessidade do cultivo de laços de uma solidariedade simbiótica e global com todas as criaturas.”[7] Há um nexo profundo que vincula a originação interdependente com o ideal do altruismo e da compaixão (karuna).

            O trabalho de Clodomir nos ajuda a compreender que o caminho soteriológico destas duas tradições, a vedântica e budista, não são assim tão distintas, mas expressam uma fina sintonia no âmbito da busca da não dualidade. Como expressa o autor: “Parece ser o caso de que uma tradição nos aponta, para além da linguagem, o um das coisas, brahman e, como caminho, o atman; a outra, o precário equilíbrio do balé interdependente e insubstancial das coisas, este ´zero` das coisas, um concerto, e não o nada, para além das concepções tanto substancialistas quanto niilistas (…).”[8] As duas tradições apontam, num limiar que avança para além da linguagem, a algo que poderíamos identificar como experiência mística. Um caminho soteriológico que transforma substancialmente o olhar, indicando a possibilidade de ver o mundo por um prisma novo, do moksa para, com a mirada do nirvana (paramartha).

            Sem dúvida, estamos diante de um trabalho pioneiro, que vem impulsionar o campo da reflexão em curso nas ciências da religião no Brasil, nos núcleos de estudos que frutificam e nos grupos temáticos que enriquecem os encontros que se realizam hoje nessa área. Trata-se de um trabalho essencial para a academia brasileira, que abre uma perspectiva nova, de um olhar que se volta com atenção e competência para as Índias, trazendo novas inspirações e inusitados aprendizados.

(Publicado em: Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 15-17)
           
           




[1] Veja p. 21.
[2] Pierre Hadot. La filosofia como modo di vivere. Torino: Einaudi, 2008, p. 52.
[3] Clemente Alessandrino. Gli Stromati. Note di vera filosofia. Milano: Paoline, 1985, p. 134-135 (Stromati I, 15,71).
[4] Michel Fédou. Les religions selon la foi crhétienne. Paris: Cerf, 1996, p. 39.
[5] Veja p. 15.
[6] Veja p. 147.
[7] Veja p. 155.
[8] Veja p. 216.

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