segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A dimensão pedagógica da espiritualidade


A dimensão pedagógica da espiritualidade 

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

“Calado seguirei, não pensarei em nada:
Mas infinito amor dentro do peito abrigo”
(Arthur Rimbaud)

            Trata-se de um instigante desafio buscar captar a dimensão pedagógica da espiritualidade. A pedagogia diz respeito ao exercício do ensino. É curioso verificar as inúmeras analogias que acompanham o ato de ensinar. Com base no dicionário analógico da língua portuguesa, constata-se que esse exercício evoca uma séria de palavras que são profundamente relacionadas com a espiritualidade. Ensinar é instruir, nutrir, edificar, guiar, iluminar, orientar, criar, inspirar, fecundar, polir, limar, lapidar, desbastar, instilar, encaminhar, dilatar os horizontes, desbravar[1]. A espiritualidade tem essa essencial dimensão formadora e edificadora do indivíduo. Esta é, infelizmente, uma dimensão um pouco esquecida em nosso tempo marcado pela racionalidade do mercado e da produtividade. No frenético ritmo das sociedades pós-tradicionais, valores humanos milenares são colocados à margem, em proveito de outros “valores”, tais como a competição, a produtividade, o sucesso, o individualismo, a vantagem, o lucro e o consumismo. Como bem mostrou Madel T. Luz, essa transformação de valores nos campos mais decisivos do agir e do viver humanos, com o efetivo amparo de poderosos meios de comunicação, vem provocando uma “situação de incerteza e apreensão quanto ao como conduzir e o que pensar e sentir em relação a temas básicos como sexualidade, família, nação, trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada etc.”[2]. Não é, portanto, fortuito o atual interesse pelo cuidado e pela espiritualidade. Ainda que meio olvidada e descuidada nesse tempo atual, a espiritualidade emerge como um traço necessário e substantivo para a afirmação do humano. Ela diz respeito ao cultivo de uma dimensão fundamental, que trata da interioridade do ser humano, e o seu cultivo resulta na “expansão de vitalidade” e da qualidade da vida. É a espiritualidade que resgata uma concepção mais fecunda do ser humano, em particular sua dimensão de profundidade, que foge aos parâmetros transmitidos pela cultura dominante. Em texto iluminador, Leonardo Boff assinala:

A singularidade do ser humano consiste em experimentar a sua própria profundidade. Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus. Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida. Trata-se de uma energia originária, com o mesmo direito de cidadania que outras energias, como a sexual, a emocional e a intelectual. Pertence ao processo de individuação acolher essa energia, criar espaço para esse Centro e auscultar estes apelos, integrando-os ao projeto de vida. É a espiritualidade no seu sentido antropológico de base”[3].

            A espiritualidade traduz um modo de ser, uma atitude essencial que acompanha o ser humano em cada passo de seu cotidiano. Ela expressa uma energia que é comum a todos, independente de crença religiosa, visibilizando a dimensão de profundidade da própria condição humana.

Mística e Espiritualidade

            Esses dois termos estão intimamente relacionados. A mística pode ser entendida como “a experiência suprema da realidade” e a espiritualidade como o caminho para alcançar esta experiência[4]. A espiritualidade, como bem sinalizou Raimon Panikkar, é “o caminho da vida”. Há que desbastar estas palavras que se encontram hoje tão desgastadas ou incompreendidas e revelar o seu significado preciso. Não há como desvencilhar o ser humano da mística, pois essa é uma dimensão antropológica fundamental, compondo o repertório existencial de todo vivente. Na verdade, a mística é a “experiência integral da vida” ou da realidade. A realidade vem aqui entendida como um símbolo para expressar o “Todo”, o to holon de que falam os gregos. Trata-se de uma expressão mais neutra e de amplitude ecumênica, capaz de uma abrangência maior do que a traduzida por “experiência de Deus”, como o que ocorre nos ambientes monoteístas. A mística, entendida como experiência da realidade, vai ser  diversificadamente interpretada, conforme a angulação de cada um. Para alguns será a experiência de Deus, para outros, do “Todo”, do “Nada”, do “Ser”, e assim por diante. Na visão de Panikkar, que se dedicou com afinco ao tema, a experiência mística é

