segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O pluralismo religioso no coração da teologia



O pluralismo no coração da teologia

Entrevista IHU Online – 13/08/ 2012
Faustino Teixeira

Quais os passos que te levaram ao tema da teologia cristã do pluralismo religioso?

É um tema que venho estudando desde o final dos anos 1980. As primeiras reflexões começaram a acontecer quando ainda lecionava teologia na PUC-Rio. Com a vinda para Juiz de Fora e a criação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião na UFJF, em 2001, esse campo reflexivo expandiu-se e aprofundou-se. Veio então a oportunidade de desenvolver essa temática no pós-doutorado, na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sob a orientação de Jacques Dupuis, em 1997. Já tinha sido publicado o meu livro sobre Teologia das Religiões (1995) e armazenava certo amadurecimento nessa temática. A nova experiência em Roma abre novos horizontes para o trabalho, emergindo com vigor a questão do pluralismo religioso de princípio. Cheguei em Roma para o pós doutorado em momento propício. Jacques Dupuis estava lançando o seu livro Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (1997). Tive a alegria de seguir os dois primeiros cursos que ofereceu sobre o livro, um deles para seus orientandos. Foi uma experiência reveladora para mim. Brindava-nos, ao final do livro, com o desafio da acolhida do pluralismo religioso, entendido como um “fator positivo”, atestando “a generosidade superabundante com que Deus se manifestou de muitos modos à humanidade e a resposta multiforme que os seres humanos deram à auto-revelação divina nas várias culturas”. Era um desafio partilhado por muitos outros teólogos católicos, entre os quais Edward Schillebeecx, Claude Geffré, Raimon Panikkar, Michael Amaladoss e outros. Assumi o tema com muita alegria e vigor. Como fruto dessa experiência escrevi uma longa resenha do livro de Dupuis, ainda em Roma, que foi publicada em dois números da revista dos jesuítas brasileiros, Perspectiva Teológica (Ano XXX, nºs 80 e 81 de 1998). Mas já ao final de minha estadia em Roma, o processo contra Dupuis já tinha sido deslanchado, e ele não pôde dar continuidade ao seu belo trabalho. Eu, como teólogo leigo, assumi como tarefa essencial prosseguir essa reflexão no Brasil. Reagi ao processo instituído contra o meu orientador em artigo publicado na REB, em setembro de 1999 ( REB 59, fasc. 235): A teologia do pluralismo religioso em questão. Em seguida, consegui publicar o meu livro sobre esse tema em catalão (Claret, 2002) e espanhol (Abya Yala (2005). Essa segunda edição do livro já estava modificada, com o acréscimo de reflexões sobre novos teólogos, como Claude Geffré, bem como uma ampliação da análise de conjuntura eclesiástica, com a introdução de um debate sobre a Declaração Dominus Iesus (2000). O aprofundamento da temática ocorreu nos diversos cursos que dei sobre o tema, tanto na Universidade como fora, em distintas assessorias. Orientei também dissertações e teses envolvendo essa temática, sendo que uma delas foi premiada em concurso da SOTER. Em razão da contundência do tema, outros teólogos dedicados à questão sofreram nesse período notificações vaticanas, como é o caso de Roger Haight, ou advertência de episcopados, como é o caso de Andrés Torres Queiruga. Outros continuam sob investigação. Mas, curiosamente, as resistências ao tema não impediram a continuidade de sua irradiação criadora. Veio a rica coleção organizada pela Comissão Teológica Latino-Americana da ASETT, Pelos muitos caminhos de Deus, iniciada em 2003 e encerrada agora com a publicação do último volume, Por uma teologia planetária (Paulinas, 2011). Participei com artigos em quatro dos cinco volumes da coleção, nessa linda iniciativa de José Maria Vigil de “cruzar a teologia da libertação com a teologia do pluralism religioso”. É no âmbito de toda essa discussão que nasce o meu novo livro, Teologia e Pluralismo Religioso, publicado em 2012 pela editora Nhanduti, de São Bernardo do Campo. Foi uma oportunidade de retrabalhar a segunda edição de meu livro sobre a teologia das religiões, dando uma nova roupagem à reflexão e acrescentando novos elementos para o debate sobre o tema.

O que caracteriza essa sua reflexão sobre o tema ?

