terça-feira, 28 de junho de 2016

Fora da Misericórdia não há salvação

Fora da Misericórdia não há salvação
(Entrevista no IHU)

Há um murmúrio ensurdecedor que clama por socorro e que não é capaz de ser percebido pelos ouvidos, senão pela misericórdia. “Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro”, aponta Faustino Teixeira em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio”, complementa.

No que diz respeito à Igreja Católica, o entrevistado aponta que a principal inovação no pontificado de Francisco foi buscar um olhar a partir do evangelho. “Ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema e fazer dele a chave essencial de seu pontificado”, esclarece. “A igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído”, avalia.

1. Qual é a diferença entre o perdão e a misericórdia?
A chave de compreensão mais profunda para acessar o significado do perdão é a da Misericórdia. Em seu significado literal latino, a misericórdia envolve o movimento do coração (cor) em direção aos pobres (miseri). Estamos diante de um tema bíblico de grande profundidade, que veio sublinhado de forma tão rica pelo grande estudioso Jacques Dupont. Em sua obra sobre as bem-aventuranças acentuava essa predileção de Deus pelos pobres e miseráveis, independentemente de sua piedade. A misericórdia é um dom de Deus e centro nevrálgico do evangelho. Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro. Aquele que vem tocado pela nota da Misericórdia de Deus é capaz de perdoar. Num livro extremamente instigante sobre o tema do perdão (Pecar e perdoar, 2014), o historiador Leandro Karnal fala sobre a dificuldade humana de acolher esse valor. Saber perdoar é um dos desafios mais delicados que o ser humano encontra em seu caminho. As relações humanas são frágeis, e diante das crises ou ofensas, é como se um “fino vaso” se quebrasse, e por mais que as tentativas de unir as partes pudessem acontecer, tornando a ruptura quase imperceptível, um “simples toque”, de descuido ou desatenção, pode novamente revelar a fratura. Na bela passagem do evangelho de Lucas, no relato do filho pródigo (Lc 15,11-32), encontramos um pai verdadeiramente misericordioso, capaz de perdoar. O perdão vem precedido pelo arrependimento sincero. Esta parábola ilustra o que significa a “vitória do amor”, mas igualmente a delicada situação de todo ser humano, que é falho e esbanjador. Tem razão Karnal ao sublinhar que o perdão “é um gesto que reconhece a fraqueza, a falibilidade e o embaraço humano estrutural diante do Bem”. Ele sublinha que “perdoar não é esquecer nem dar livre passe para mais erros. É só o reconhecimento de que houve um erro e há a disposição para que não ocorra de novo. Perdoar é só reconhecer a humanidade do pecador, nunca é uma defesa do pecado”.

2.    Qual é a importância de ambos em nossos dias?
Falando a partir de minha perspectiva cristã, acredito que deixar-se animar pelo dom da Misericórdia é um dos imperativos mais essenciais do seguimento de Jesus. Vivemos num tempo marcado pelo “desgaste da compaixão”, um tempo de aquecimento egocêntrico e excludente. Assistimos quase indiferentes ao triste espetáculo da rejeição absurda do mundo da alteridade, como vem ocorrendo hoje na Europa com o rechaço dos imigrantes. O outro entra em cena fazendo “barulho” e atemorizando aqueles que se instalam rigidamente do âmbito das identidades cerradas. O apelo da Misericórdia e da Compaixão passam ao largo. Mas para os que buscam acionar a espiritualidade profunda, esse apelo remove novamente as entranhas, apontando para um horizonte distinto. No caso dos cristãos, como mostrou com acerto José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, deixar-se tocar pelo seu projeto, é deixar-se habitar por uma dimensão mais profunda e uma verdade mais essencial. É estar diante de uma convocação irrevogável: um “chamado a viver a existência a partir de sua raiz última, que é um Deus que só quer para seus filhos e filhas uma vida mais digna e feliz”. O mesmo apelo evangélico que suscita a misericórdia e compaixão, é o apelo que nos disponibiliza a perdoar. A parábola evangélica do filho pródigo nos aponta o caminho mais nobre: da metáfora de um Deus acolhedor que abre seus braços, sem levantar questionamentos, para acolher aquele que se distanciou, mas que soube reconhecer sua falha.