“a experiência integral da realidade. Se a realidade identifica-se com Deus, será experiência de Deus; se esta realidade é vista como trinitária, será experiência cosmoteândrica; se é vista como vazia, será experiência da vacuidade. Em cada caso é, de qualquer modo, a experiência do ´Todo`. Desaparece assim a marca de uma mística que se perde no alto dos céus, desencarnada e distanciada das alegrias e das dores do mundo, sem que por isto se afogue na pura terrenalidade ou venha sufocada pelo ativismo, uma vez que experimenta a realidade das condições humanas na sua totalidade (...)”[5].

            Se a mística é essa “experiência holística da realidade”, o contemplativo é aquele que “simplesmente vive”, assim como o peixe n´água[6]. A contemplação é o exercício do respiro da vida, sem muitas complicações. Está profundamente ligada à vida, em suas alegrias, esperanças e dificuldades. É a espiritualidade que anima o caminho do contemplativo. Ela é como uma “carta de navegação” na trajetória existencial do ser humano, que pode tornar-se um contemplativo. A espiritualidade diz respeito à qualidade de vida e de ação, de potencialidade de abertura ao ilimitado. Não está necessariamente ligada a uma profissão de credo ou adesão religiosa, pois é um dado antropológico de base. Todo ser humano vem habitado por sua condição finita, mas aberta ao mistério do ilimitado e do infinito. A espiritualidade distingue-se da religião:

“Toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade; mas nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa. Quer você acredite ou não em Deus, no sobrenatural ou no sagrado, de qualquer modo você se verá confrontado com o infinito, a eternidade, o absoluto – e com você mesmo”[7].

            A espiritualidade relaciona-se com “qualidades do espírito humano” que tocam sua dimensão de profundidade. É dela que se irradiam os toques singulares do amor desinteressado, da gratuidade, atenção, cortesia, compaixão e hospitalidade. Os indivíduos podem desenvolver tais qualidades, “até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico”[8]. A espiritualidade aciona o movimento desses valores fundamentais, que são irradiados por todo canto. Ela é um exercício de vida e experimentação. Deixar-se habitar pela atmosfera da espiritualidade é criar um espaço garantido e especial para as fragrâncias da profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente, pois dali se irradiam serenidade, vitalidade e entusiasmo. A paz também é um dos efeitos imediatos desse novo modo de ser, uma paz que brota da profundidade:

“Dessa paz espiritual a humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimente o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado”[9].

Passos da Espiritualidade

            O cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e interiorização. Há que romper com um modo habitual de ser e deixar-se tocar pelos apelos da profundidade. Num dos mais belos textos sobre a descrição dessa viagem interior, o místico francês, Teilhard de Chardin (1881-1955) assinala alguns dos passos que a presidem, com base em sua própria experiência interior. Com a lâmpada na mão, Teilhard deixa a zona aparentemente clara de suas ocupações do dia a dia e busca descer ao mais fundo de si mesmo, ao abismo profundo de onde “emana confusamente” o seu poder de ação. Não se trata de uma viagem tranquila, mas uma “saída” para dentro de si mesmo. Na medida em que se distanciava das “evidências convencionais” que iluminam superficialmente a vida social, sentia a insegurança de alguém que se escapa de si mesmo. Assinala que a cada passo descido era um outro personagem que se revelava, e que fugia ao controle. Sentia-se asfixiado pelo “abismo sem fundo” sob os passos inseguros, mas que sinalizavam a onda de sua vida. Vale registrar a descrição do autor:

“Então, totalmente possuído por minha descoberta, eu quis subir à luz, esquecer o inquietante enigma no confortável convívio das coisas familiares, recomeçar a viver na superfície, sem sondar imprudentemente os abismos. Mas eis que, sob o espetáculo mesmo das agitações humanas, vi aparecer de novo, aos meus olhos prevenidos, o Desconhecido, do qual eu queria escapar (...). Mas era o mesmo mistério: eu o reconheci. Nosso espírito se perturba quando procuramos medir a profundidade do mundo abaixo de nós (...). Após a consciência de ser um outro – e um outro maior do que eu -, uma segunda coisa me deu vertigem: é a suprema improbabilidade, a formidável inverossimilhança de encontrar-me existindo, no seio de um mundo bem sucedido. Nesse momento, como qualquer um que quiser fazer a mesma experiência interior, eu senti pairar sobre mim a angústia essencial do átomo perdido no universo (...). E, se alguma coisa me salvou, esta foi entender a palavra do Evangelho – garantida por sucessos divinos -, que me dizia do mais fundo da noite: ´Ego sum, noli timere`(´sou eu, não temas`)”[10].

            Os grandes mestres espirituais assinalam que essa viagem interior, apesar de árdua e desgastante, revela surpresas inesperadas. Ela requer disposições precisas, e um exercício radical de despojamento, humildade e purificação do coração. Não há como viver a intensidade da experiência senão deslocando o ego de sua centralidade, com a afirmação de sua vulnerabilidade e limite. Não há como tocar o fundo do Mistério, sua centelha mais íntima, senão mediante uma “límpida humildade”, como revela Mestre Eckhart. E sublinha de forma poética:

“As estrelas derramam toda sua força no fundo da terra, na natureza e no elemento da terra, produzindo ali o ouro mais límpido. Quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras e a alma tornar-se bem grande e elevada no amor de Deus, que se compara ao ouro límpido”[11].

Com grande propriedade, o evangelho de Mateus sinaliza que os puros de coração verão a Deus (Mt 5,8). E nesse “portal da misericórdia” é o Mistério mesmo quem se derrama em vida e doação. Mas não é fácil “despir-se de tudo o que é acidental” para viver esse despojamento espiritual. Há que recorrer a um guia que possa orientar essa trajetória. Para achegar-se ao “ponto sutil da alma” é necessário a presença desse pedagogo espiritual. Na tradição oriental fala-se na insubstituível figura do guru, que ajuda o iniciante a trafegar nos caminhos da iluminação. A tradição indica que quando o discípulo está pronto, o guru apresenta-se automaticamente. É alguém familiarizado com o Mistério, que conhece por experiência própria as veredas que o precedem e apontam. Pelos meandros da profundidade, é capaz de iniciar o discípulo nesse caminho e de suscitar em seu coração a inefável experiência por ele vivida[12]. Há, porém, um momento que o discípulo segue o seu rumo sozinho. O guia faculta o trabalho inicial, de disponibilização da alma para a ação do Espírito, mas o caminho posterior é traçado por Presença ainda mais delicada:

            “Na noite mais ditosa
            em segredo, pois que ninguém me via,
            de nada mais ciosa,
            sem outra luz ou guia,
            se não a que no coração ardia.

            Essa luz me guiava
            mais certa do que a luz do meio-dia,
            lá onde me esperava,
            quem eu bem conhecia,
            num sítio onde ninguém aparecia”[13].

A espiritualidade e o despertar para o Real

            A espiritualidade é o caminho para atingir a experiência mística. A palavra mística relaciona-se com mistério. O místico é aquele que faz a experiência e o mistério é o seu objeto. Em sua derivação etimológica, a mística vem de myein, que traduz a idéia de fechar os lábios ou os olhos. A mística lida com um mistério escondido, não revelado ou comunicado, mas que suscita no buscador uma sede infinita. Na realidade, porém, o mistério está envolvido nas coisas, nos pequenos sinais do cotidiano. É, na verdade, o sujeito que não consegue captar sua Presença pois o seu coração está enredado em nós que impedem a sua visão. É o trabalho da espiritualidade que desata estes nós e faculta a “secreta mirada”. Tem razão Comte-Sponville quando assinala que “é no mundo que o mistério é maior”. O Mistério habita e resplende em todas as coisas, mas passa desapercebido ao olhar superficial:

“Na maioria das vezes, passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do hábito... ´Desencanto com o mundo`, dizem volta e meia. É que esqueceram de olhar para ele ou porque o substituíram por um discurso. E aí, de repente, no meio de uma meditação ou de um passeio, aquela surpresa, aquele deslumbramento, aquela admiração, aquela evidência: existe alguma coisa, em vez de nada!”[14]

            Com o avanço da “modernidade moderna”, enredada num ego auto-centrado, foi se perdendo o “sentido da maravilha”, como salientou com acerto Abraham Heschel. E isso é alarmante, também para o estado da temperatura vital. Não é por falta de informação que sofre a humanidade, mas por falta de maravilhamento. É a maravilha o que há de mais íntimo e misterioso. Trata-se da “única bússula que encaminha ao pólo do significado”[15]. Daí a fundamental importância que deve ser dada à atenção: a atenção ao tempo, aos pequenos sinais do cotidiano, à vida como um todo. A atenção situa o sujeito em estado de “espera”, aberto ao estupor e às surpresas da vida. Ela “consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e penetrável ao objeto”. A atenção prepara o sujeito para o “toque da centelha”, em estado desarmado para acolher desnudamente o mistério da verdade, que é dom[16].  Em linda carta escrita a Joë Bousquet, em abril de 1942, Simone Weil sublinhou que a atenção “é a forma mais rara e mais pura da generosidade”[17].

            A atenção verdadeira revela os meandros inusitados do Mistério que está em toda parte. O que se requer é uma “educação do olhar”. É o primeiro e decisivo passo para sentir apaixonadamente o tempo, como indicou Teilhard de Chardin. De fato, “nada é profano, aqui em baixo, para quem sabe ver”[18]. O desafio está em “libertar-se do conhecido” para vislumbrar o Real. Tudo é muito simples, e é belo por ser simples. Há algo de sagrado na “imanensidade”, na espiritualidade da imanência, que brilha no que há de mais banal e delicado: “Experiência banal, experiência familiar? Sim, mas que é ainda mais perturbadora, quando nos permitimos mergulhar nela, nos abandonar nela, nos perder nela. O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso cotidiano”[19].

            No coração animado pelo toque da espiritualidade o que é simples ganha uma dimensão inusitada. Todo o universo se revela, de repente, grávido de Deus. As coisas, em sua simplicidade, que escapam normalmente da atenção, ganham uma fisionomia nova: é a flor no campo, a brisa suave, o voo do pássaro, o sorriso da criança, o orvalho da manhã. Elas estão sempre ali, à alçada da vista, mas distantes da atenção. E, de repente, as coisas assim banais podem tornar-se “o ponto focal de uma concentração intensa, capturar a atenção num nível anormal”, inaudito, favorecendo a abertura de uma nova dimensão, completamente distinta. É a experiência que Dostoievski favorece ao leitor, em passagem singular de sua obra Memória da casa dos mortos, comentada pelo filósofo da Escola de Kyoto, Keiji Nishitani. As mesmas coisas reais apresentadas ao olhar, ganham uma nova dimensão: “Ele viu as mesmas coisas reais que todos nós vemos, mas o significado de sua realidade e o sentimento do real que nelas experimentou, percebendo-as como reais, são qualitativamente distintas. E justamente por isso ele pode esquecer a sua ´mísera condição`e abrir os olhos para o ´mundo prenhe de Deus`”[20]. Confome Nishitani, há uma “ordem mística” presente em todas as coisas, e que pode ser despertada no “profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”. É o desafio espiritual de adentrar-se na sua realidade, penetrar na sua espessura. Mas isto é raro, embora fundamental: “É extremamente raro para nós ´fixar nossa atenção` nas coisas de modo a nelas nos perder ou, em outras palavras, tornar-se as coisas que olhamos”[21]. Há uma sólida barreira que separa o sujeito do objeto, e isto porque as coisas são sempre vistas pela perspectiva do “si”, do sujeito ego-centrado[22]. A espiritualidade faculta a emergência de uma “subjetividade elemental” que nasce da morte do eu ego-centrado, abrindo o espaço para uma nova e secreta mirada.

