sábado, 25 de agosto de 2012

O campo religioso brasileiro na ciranda dos dados


O campo religioso brasileiro na ciranda dos dados

Entrevista com Faustino Teixeira

IHU On-Line – Que mapa religioso se desenha no Brasil a partir dos dados divulgados no último censo?

Sem dúvida, um mapa marcado por uma diversidade religiosa que se anuncia. Com respeito ao censo de 2010, algumas tendências se evidenciaram, como a diminuição dos católicos romanos, que caíram de 73,6% para 64,6% e o crescimento dos evangélicos, sobretudo pentecostais, que passaram de 15,4% para 22,2%. Numa população de 190,7 milhões de pessoas, os católico-romanos somam 123,2 milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos quais 25,3 milhões de origem pentecostal. Verificou-se ainda na última década um aumento percentual dos sem religião, mas um pouco abaixo do esperado, de 7,4% para 8,0% (15,3 milhões). O país permanece com uma marca cristã, já que 86,8% da declaração de crença do último censo girou em torno das tradições católica ou evangélica. As outras tradições religiosas no país ainda são tímidas, em termos numéricos, ainda que sua influência possa ser maior que a expressa nos simples dados, como no caso do espiritismo, que apesar de comportar apenas 2,0% da declaração de crença (3,8 milhões), tem uma ressonância social bem maior no país. As duas grandes expressões das tradições religiosas afro-brasileiras, a umbanda e o candomblé, continuam tendo o mesmo registro estatístico do censo anterior, com 0,3% de declaração de crença (umbanda com 407,3 mil e candomblé com 167,3 mil). As demais religiosidades permanecem apertadas numa estreita faixa de 2,7%, onde estão incluídas algumas que começam a despontar com uma presença mais definida: budismo (243,9 mil), judaísmo (107,3 mil), novas religiões orientais (155,9 mil) e o islamismo (35,1 mil). Há também nesse bloco a presença das tradições indígenas, cuja declaração de crença envolveu 63 mil pessoas.