3.    Em que aspectos a misericórdia não é exclusivamente cristã?
Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio. Segundo Dalai Lama, a sensibilidade para com o sofrimento alheio é um traço peculiar do budismo, de uma compaixão que se amplia universalmente: “Ela atinge um ponto em que somos tão tocados pelo sofrimento alheio, mesmo em sua forma mais sutil, que se desenvolve em nós uma irresistível noção de responsabilidade por todos os semelhantes”. No budismo tibetano encontramos o ideal do bodhisattva, do buscador que tendo diante de si o nirvana, o repouso absoluto na luz, prefere permanecer atento no mundo, em contato com o sofrimento, entendendo que o repouso derradeiro só pode ser alcançado quando superado todo e qualquer resquício de dor. Na tradição judaica temos a bela ideia do Deus que se faz presença no meio do mundo: a singular imagem da shekinah, que indica a Presença de Deus no mundo, de um Deus que acolhe com carinho a ideia de partilhar as dores do mundo. Nesta tradição se fala em rahamîm, do Deus com entranhas de Misericórdia; e também de hesedh, entendida como graça misericordiosa de Deus. De forma similar, no islã, encontramos a ideia do Deus omni-misericordioso (rahman) e misericordioso (rahim), um tema recorrente em todas as suras do Corão, com exceção de uma. E justo para mostrar a proximidade de Deus do humano, do Deus que não é somente distância e mistério tremendo – tanzih -, mas também mais próximo do humano do que sua veia jugular: tashbih. Essa generosidade divina vem cantada por todos os místicos sufis, como no caso do místico afegão Rûmî:

“De toda parte chega o segredo de Deus
 eis que todos correm, desconcertados.
Dele, por quem todas as almas estão sedentas,
chega o grito do aguadeiro.

Todos bebem o leite da generosidade divina
e querem agora conhecer o seio de sua nutriz.
Apartados, anseiam por ver
O momento do encontro e da união (...)”.

4.    Como os luteranos veem a questão da misericórdia?
O tema da Misericórdia de Deus é nodal na tradição luterana. Foi mérito de Lutero ter reconhecido que a justiça de Deus não é uma justiça de punição, que castiga o pecador, mas um dom que justifica. Foi o caminho que encontrou para se libertar de uma dolorosa questão que o atormentava por longo tempo: “Como posso encontrar um Deus benigno?” Com base na reflexão bíblica e no caminho da tradição, em particular Agostinho, deu-se conta de que a justiça de Deus é uma justiça justificante, onde a pérola essencial é a Misericórdia. Ao comentar o Salmo 98, Lutero reconhece que o ser humano permanece com a marca do pecado, sendo incapaz de merecer a felicidade eterna, mas o Deus Misericordioso “se recusa a atentar nas faltas do pecador”, e oferece a justificação pela fé. Ou seja, Deus acolhe com alegria aqueles que o invocam com lágrimas sua justificação. O ser humano vem assim justificado pela bondade de Deus que perdoa gratuitamente. Como assinalou o cardeal Walter Kasper em sua obra sobre a Misericórdia (2012), “a relação entre justiça e misericórdia torna-se, assim, a questão central da teologia ocidental” a partir de então. O entendimento entre católicos e luteranos sobre esse tema só veio acontecer no século XX, e agora os dois segmentos podem juntos celebrar esse novo testemunho, de que a justiça de Deus é a sua Misericórdia.

5.    Qual é o lugar da misericórdia enquanto núcleo fundamental da essência divina e da revelação cristã?

Em sua rica obra sobre a Misericórdia, Walter Kasper assinalou que este tema veio “imperdoavelmente transcurado” na reflexão teológica cristã ao longo dos anos. Ele observa que “nos manuais dogmáticos tradicionais e mais recentes a misericórdia de Deus vem tratada só como uma das propriedades de Deus entre outras e, muitas vezes, de forma breve, após a reflexão sobre as outras propriedades de Deus, que derivam de sua essência metafísica”. Hoje se recupera a centralidade da Misericórdia no testemunho bíblico, sem a qual não se pode entender de forma alguma o significado mais profundo do Mistério de Deus. A Misericórdia “é o coração da mensagem bíblica, como superação, e não atenuação, da justiça”. Lemos no Salmo 86,15 que Deus se apresenta como “piedade e compaixão”. O mesmo ocorre no Segundo Testamento, onde vem chamado de “Pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (2 Cor 1,3) e Deus “rico em misericórdia” ( Ef 2,4). Merecem destaque muito especial as duas parábolas que apresentam a figura do Pai Misericordioso: a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do filho pródigo (Lc 15,11-32). Nesta última parábola, o tema vem descrito de forma exemplar. Como assinala José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, trata-se da parábola que melhor reflete a metáfora de Deus, enquanto Pai acolhedor. Ela traduz uma “verdadeira revolução”. É quando Jesus apresenta este “banquete esplêndido para todos, fala de música e danças, de homens perdidos que provocam a ternura de seu pai, de irmãos chamados a perdoar-se”. Essa sim é a verdadeira boa notícia de Deus.