            Há em todo místico um “desaforado amor pelo todo”, uma sede irremovível de penetrar os umbrais da vida, de adentrar-se nas entranhas do real. É habitado pela mesma voracidade da borboleta que devora o seu casulo para poder alçar voo. Na bela visão da filósofa María Zambrano, o místico é alguém que realizou “a mais fecunda destruição de si mesmo, para que neste deserto, neste vazio, venha a habitar por inteiro outro; colocou em suspenso sua própria existência para que esse outro resolva nele existir”[23]. Trata-se, porém, de uma destruição criadora. Esta voracidade de existir, de encontrar no tempo a “presença e a figura”, não lança o místico para fora de seu lugar, mas o envolve ainda mais fundo em sua espessura, nas entranhas da história. O que ocorre com o místico, trabalhado pela espiritualidade, não é um aniquilamento dos sentidos, mas uma radical transformação. A mudança interior redimensiona a paisagem:

“Os sentidos vêm, sim, destruídos, mas somente na sua forma normal, para então ser reconduzidos – através de recôndidos caminhos a nós desconhecidos – a uma superior agudeza e a uma união entre si, e deles com a inteligência, que produz uma percepção mais intensa e total, um abraçar a realidade e penetrá-la”[24].

A fragrância da espiritualidade

            Em reflexão realizada em março de 1928, Gandhi situou de forma exemplar  os efeitos da espiritualidade sobre o tempo e a história. É pela fragrância da espiritualidade que se consegue captar o seu significado e valor. A espiritualidade autêntica provoca uma inserção distinta na vida. Gandhi sinaliza:

“A comprovação real da verdade de uma religião é a fragrância de espiritualidade, do amor, do contentamento, da paz reais, e que tais sentimentos podem emanar daqueles que se atêm àquela religião. E, sem isso, nosso credo e nossas profissões e pregações   desse credo, até mesmo nossos cultos e preces, não levarão ninguém a ver que nós conhecemos ´um segredo do Senhor`”[25].

            Num dos livros que mais inspirou os místicos cristãos, o Cântico dos cânticos, há uma rica passagem onde o amado leva a amada à adega, que é a casa do vinho, e lá anuncia o seu amor. E a amada, embevecida e embriagada pelo dom da entrega, não consegue vislumbrar senão o amor: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor” (Ct 2,4). Essa passagem inspirou João da Cruz em seu Cântico Espiritual. É na “adega interior” que se dá o momento mais íntimo da união amorosa, o encontro profundo entre o amado e a amada:

            “E na adega interior
            do Amado meu bebi; quando eu saía,
            de tanto resplendor,
            já nada mais sabia
            e meu gado perdi, que antes seguia.

            Ali meu deu o seio,
            ditando-me ciência saborosa,
            e dei-me sem receio,
            oferta dadivosa,
            e ali lhe prometi ser sua esposa”[26].

            Na mais íntima adega ocorre o grau mais extremo do amor e a comunicação mais sublime do dom inefável do Amado. É o momento onde “a alma se transforma toda em Deus”, bebendo de seu Deus. Ao sair dessa “borracheira” ela, a amada, tudo esquece, e a razão de sua vida doravante será o amor:

            “Minha alma ao bem Amado
            voltou-se, dedicada, a seu serviço.
            Não guardo mais o gado
            nem mais tenho outro ofício,
            pois é somente amar meu exercício”[27].

            Temos aqui um exemplo claro da fragrância da espiritualidade. A amada sai da adega revestida da substância do amor, ou seja, a experiência espiritual mais íntima provoca uma mudança no exercício da vida. A conversio cordis provoca a conversio morum, ou seja, a conversão do coração leva a uma mudança de conduta. O estado mais profundo de união mística não tira o sujeito do mundo, isolando-o em experiências extraordinárias, mas joga-o novamente na vida diária, animado, porém, com uma nova perspectiva e visada[28]. A partir desta “subida experiência” é a vida mesma que em seu conjunto se transforma e a mística ganha uma dimensão terrenal. Dá-se aqui o que Karl Rahner nomeou como “mística da cotidianidade”, ou também de “mística de olhos abertos”.