IHU On-Line – O que as pessoas esperam das religiões a ponto de fazerem trânsitos constantes?
De fato, as religiões funcionam como um dossel protetor, fornecendo significado e sentido para as pessoas. Como tão bem mostrou Peter Berger, as religiões tem o potencial de situar ou integrar as experiências limites num quadro de significado, favorecendo um referencial importante para a construção e manutenção da identidade. As pessoas realmente transitam em busca de significado para a vida, e isso pode ser constatado no Brasil. O brasileiro, como diz o clássico personagem de Guimarães Rosa, gosta de “muita religião” e não se conforma com uma única parada, pois para ele uma só “é pouca”. Ele precisa ampliar o seu campo de proteção contra o infortúnio. Os dados dos últimos censos apontam para essa realidade da experimentação religiosa, mas não se consegue ainda captar com precisão a declaração de múltipla religiosidade no país. Trata-se de algo muito comum no Brasil, embora o censo tenha registrado apenas 15,3 mil pessoas que apontaram para isso. O catolicismo exerce no país o papel de “doador universal”, ou seja, “o principal celeiro no qual outros credos arregimentam adeptos” (P.Montero e R.Almeida). Esse trânsito e mobilidade está muito vivo entre os evangélicos, sobretudo os pentecostais, que circulam pelas denominações que não param de crescer nas últimas décadas no Brasil. A título de exemplo, em pesquisa realizada em 1992 pelo Núcleo de Pesquisa do ISER na área metropolitana do Rio de Janeiro constatou-se a média de criação de cinco novas igrejas por semana ou uma igreja por dia útil no triênio de 1990-1992. Outra pesquisa realizada pelo ISER e desenvolvida em 1994 sobre a presença evangélica no Grande Rio evidenciou que cerca de 70% dos evangélicos daquela região “não nasceram nem foram criados num lar evangélico”. Ou seja, são fiéis que migraram de outras tradições religiosas, sobretudo do catolicismo (61%). Esse fenômeno de experimentação e trânsito religioso é também muito vivo entre aqueles que se declaram sem religião. Como sabemos, esse grupo de declarantes é composto sobretudo por pessoas que se desencantaram com suas filiações tradicionais e encontram-se “desencaixadas”, transitando em busca de vínculos sociais e espirituais. Para eles, o que conta mais são os “elementos subjetivos”, e de acordo com o foro íntimo buscam um nicho de sentido que possa responder às suas expectativas pessoais. Eles se movem como peregrinos do sentido entre as instâncias nomizadoras. Em recente entrevista concedida ao IHU, a socióloga Sílvia Fernandes situou muito bem a questão: “Cada vez menos ouvimos a expressão ´fulano se converteu`, mas é mais comum ouvirmos ´fulano agora é de tal religião`. Assim, a transitoriedade da adesão religiosa é uma marca desses tempos”.
IHU On-Line – Em vinte anos, a população católica diminuiu 22%, ou seja, em proporção, a Igreja Católica perdeu mais de um quinto de seus fiéis. A que se deve este fato, no seu entendimento?
A diminuição da declaração de crença católica vem se acentuando há mais tempo. Se observarmos os dados dos últimos censos essa tendência é nítida: 1970 (91,1%), 1980 (89,2%), 1991 (83,3%), 2000 (73,6%) e 2010 (64,6%). E as projeções estatísticas indicam que até 2030 os católicos terão um índice menor que 50% e em 2040 ocorrerá um empate com o grupo evangélico. Não é tarefa muito simples indicar as razões que levaram a tal situação. Pode-se aventar a hipótese de que a estratégia missionária da igreja católica nas últimas décadas tem fissuras importantes. Verifica-se que o repertório doutrinal mantém-se defasado com respeito aos sinais dos tempos. Há muita resistência na igreja católico-romana para atualizar a reflexão e modernizar a postura pastoral em campos que são nodais como os da atuação na história, no diálogo ecumênico e inter-religioso e no âmbito da moral. Nota-se um claro enrijecimento da conjuntura eclesiástica nos últimos trinta e cinco anos, e não há sinais de arejamento eclesial. E é também curioso constatar como as estratégias realizadas no campo da renovação carismática católica, com a presença dos padres cantores e uma busca de ação mais viva na área midiática não surtiram os efeitos desejados. As iniciativas realizadas revelam-se tímidas diante de outras implementadas pelos evangélicos, como a marcha para Jesus que se repete anualmente com grande sucesso. Outro dado intrigante a respeito é a incapacidade dos setores eclesiásticos, no âmbito católico-romano, de perceberem com clareza a dimensão da crise em curso. Diante dos dados apresentados, reage-se com ingênuo otimismo. Ou se diz que aqueles que permanecem católicos são de fato os mais convictos, e que o catolicismo privilegia não o traço quantitativo, mas qualitativo; ou então busca-se firmar um outro olhar, sinalizando, na contra mão, a vitalidade do catolicismo. É o que se verificou com a reação de muitos clérigos diante dos dados apresentados no último censo. Aos dados do censo do IBGE, buscou-se contrapor os dados do último censo realizado pelo CERIS a respeito da igreja católica no Brasil, cobrindo o primeiro semestre de 2011, tendo como referência o ano de 2010. Segundo os dados do CERIS, o catolicismo no Brasil está “vivo e vicejante”, e isto vem demonstrado pelo considerável crescimento das vocações sacerdotais e pelo aumento do número de paróquias no território nacional. O documento sinaliza que há uma “evolução no número de fiéis” e que “as novas comunidades religiosas têm também despertado esse reencantamento da fé católica”. Para quem lê atentamente os dados do censo do IBGE e as reflexões sociológico-antropológicas que se seguiram, não há como deixar-se de surpreender com tamanha ingenuidade. Reagindo a tal ocular, o sociólogo e ex-assessor da CNBB, Pedro Ribeiro de Oliveira – em entrevista ao IHU -, assinala: “Achar que aumentar o número de paróquias é aumentar a presença da igreja no mundo é um equívoco, no meu entender, de todo tamanho. E o segundo é dizer que a igreja está viva porque aumentou o número de padres. A igreja está mais clerical, porque aumentou o número de padres, mas o número de padres não representa a vitalidade da igreja. A vitalidade da igreja sempre foi a atividade dos leigos”. Esta análise de Pedro Oliveira é certeira, e vem de um perspicaz analista da igreja católica no Brasil. Concordo plenamente com ele quando diz que a vitalidade de uma igreja se mede por sua capacidade de congregar as pessoas, de entusiasmar as pessoas no trabalho pastoral. E isto não se vê hoje com clareza. O que existe é uma igreja que fala para dentro, que deixa de exercer o seu papel público imprescindível e que perde seu potencial de contágio evangelizador. Como assinala Pedro, “hoje o que vemos é a força de atrair para dentro, ou seja, o bom católico é aquele que está na igreja. Isso aí é o definhamento da instituição”.
IHU On-Line – As regiões onde o Catolicismo mais decresceu foram naquelas de “recepção de migrantes”, nas fronteiras agro-minerais do Norte e do Centro-oeste e nas periferias dos grandes centros urbanos do Sudeste brasileiro. A que se deve esse fato e como a Igreja Católica atuou para acompanhar tanto a mobilidade territorial e, principalmente, a mobilidade religiosa?
De fato, é nesses regiões que se verifica a crescente presença pentecostal. Um olhar atento sobre o gráfico apresentado pelo IBGE, o maior colorido pentecostal localiza-se nas frentes de ocupação das Regiões Centro-Oeste e Norte, bem como na linha litorânea das grandes metrópoles do Sudeste, em particular nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Em cidades do Estado do Rio, como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belfort Roxo, o número de evangélicos já superou o número de católicos. Os católicos marcam sua presença mais decisiva nas Regiões Nordeste, Sul e Estado de Minas Gerais. A meu ver, a igreja católica tem tido muita dificuldade de entender a dinâmica desta mobilidade religiosa, estando também carente de instrumentação para reagir a tal situação. O que alguns documentos da instituição assinalam como meta essencial da missão católica é “ir ao encontro dos afastados”, contrariando, de certa forma, a ideia por ela mesma defendida de que a igreja está viva e atuante.  Um dado curioso apontado no censo do CERIS é a queda acentuada do número de religiosas no Brasil, que passou de 35.039, em 1961, para 33.386, em 2010. Vale lembrar que as religiosas tiveram um dos importantes trabalhos na irradiação evangelizadora. A igreja católica fala em buscar os afastados, mas está movida por um discurso que muitas vezes não lhes interessa ou motiva. Daí toda a “desafeição” em curso. Ela que era forte na dinâmica popular, de irradiação criadora no campo e nas periferias, deixou de incentivar ou apoiar o importante trabalho das comunidades eclesiais de base, que tinham um alcance evangelizador significativo. Como se diz com acerto, a igreja católica optou pelos pobres, mas não levou a sério essa opção, privilegiando um trabalho intestino e clericalizante. As igrejas se fecharam, muraram suas redondezas, protegeram-se dos incômodos outros e limitaram o tempo para a acolhida dos pobres e excluídos. Esse trabalho veio ocupado, com eficácia, pelas igrejas pentecostais, que atingem rincões inalcançáveis pela atual pastoral católica.