6.    Qual é a novidade da abordagem da misericórdia no pontificado de Francisco?

Não se pode falar propriamente em surpresa no pontificado de Francisco. O que ele fez, desde o início, foi algo extremamente simples: retomar o ritmo do evangelho na vida da igreja. Esse foi o seu gesto novidadeiro, trazer para o centro a “eterna novidade do evangelho”, como bem expressou Walter Kasper. E ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema, e fazer dele a chave essencial de seu pontificado. Como indica Francisco na sua encíclica Evangelii gaudium, “Deus nunca se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir” (EG 3). O evangelho, como aponta Francisco, é esse convite permanente à alegria, ao acolhimento dessa dinâmica terna de nos reconhecermos “infinitamente amados”. Francisco segue aquela linda trilha de João XXIII, indicada no famoso discurso de abertura do Concílio Vaticano II, de que a igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído. No belo diálogo com Antonio Spadoro, o papa Francisco assinala que o anúncio evangelizador deve firmar-se no que é mais essencial, na retomada evangélica, ou seja, naquilo “que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús”.

7.    Em que medida as ações de Francisco como “pastor” expressam a sua visão de misericórdia?

Para responder com pertinência a tal questão, devo antes assinalar um ponto essencial no pontificado de papa Francisco: a centralidade concedida ao ágape. Como apontou Francisco na entrevista com Eugenio Scalfari, o ágape “é o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças”. É com essa chave do ágape, do amor, que devemos situar a visão de misericórdia vivenciada por Francisco. E busca realizar isso com muita radicalidade. Assinala que a missão dos missionários é “viver na fronteira e ser audazes”. Sua visão de misericórdia vem ocorrendo em vários campos de tensão, onde as feridas encontram-se ainda abertas, como na avaliação dos divorciados recasados, dos casais homossexuais e outras tantas situações complexas. A resposta do pontífice tem sido sempre no campo da acolhida, buscando “considerar a pessoa” e situar com honestidade e ternura diante do mistério que envolve o ser humano. E sempre levando em conta o contexto específico. Em síntese, a sua visão pastoral é diversa da tradicional. Para Francisco, a pastoral misericordiosa é aquela que “não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas” e imposições, mas concentrada naquilo que há de mais essencial no evangelho que é o amor.

8. O que a parábola do bom samaritano tem a dizer às pessoas em nosso tempo?

Sempre que me deparo com esta parábola, o que me vem à mente é a reflexão de Gustavo Gutiérrez no seu clássico livro sobre a teologia da libertação (1972). No capítulo que aborda o tema do encontro com Deus na história, ele fala do amor humano de Cristo, mediante o qual ele revela o amor do Pai. Como mostra Gutiérrez, “a caridade, amor de Deus aos homens, existe encarnada no amor humano”. E como exemplo, fala da parábola do bom samaritano. Indica que aquele que se acerca do ferido que está à beira do caminho não é o religioso, que age por obrigação de fé, mas aquele que vê suas entranhas revolvidas diante da dor do outro, aquele que “moveu-se de compaixão” (Lc 10,33). Também José Antonio Pagola, ao comentar essa parábola, assinala que para Jesus “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”. É uma parábola desconcertante, onde tudo vem invertido: o religioso passa ao largo, e quem se debruça sobre o outro é o odiado inimigo samaritano. Em verdade, como diz Pagola, “o reino de Deus se torna presente onde as pessoas atuam com misericórdia”. A grande mensagem deixada por essa parábola para nós hoje é o desafio essencial da compaixão para com os excluídos, marginalizados e sofridos. Ao iniciar realmente o seu pontificado entre os excluídos de Lampeduza, o papa Francisco deixou uma mensagem evidente para todos: não há como viver a vida evangélica fora do exercício da compaixão e da misericórdia.

9. Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Gostaria apenas de deixar duas belas indicações de leitura, que nos ajudam a situar de forma adequada diante deste tema tão urgente mas olvidado: José Antonio Pagola. Jesus. Aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010 (já na sétima edição); Walter Kasper. Misericordia. Concetto fondamentale del vangelo – chiave della vita Cristiana. 6 ed. Brescia: Queriniana, 2015. Este último livro deveria ganhar logo uma tradução brasileira.


(Publicado no IHU-Notícias de 26 de junho de 2016)

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Christian Duquoc: a sinfonia sempre adiada

Christian Duquoc: a sinfonia sempre adiada


Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


            Christian Duquoc (1926-2008) foi um dos mais criativos teólogos franceses do pós-concílio[1]. Autor de importantes obras teológicas que cobrem o vasto campo da cristologia, eclesiologia, ecumenismo e outras questões de fronteira. Como mostrou com acerto Claude Geffré, ele aborda com vigor as “questões mais difíceis da teologia cristã com um olhar novo, aquele do homem que habita a modernidade e a pós-modernidade”.  A criatividade de seu fazer teológico veio pontuada pelo toque da literatura, que foi uma das influências importantes em seu labor pessoal, juntamente com sua abertura à teologia da libertação latino-americana e os desafios do mundo ecumênico. Além de sua atuação como docente de teologia na Faculdade de Teologia de Lyon e na Universidade de Genebra, exerceu por longos anos um trabalho singular junto à revista Lumière et Vie, enquanto diretor e inspirador durante muitos anos, tendo ali publicado inúmeros artigos. Foi ainda co-diretor da seção de espiritualidade da revista Concilium, junto com Claude Geffré. Em seu trabalho na Concilium estabeleceu contato com os teólogos da libertação e em particular com Gustavo Gutiérrez. Foi um grande defensor da liberdade crítica do teólogo em sua permanente busca da inteligência da fé, daí o título da obra em sua homenagem, publicada pela editora Cerf em 1995, por ocasião de seus 70 anos[2].

            Ainda que o tema da teologia do pluralismo religioso não tenha sido objeto específico de suas pesquisas, duas de suas obras no âmbito da teologia dogmática exercem uma singular contribuição nesse campo: Dieu différent. Essai sur la symbolique trinitaire (Cerf, 1977) e L´unique Christ. La symphonie différée (Cerf, 2002)[3]. Não apenas sua abertura à questão nodal da pluralidade das experiências, como também das questões da fragmentariedade e da provisoriedade, fazem de Duquoc um teólogo que “habita a modernidade”. Daí ser reconhecido, na ocular de Geffré, como um teólogo existencial, cuja teologia poderia ser inserida na perspectiva narrativa, ou ainda na linha de uma “dogmática negativa sob o signo da docta ignorantia”, de Nicolau de Cusa[4].

            Um dos pilares essenciais da reflexão teológica de Duquoc envolvendo o tema das religiões é sua defesa da diversidade religiosa e da singularidade da diferença, ou seja, da  “dispersão benéfica do divino”. Em favor do reconhecimento positivo das religiões suscita mudanças importantes na eclesiologia clássica e na cristologia. A modificação na eclesiologia clássica vem num primeiro momento, após o reconhecimento de um novo estatuto aos que buscam o Mistério fora dos circuitos da Igreja católica. A reinterpretação cristológica vem em seguida. Ele assinala:  “A mudança de atitude com relação às outras religiões, a qual se foi firmando pouco a pouco a partir do Concílio Vaticano II, não provém da decisão ética ou estratégica apenas; implica reavaliação doutrinal do ponto crucial do cristianismo, a cristologia”[5]. Nada mais obtuso hoje em dia do que firmar-se num posicionamento que reivindica, sem mais, uma centralidade ao cristianismo, entendido como única religião verdadeira. Na visão de Duquoc, mesmo as posições inclusivistas mais tradicionais carecem de plausibilidade nos tempos atuais, sobretudo pelo fato de desconhecerem o valor intrínseco da “extraordinária diversidade religiosa”. Revelam-se, assim, problemáticas as posições que só reconhecem como legítimo nas outras religiões o que nelas se anuncia de cristianismo, ou seja, sua capacidade de abertura positiva àquilo que desconhecem[6].