Talvez um dos elementos chaves que busco defender no meu novo livro é a irrevogável defesa do pluralismo religioso. Depois de apresentar o estado geral do debate sobre as perspectivas exclusivista, inclusivista e pluralista, busco apontar os caminhos como o tema vem sendo desenvolvido na Ásia e na América Latina. Ao final trato a questão da irrevogabilidade do pluralismo religioso. Não dá para continuar mantendo a idéia de que esse pluralismo é apenas um dado de fato ou contingencial. Na verdade, como tão bem mostrou o teólogo Claude Geffré, “a pluralidade dos caminhos que levam a Deus continua sendo um mistério que nos escapa”. A minha experiência atual, trabalhando com os “buscadores de diálogo”, personagens e místicos impressionantes na sua abertura e generosidade para com outras tradições religiosas, desvela riquezas incomensuráveis. Por diversas vezes ouvi de meu orientador, Jacques Dupuis, que no profundo diálogo com o outro somos capazes de “descobrir com maior profundidade” traços do mistério de Deus que escapam de nossa alçada, na perspectiva que nos inserimos. Há que se abrir ao outro para melhor alcançar o mistério que nos habita. Daí a fundamental importância do cuidado, da simpatia, delicadeza e atenção ao outro. Como sinaliza Simone Weil, em carta escrita ao um grande amigo, em 1942, “a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade”. Admito que o mistério do outro não é só maravilha, mas também agonia, pois traduz a convocação de vivenciar a radicalidade de um exercício de fronteira, de um “embate” com um irredutível que remove as entranhas intelectuais e afetivas. Não é nada fácil essa abertura. Concordo com meu amigo Luiz Felipe Pondé sobre as grandes dificuldades que envolvem a convivência com o outro, sobretudo na sua proximidade inquietante. Não há que idealizar o outro, concordo, mas há que buscar caminhos precisos de convivência e partilha com ele, em seu “mistério intransponível”, e colher aprendizados novidadeiros. O diálogo, como tão bem mostrou Gadamer, é uma “expansão de nossa individuliade”, é a abertura para uma possibilidade que desconhecemos, capaz de nos envolver e enriquecer. Ele deixa em nós uma “marca”, uma “força transformadora”, um “algo” que nos faz diferentes e, diria, melhores. 

Qual a marca do campo de estudos da teologia das religiões?  

Esse campo de estudos é marcado por muitos desafios e tensões. Mesmo no âmbito de outras tradições cristãs, como no protestantismo, o tema suscita muita controvérsia. Um de meus queridos alunos da PUC-RJ, Eduardo Rosa Pedreira, hoje eminente professor, escreveu um belo artigo sobre os “desconfortos e desafios trazidos pelo diálogo interreligioso ao mundo protestante” (Atualidade em Debate – Caderno 46, 1996). Nesse artigo que sempre apreciei, ele aborda o desconforto do crer, do ser e do fazer. No campo protestante, não foram poucas as resistências contra a reflexão elaborada por Jonh Hick, em torno de suas teses sobre o “Deus encarnado”. Seguiu-se muita discussão depois da publicação da obra organizada por J.Hick e Paul Knitter, em torno da unicidade cristã (The Myth of Christian Uniqueness – 1987), inclusive com reações precisas de teólogos inclusivistas em outra obra: Christian Uniqueness reconsidered: The Myth of a Pluralistic Theology of Religions (1990). No campo católico as reações foram também intensas, acompanhando a polêmica publicação da Declaração Dominus Iesus (2000), que bloqueava caminhos que tinham sido abertos com documentos anteriores e fundamentais do importante dicastério romano dedicado ao tema do diálogo (Diálogo e Missão – 1984) e Diálogo e Anúncio (1991). Em documento bem reticente sobre o tema do cristianismo e as religiões, tinha também se pronunciado a Comissão Teológica Internacional, em 1997. Na trilha preparada e aberta pela Declaração assinada pelo cardeal Ratzinger em 2000, muitos teólogos católicos e pastoralistas que abordavam a temática sofreram investigação: Tissa Balasuriya (1997), Antonii de Mello (1998),  Jacques Dupuis (2001) e Roger Haight (2004). Outros estão sendo investigados por instâncias diversificadas: Andres Torres Queiruga, Claude Geffré e José Maria Vigil. Como se pode observar, o trabalho teológico em torno da temática do pluralismo religioso tem provocado muitas reações e atemorizado muitos teólogos em seu exercício de adentramento nestas questões. Outros seguem, porém, com ousadia e coragem nessa desafiante área de atuação teológica. Esse campo de abordagem é muito rico e lança o teólogo no imprescindível desafio de mergulho no mundo da alteridade. O tema ganha cidadania nos fundamentais eventos que marcam a reflexão teológica brasileira, como a SOTER e a ANPTECRE, mostrando uma vitalidade que é contagiante, e que se expressa também em muitas dissertações e teses defendidas e em desenvolvimento no momento atual.