            Também Teresa de Ávila, ao traçar os passos do itinerário espiritual em suas Moradas, sinaliza a dimensão e importância das obras no caminho onde se alcança a união. Indica, com vigor, que o essencial não está nas exterioridades das orações “encapotadas”, mas no exercício efetivo do amor. E adverte:

“Não, irmãs, não; o Senhor quer obras. Se vedes uma enferma a quem podeis dar algum alívio, não vos importeis em perder essa devoção e tende compaixão dela. Se ela sente alguma dor, doa-vos como se a sentísseis vós. E, se for necessário, jejuai para que ela coma; não tanto por ela, mas porque sabeis que o vosso Senhor deseja isso”[29].

            A espiritualidade é uma fonte poderosa que se irradia pela vida, produzindo delicadeza, cortesia, serenidade e paz. Ela conforma um modo de ser, uma atitude de base que se insere em cada momento da vida cotidiana:

“Mesmo dentro das tarefas diárias da casa, trabalhando na fábrica, andando de carro, conversando com os amigos, vivendo a intimidade com a pessoa amada, a pessoa que criou espaço para a profundidade e para o espiritual está centrado, sereno e pervadido de paz. Irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus é amor que no dizer do poeta Dante move o céu, todas as estrelas e o nosso próprio coração”[30].

            A experiência da gratuidade do Mistério, de sua presença amorosa, confere um significado particular à atuação prática. Isto foi verificado de forma exemplar por Eckhart em sua reflexão sobre Marta e Maria. O seu carinho especial com Marta revela o sentido mais nobre dessa mística do cotidiano. Assinala a nobreza da obra no tempo, tão nobre quanto qualquer outra união com Deus: ela pode “dispor tão adequadamente quanto a coisa mais sublime que possa nos acontecer”[31]. A profundidade da ação de Marta explica-se por sua condição existencial: ela habita no que é essencial. As obras fluem, naturalmente, de um ser espiritual. Marta é alguém que tem um “fundo da alma bem exercitado”[32], algo particularmente caro a Eckhart, daí sua predileção por ela.           

            O viver a vida com a animação do Espírito foi também percebido com vitalidade na teologia latino-americana. Trata-se de uma das lições importantes captadas pela teologia da libertação a partir do início dos anos 1980: a necessidade de uma “libertação com espírito”. Em sua obra de espiritualidade, Beber no próprio poço, Gustavo Gutiérrez toca com delicadeza e propriedade nessa questão:

“Fomos compreendendo, também, que o encontro pleno e verdadeiro com o irmão exige que passemos pela experiência da gratuidade do amor de Deus. Assim, desprendidos de nós mesmos, chegamos ao outro libertos de toda tendência de impormos uma vontade que lhe seja alheia, respeitosos de sua própria personalidade, de suas necessidades e aspirações. Dado que o próximo é o caminho para chegarmos a Deus, a relação com Deus será a condição necessária para o encontro, para a verdadeira comunhão com o outro”[33].

Conclusão

            Todo esse itinerário da reflexão serviu para mostrar a importância fundamental da espiritualidade nos tempos atuais. O objetivo central foi evidenciar o papel pedagógico da espiritualidade, ou seja, sua dimensão iluminadora, edificadora e orientadora. A espiritualidade tem esse dom particular de encaminhar a vida do sujeito numa perspectiva distinta, favorecendo um novo olhar sobre o tempo, uma atenção particular ao cotidiano e um exercício de amor novidadeiro. Cabe também perguntar, ao final, sobre o lugar de uma espiritualidade da pedagogia. Essa é uma tarefa que se impõe, com urgência, aos educadores. A pedagogia tem também essa função maiêutica, de favorecer o nascimento e a afirmação de novos sujeitos, com uma perspectiva distinta de sentir o tempo e sobre ele atuar. Parafraseando o grande poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, há que ter “duas mãos e o sentimento do mundo”.