            Na visão eclesiológica tradicional as diferenças eram pensadas sobretudo como desvios, e acompanhando a lógica desse posicionamento, junto com a convicção exclusivista vinha a reboque traços precisos de violência contra o outro. Duquoc levanta a hipótese de uma cumplicidade entre a convicção de possuir a verdade e a violência. Destaca na história da Igreja cristã eventos bem precisos onde tal vinculação ocorreu de forma trágica, como no caso da inquisição. Trata-se da violência que acompanha a “pretensão eclesiástica  de testemunhar a verdade na história e de ser responsável por sua inscrição social”[7]. A violência estaria, a seu ver, enraizada na pretensão institucional arrogante de encarnação da Verdade transcendente. Uma pretensão que vem reforçada pela grandeza do discurso doutrinal que serve, na prática, para amortecer a precariedade da instituição eclesial. 

            Um tal posicionamento revela-se para Duquoc como equivocado e injusto. Equivocado por enfatizar exclusivamente a “lógica da identidade”, com exclusão de toda diferença religiosa, entendida como “indigna de Deus”. E injusto por identificar a diferença como inválida ou inautêntica[8]. Na argumentação desse autor, o caminho não estaria na inserção das outras religiões na “órbita cristã”, mas na pontualização do valor das diferenças. O determinante para ele não é a identidade, mas a diferença.

            A questão fundamental levantada pelo autor não está na simples defesa da identidade, mas no modo preciso com que ela se relaciona com a positividade das diferenças: “O problema é, então, o seguinte: como compreender que o cristianismo possa deixar subsistir uma exterioridade positiva em sua relação com Deus em Jesus ? Ou em outras palavras: como o cristianismo pode pensar a própria identidade admitindo por sua vez a positividade das diferenças religiosas ?”[9]

            Em linha de proximidade à reflexão de teólogos como Geffré e Schillebeeckx, Duquoc sinaliza que a partir mesmo da perspectiva cristã revela-se possível defender o valor da diversidade religiosa. E por duas razões. Em primeiro lugar, pelo fato do cristianismo estar essencialmente “ligado a uma particularidade histórica ineliminável”. É dentro desta circunscrição que ele busca alcançar a sintonia com o mistério e a vida de Deus. No centro da busca cristã está a convicção da revelação de Deus em Jesus. Ao se revelar, porém, em Jesus, tendo em vista tal inscrição histórica, “Deus não absolutizou uma particularidade”, mas deixou aberta a dinâmica revelatória na história real, em virtude mesmo desta relatividade. É justamente a particularidade originária do cristianismo que exige a manutenção das diferenças. Não se dá com Jesus nenhuma clausura da história religiosa, que permanece aberta para as surpresas de Deus[10]. A diversidade religiosa vem defendida pelo autor com outro potente argumento. Trata-se da “simbólica trinitária”, derivada da prática de Jesus. O Deus de Jesus não traduz uma ideologia unitária, mas revela antes um Mistério que “integra as diferenças”. Trata-se de um Deus de unidade singular, marcada por atividade permanentemente criadora, que não abole as diferenças, mas que em verdade as suscita e acolhe[11]. Esses dois argumentos defendidos por Duquoc, a particularidade histórica de Jesus e a simbólica trinitária, são de fundamental importância para pensar diversamente a relação do cristianismo com as outras religiões.

            Seguindo a pista aberta por Duquoc, o que Jesus anuncia é um Deus de abertura, sempre disposto a acolher a riqueza das diferenças. Há sempre uma reserva escatológica de Deus sobre as religiões, que mantém acesa a dinâmica dos dons da alteridade. Existem, portanto, “diferenças na relação do homem com Deus que o cristianismo, dada a sua particularidade, não tematizou ou praticou e que não pode nem praticar nem tematizar. A sua particularidade não absolutizada, e a sua convicção de que Deus é ´Abertura`, obrigam-no a viver aquilo que não pode ser praticado ou tematizado, como riqueza exterior possível e não como negação”[12].

            A figura particular e concreta de Jesus também favorece o exercício de uma saudável relativização. É essa figura que “dá peso e limite à figura substitutiva de Deus, Cristo. Com efeito, ela se previne de substituir Cristo a Deus, mantendo sempre o afastamento necessário entre Cristo e Deus, entre Cristo e sua testemunha histórica, a Igreja: afastamento ou distância que dá crédito a uma forma e a um regime particulares do universal”[13]. Duquoc enfatiza a necessidade de um permanente retorno à figura do Nazareno, à memória ativa de suas palavras e gestos proféticos. Assinala o problemático risco de uma concentração exclusiva na pessoa quando desacompanhada da atenção à sua mensagem. Não se dá o devido testemunho de Jesus quando a atenção à sua mensagem fica deslocada para um segundo plano, em favor da proclamação verbal de seu senhorio. É a mensagem que “afasta qualquer possibilidade de identificação entre a Igreja e o Reino, Igreja e Cristo. A Escritura, na medida em que nos transmite a pregação de Jesus, diz, uma vez por todas, que a Igreja é particular e que ela não é o Reino”[14]. 