Quais os rumos que a Teologia no Brasil tem tomado nos últimos anos e
como ela pode ser definida atualmente?

Vejo com muito otimismo os caminhos atuais da reflexão teológica brasileira. Alguns temas merecem especial destaque. Já sublinhei o campo desafiador da teologia do pluralismo religioso, que ganha a cada dia novos adeptos. Mesmo antigos bastiões da teologia da libertação, como Leonardo Boff, dedicam-se hoje com energia ao tema, mostrando novas sintonias de abordagem. Ele assinala no prefácio do livro Teologia latino-americana pluralista da libertação (2006) que assim como existe “a imensa biodiversidade na natureza como fato e como incomensurável valor que merece ser preservado, de forma semelhante existe a diversidade das religiões, que são de fato valores a serem apreciados, pois são manifestações do humano e da experiência religiosa da humanidade”. O índice de autores da coleção Pelos muitos caminhos de Deus, desvela a presença de muitos teólogos brasileiros empenhados nesse desafiante trabalho. Destaco também a presença brasileira no número especial da revista internacional de teologia, Concilium, dedicada ao tema da teologia do pluralismo religioso: o paradigma emergente (Concilium nº 319 – 2007). Há também que sublinhar outro campo instigante e provocador como o da teologia pública, que cresce a cada momento também no Brasil, envolvendo teólogos católicos e protestantes nesse rico debate. Com o crescimento das ciências da religião, abre-se um desafio novo para a teologia, de sua presença viva na Universidade. Como sublinhou Inácio Neutzling em instigante artigo no livro Teologia pública em debate (2011), “a teologia como discurso publico, tem necessidade da liberdade institucional frente à igreja, assim como de um lugar no espaço público das ciências”. A teologia vem, assim, convidada a assumir uma nova tarefa, ousada e original, no âmbito da sociedade, deixando de ficar unicamente concentrada no campo restrito das comunidades de fé.

- Que inspiração a Teologia brasileira pode oferecer ao pensamento
teológico latino-americano e mundial?

Nós que fomos formados na teologia da libertação, temos consciênvia viva do grande significado que nossa reflexão teológica ganhou em âmbito internacional. Talvez tenha sido um dos contributos mais originais que oferecemos ao mundo e às igrejas, esse legado de uma teologia sintonizada com a vida do povo, seus sofrimentos e anseios de libertação. Num belo texto de 1985, o saudoso teólogo italiano, Ernesto Balducci, falava da inversão missionária provocada pela teologia da libertação: as caravanas agoram voltavam das Índias ocidentais, com os novos anunciadores do evangelho. Essa linda contribuição foi reconhecida pelos mais destacados teólogos mundiais, entre os quais, Karl Rahner, Claude Geffré, Edward Schillebeeckx e outros. No meu tempo de doutorado em Roma (1982-1985), um tempo nobre para a teologia da libertação e para as comunidades de base, vibrava com as afirmações de reconhecimento e carinho para com as igrejas da América Latina por parte de teólogos como Johann Baptist Metz. Ele dizia: “As igrejas latinoamericanas nos mostram um processo de transformação de proporções inauditas, que a meu ver revestem-se de importância providencial para toda a igreja, e no qual estamos todos envolvidos, de uma maneira ou outra”. Novos desdobramentos da teologia da libertação estão hoje em curso, com incidências precisas nos campos da teologia do pluralismo religioso, da teologia pública, da teologia feminista, da teologia afro e dos povos originários. Não há dúvida sobre a originalidade e riqueza teológica que está sendo gestada nesses desafiantes campos, com contribuições verdadeiramente novidadeiras. Só mesmo o tempo dirá.

- Qual a importância da Teologia da Libertação e quais os desafios que
ela ainda enfrenta no cenário teológico internacional?