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(Artigo publicado no livro: FIGUEIRA, Eulálio & JUNQUEIRA, Sérgio. Teologia e Educação. Educar para a caridade e a solidariedade. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 32-45)




[1] Francisco Ferreira dos Santos AZEVEDO. Dicionário analógico da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010, p. 235.
[2] Madel T. LUZ. Novos saberes e praticas em saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 43.
[3] Leonardo BOFF. Espiritualidade, dimensão esquecida e necessária. In:
[4] Raimon PANIKKAR. Vita e parola. La mia opera. Milano: Jaca Book, 2010, p. 21.
[5] Raimon PANIKKAR. L´esperienza della vita. La mistica.  Milano: Jaca Book, 2004, p. 175. E também pp. 16, 28, 58-59 e 63. Ver ainda: Id. Mistica pienezza di vita. Milano: Jaca Book, 2008, pp. 11-16
[6] Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, pp. 144 e 204.
[7] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 129.
[8] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 33.
[9] Leonardo BOFF. A espiritualidade na construção da paz. In:
[10] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. O meio divino. Petrópolis: Vozes, 2010, pp. 45-46.
[11] Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2006, p. 297 (Sermão 54 a).
[12] Henri LE SAUX. Risveglio a sé risveglio a Dio. Sotto il Monte: Servitium, 1996, pp. 111-112; Id. Gñãnãnanda. Sotto il Monte: Servitium, 2009, pp. 122-123.
[13] JOÃO DA CRUZ. Noite escura. In: Marco LUCCHESI. Juan de la Cruz. Pequena antologia amorosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 43.
[14] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo, p. 134.
[15] Abraham Joshua HESCHEL. L´uomo non è solo. Milano: Mondadori, 2001, p. 29 e tb 45.
[16] Simone WEIL. A la espera de Dios. 3 ed. Madrid: Trotta, 2000, pp. 70-71.
[17] Simone WEIL-Joë Bousquet. Corrispondenza. Milano: SE SRL, 1994, p. 13.
[18] Pierre TEILHARD DE CHARDIN. O meio divino, p. 33. E tb p. 13.
[19] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo, p. 137.
[20] Keiji NISHITANI. La religione e il nulla. Roma: Città Nuova, 2004, p. 39.
[21] Ibidem, p. 40.
[22] Ibidem, p. 100.
[23] María ZAMBRANO. Algunos lugares de la poesía. Madrid: Trotta, 2007, p. 127.
[24] Id. I beati. Milano: SE SRL, 2010, p. 113; Id. Algunos lugares de la poesía, p. 129.
[25] Mohanda Karamchand GANDHI. Gandhi e o cristianismo. São Paulo: Paulus, 1996, pp. 131-132.
[26] Canções XXVI e XXVII: Marco LUCCHESI. Juan de la Cruz, p. 31.
[27] Canção XXVIII: Marco LUCCHESI. Juan de la Cruz, p. 33.
[28] Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico. Madrid: Trotta, 1999, p. 461.
[29] TERESA DE JESUS. Obras completas.  2 ed. São Paulo: Loyola, 1995, p. 503 (Castelo Interior – Quintas Moradas, Capítulo 3,11).
[30] Leonardo BOFF. Espiritualidade, dimensão esquecida e necessária. Art.cit.
[31] Mestre ECKHART. Sermões alemães 2. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2008, p. 131 (Sermão 86).
[32] Ver a respeito: Alis M. HAAS. Introduzione a Meister Eckhart. Fiesole, Nardine, 1997, pp. 101-105.
[33] Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 125. Ver também: Jon SOBRINO. Espiritualidade da libertação. São Paulo: Loyola, 1992, pp. 13-16.

Um comentário:

  1. Muito profundo tudo que está sendo anunciado nesta mensagem. Obrigada pela referência feita à espiritualidade.
    armasfalantes.wordpress.com
    www.historiasdaraimunda.com

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