            O evento da ressurreição vem também resgatado por Duquoc para reforçar a tônica da universalidade da mensagem e da abertura da Boa-Nova. A ressurreição indica a presença de uma “ausência” providencial, pois mantém aceso o que é inesperado, reforçando a importância do diuturno trabalho em favor do testemunho evangélico. O ressuscitado previne também contra uma “integração prematura à instituição que o confessa”. Trata-se de um retraimento que suscita a providencial ação do Espírito. Como indica Duquoc, “a ausência do líder confirma a ausência de imposição ou de prescrição. Jesus, como o Cristo, não ordena aos chefes das comunidades que organizem o Reino de Deus em seu lugar, mas que sejam testemunhas da Boa-Nova. Eles não são substitutos de um líder. A ausência deste líder marca a preeminência da mensagem sobre a personalização”[15].

            Em defesa do pluralismo das escolhas existenciais e religiosas, Duquoc faz recurso a uma singular imagem tomada de Paul Ricoeur, que fala das religiões como “fragmentos”. Trata-se de uma imagem fecunda para trabalhar a delicada questão de uma convergência ou não entre as diversas tradições religiosas. A proposta aventada por Duquoc vai na linha da defesa de uma ausência de horizonte comum para as religiões, em razão da sinfonia inter-religiosa estar sempre adiada, pois a verdade última está  resguardada por um mistério indisponível. Como indica o autor, “cada fragmento, é verdade, sugere unidade potencial, mas seu conjunto, não tendo nenhum horizonte comum, não se impõe como unidade: talvez fique à espera de uma unidade para o momento indiscernível”[16]. Duquoc afasta-se das propostas teológicas que buscam resolver a questão da unidade das religiões, oculta ou futura, recorrendo às figuras do Cristo,  do Reino, de um horizonte de sabedoria ou de um humano autêntico[17]. Não descarta a priori a legitimidade de tais propostas, mas indica que elas estão “afetadas por uma falha”, pois pressupõem que as religiões estejam convergindo para um único ponto. O que ocorre, na verdade, é que nenhuma religião ocupa todo o espaço. Enquanto “fragmentos”, não remetem a uma totalidade. Todas estão envolvidas num concerto plural, sem que nenhuma ocupe o lugar de maestro.     

            Segundo Duquoc, essa desafiadora questão vem suavizada por determinados teólogos, entre os quais Rahner, ao imaginar que cada fragmento tende estruturalmente para uma unidade, numa afinação misteriosa com a sinfonia que irromperá no último dia. Teses como a do cristianismo anônimo de Rahner apontariam nessa direção. Ocorre que uma tal interpretação, na visão de Duquoc, “não é satisfatória porque não respeita a singularidade ou originalidade das diferentes tradições, desapropria o fragmento da separação que ele mantém para assegurar sua identidade”[18]. Em vez do respeito à particularidade dos fragmentos, leva-se ao extremo uma assimetria que acaba reforçando a qualidade única e universal do cristianismo. Trata-se de um procedimento que não explica “a extraordinária diversidade das tradições, conserva delas apenas sua capacidade de abrir-se positivamente àquilo que ignoram ou, talvez, até mesmo combatam. Os fragmentos não são suficientemente respeitados em sua identidade, já que não têm significação positiva a não ser mediante seu elo ainda obscuro com Cristo”[19].

            A questão vem resolvida por Duquoc em chave pneumatológica, ou seja, mediante o recurso da ação misteriosa do Espírito. Para ele, é o Espírito que atua na “maturação de cada fragmento, respeitando sua identidade própria”. Ele sopra onde quer, valorizando a dinamicidade das diferenças. Ele “permite livre curso aos movimentos diversos, já que se recusa a unificar as línguas, indícios primeiros da divisão necessária. Ele atua para que essa riqueza disseminada não acabe em violência unitária em consequência da pretensão, de uma das formas, de ser a única verdadeira humanidade”[20]. Trata-se do mesmo Espírito que atua na ausência do Ressuscitado, evitando a “integração prematura à instituição que o confessa”. O autor resiste a uma certa “obsesssão pela unidade” vigente em âmbito cristão, que acaba apagando ou restringindo o traço enigmático da assimetria[21].