Essa questão já foi respondida em parte anteriormente. Gostaria apenas de destacar sua vitalidade, que pode ser reconhecida nos novos desdobramentos de sua temática no tempo atual. Em longo artigo que escrevi sobre o tema, em 2006, falo de algumas contribuições essenciais: o acento no empenho libertador, o resgate da cidadania dos pobres, a abertura à positividade da política e o respeito ao universo simbólico-cultural dos pobres. Levanto também alguns desafios que considero importantes como o da espiritualidade, da abertura ao pluralismo religioso, da questão da mulher e do respeito e cuidado para com a comunidade da vida. Há também outros temas emergentes sendo desenvolvidos por segmentos da comunidade teológica brasileira, no desdobramento da teologia feminista da libertação, que merecem atenção, como os desafios relacionados aos temas da homossexualidade (merece destaque os trabalhos desenvolvidos pelo teólogo André Sidnei Musskopf).

- Qual o papel e a importância das mulheres para a consolidação de uma
teologia brasileira?

Um traço bonito da reflexão teológica brasileira é a presença de instigantes e inovadoras teólogas. Pude conviver com muitas delas na minha formação teológica na PUC-Rio. Em período muito rico vivido ali no Rio, no final dos anos 1970 e inícios de 1980, com a presença de importantes nomes do pensamento teológico nacional, inúmeras teólogas leigas foram despontando no cenário reflexivo, como Maria Clara Bingemer, Ana Maria Tepedino e Teresa Cavalcanti. Firmava-se no Brasil uma rica discussão sobre o tema do feminino e do feminismo, com publicações muito originais e desafiantes. Vale também lembrar outros nomes importantes nesse campo: Ivone Gebara, Luiza Tomita, Sílvia Regina, Wanda Deifelt e Lúcia Weiller, além de outras que agora me escapam. Na rica convivência com essas teólogas tive um grande aprendizado, sobretudo o desafio de uma distinta ocular para captar o mistério sempre maior.

O que caracteriza o olhar feminino da "Revelação"?

Nas minhas andanças teológicas estive sempre envolvido e seduzido por maravilhosas mulheres, que me ajudaram a recompor minha teologia em tom diferencial. São minhas colegas da teologia, mas também das ciências da religião, em seus campos diversificados de atuação, sempre pontuando aspectos fundamentais e novidadeiros para a minha abordagem teológica. Não posso deixar de mencionar minhas orientandas e alunas, que estão sempre presentes, indicando novas veredas para as pesquisas que venho realizando com empenho e alegria. Tive e tenho também muitas amigas e companheiras na área de reflexão da mística comparada que muito me ajudaram. Elas dão, de fato, um diferencial para o meu olhar. Partilhei de lindos aprendizados com minhas amigas pesquisadoras do PPCIR de Juiz de Fora, da PUC-Rio e da PUC-SP, nos inúmeros encontros de mística que acontecem em Juiz de Fora desde 2001. Em singular artigo da teóloga Ivone Gebara, sobre o pluralismo religioso visto sob a perspectiva feminista, ela recorre à experiência mística vivida por algumas cristãs dos séculos XI e XII para sinalizar o traço profético já presente na ocasião, de questionamento da linguagem conceitual masculina e redutora para nomear o inominável. Indicavam em sua experiência religiosa e em suas narrativas místicas que o “princípio fundante” não podia ser encerrado numa perspectiva exclusivamente masculina, mas expresso de forma “múltipla, plural, infinita”. Importantes místicas desse período, em particular as beguinas, proporcionaram de forma inédita “uma nova configuração de gênero à deidade”, é o que vemos por exemplo na grande mística Marguerite Porete.

Em que medida a mística das religiões contribui para o sucesso do
diálogo inter-religioso?

Esse é um dos temas que mais venho trabalhando esses anos nos meus cursos de mística comparada. O diálogo interreligioso ganha vida e profundidade quando banhado nas águas da espiritualidade. É ela que proporciona o clima essencial para a humildade e desapego, sem os quais dificilmente ocorre o movimento de dom e gratuidade que deve presidir o encontro com o outro. O diálogo começa sempre no âmbito da interioridade, criando e favorecendo espaços de hospitalidade. Como mostrou com pertinência o buscador Louis Massignon, a verdadeira compreensão do outro não se dá por meio de sua anexação, mas pelo caminho singelo e único de um recolhimento que favorece sua hospedagem em nosso coração.

(Entrevista publicada no IHU Online nº 398 – Ano XII, 13/08/2012 – Concedida a Graziela Wolfart)

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4557&secao=398
…..

Nenhum comentário:

Postar um comentário