IHU On-Line – Em paralelo, percebe-se que há o crescimento da população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. O que isto significa?
Esse pujante crescimento pentecostal não é um exclusivo fenômeno brasileiro, mas mundial. Como mostrou Peter Berger em reflexão sobre a dessecularização do mundo, os dois maiores fenômenos verificados na cena religiosa mundial relacionam-se com a irradiação islâmica e a explosão pentecostal. A presença pentecostal, sinalizada por Harvey Cox com a imagem do “fogo do céu”, é um fenômeno impressionante e que merece dedicada atenção. O seu crescimento no Brasil é mesmo espantoso, embora se perceba um traço de pulverização, em razão das constantes divisões ocorridas em seu meio e da criação de novas igrejas a cada momento e nos espaços mais exíguos. Algumas igrejas pentecostais históricas, como a Assembléia de Deus, mostram um inaudito vigor, com presença em todos os cantos do país. É a igreja evangélica de denominação pentecostal mais numerosa, contando hoje com 12,3 milhões de adeptos, seguida pela Congregação Cristã do Brasil, com 2,2 milhões de fiéis. Não há semelhante registro de presença entre as evangélicas de missão, com exceção da igreja batista, que congrega 3,7 milhões de adeptos. Verifica-se, porém, nos últimos anos disputas acirradas por fiéis no âmbito de algumas pentecostais, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja Mundial do Poder de Deus. Segundo os dados do último censo, a IURD perdeu 228 mil fiéis na última década, quebrando o ritmo de um crescimento que era notável nos anos 1990.
IHU On-Line – Como o senhor vê o futuro das religiões no Brasil, após a divulgação dos dados do Censo?
A meu ver, vamos ter que nos acostumar com um país cada vez mais pontuado por diversidade religiosa e também por distintas opções espirituais, religiosas ou não. Saber lidar com essa pletora de inscrições de sentido constitui um dos grandes desafios desse novo milênio. A tarefa de encarar a diversidade religiosa como um valor e uma riqueza é também um repto que se abre para as diversas igrejas cristãs. Nada mais problemático hoje em dia do que continuar defendendo a precária ideia de que as outras religiões são destinadas a encontrar o seu acabamento fora de si mesmas, numa pretensa religião que englobaria em si o domínio da verdade. Nada menos plausível hoje do que uma tal ideia que, infelizmente, continua viva no repertório da igreja católica pós-Dominus Iesus. Gosto muito de uma passagem do Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo, de 1993, onde se diz que os católicos “hão de respeitar com todo o cuidado a fé viva das outras Igrejas e Comunidades Eclesiais que pregam o Evangelho e hão de alegrar-se de que a graça de Deus frutifique entre eles” (n. 206). E cada vez mais acho que uma tal perspectiva de abertura e reconhecimento da dignidade da diferença deve ser ampliada para as outras tradições religiosas.
IHU On-Line – Como pode ser descrita a “desafeição religiosa”? Em que consiste? O que ela significa?
Em sua entrevista ao IHU, Pedro Ribeiro de Oliveira recuperou essa expressão sociológica que se aplica muito bem aos 15,3 milhões de pessoas que se declararam sem religião no último censo. É curioso notar que  nesse quadro dos sem religião, os que se declaram ateus ou agnósticos constituem minoria, respectivamente 615 mil e 124,4 mil declarantes. Grande parte dos sem religião estão entre aqueles que se desencaixaram de seus antigos laços e mantém sua religiosidade com os recursos da subjetividade, mais do que com o aporte da tradição. Há também aqueles que se desafeiçoaram de suas tradições e buscam caminhos alternativos. É um segmento mais afeito ou disponível às experimentações. Vem composto por pessoas que transitam entre vários pertencimentos, sempre sedentos por vínculos sociais e espirituais.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512819-o-campo-religioso-brasileiro-na-ciranda-dos-dados

(Publicado nas Entrevistas do Dia do IHU Notícias, de 25/08/2012 e na Revista do IHU sobre o Censo 2010 – 27 de agosto de 2012)

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