            Em sua reflexão, Duquoc busca preservar a todo custo o estado de inacabamento que envolve a sinfonia interreligiosa. Não há como controlar conceitualmente o mistério dessa multiplicidade religiosa. Recorrendo a P.Tillich e a P.Ricoeur, sugere como pista a metáfora da profundidade. Ali estaria o segredo da verdade do pluralismo religioso. A seu ver, “as experiências espirituais das quais as religiões formam os suportes institucionais nomeiam sem definir esse dom recebido no acolhimento. A multiplicidade religiosa das designações ou das nominações do que surge na profundidade do presente sugere que os humanos não podem controlá-la conceitualmente; podem, entretanto, aproxima-la, praticamente, desde que renunciem a cegar-se”[22]. Nada mais problemático do que o “encarceramento na aparência”. As representações são sempre “movediças” diante do Inominado. Há que resguardar essa salutar distância, respeitando e honrando o seu mistério. O exemplo da tradição budista é aqui fundamental. Ela renunciou às figuras e formas para aceder à serenidade luminosa ou ao despertar.

            A vinculação a Jesus não apaga esse estado de inacabamento. Na verdade, Jesus mesmo, em sua pregação, convoca permanentemente ao mistério da alteridade. A figura do Cristo “orienta, efetivamente, para Outrem, cujo nome é indizível mesmo que a metáfora Pai como significante da origem seja amplamente explorada pelos evangelhos”. Resguarda-se uma distância entre a ação de Jesus e o horizonte assinalado. Uma distancia que preserva o traço fragmentário das distintas experiências espirituais. Assim sendo, “a singularidade de Jesus, o Cristo, não abole as outras singularidades, ela as aponta como fragmentos potenciais de um todo inacabado, e inacabável para nós”[23].

            Em defesa de um sadio “agnosticismo” com respeito a um possível horizonte comum para os movimentos espirituais e religiosos da história, Duquoc sugere manter acesa essa “errância inacabada”, animada pela presença vitalizadora do Espírito[24]. Sem deixar-se tomar pela pressa da unidade, prefere optar pelo “tempo da paciência de Deus”. No lugar de uma base mínima de acordo, fundada num horizonte comum, indica ser “mais desejável que cada fragmento aprofunde sua lógica sem obstruir seu intuito universal, vazio, por enquanto, de todo conteúdo capaz de unificar o diverso religioso”[25].

(O texto faz parte do tópico 2.4 do segundo capítulo do livro: Teologia e pluralismo religioso. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2012, p. 104-110)
           




[1] Nasceu em Nantes (França) em dezembro de 1926. Entrou para a Ordem Dominicana em 1948 e se ordenou presbítero em julho de 1953. Atuou como docente de teologia dogmática por 35 anos na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lyon (1957-1992) e também na Faculdade autônoma de teologia protestante em Genebra (1979-1991).
[2] M.DEMAISON. La liberté du théologien. Hommage à Christian Duquoc. Paris: Cerf, 1995.
[3] As citações serão aqui tomadas das traduções italiana e portuguesa: Un dio diverso. Saggio  sulla simbólica trinitaria. 2 ed. Brescia: Queriniana, 1985 e O único Cristo. A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008.
[4] C.GEFFRÉ. Le symphonie différée. In: Hommage au frère Christian Duquoc, p. 74 (2008):
[5] C.DUQUOC. O único Cristo, p. 15.
[6] Ibidem, p. 168; Id. Un dio diverso, p. 133.
[7] Id. “Credo la Chiesa”. Precarietà istituzionale e Regno di Dio. Brescia: Queriniana, 2001, pp. 26 e 146. Duquoc sinaliza que durante séculos Jesus Cristo mesmo veio invocado para justificar a violência interreligiosa, o que significa, na verdade, a afirmação de uma conduta que desonra o sentido da vida e ação de Jesus: C.DUQUOC. Du dialogue inter-religieux. Lumiere & Vie, n. 222, 1995, p. 72.
[8] C.DUQUOC. Un dio diverso, p. 134.
[9] Ibidem, p. 135.
[10] Ibidem, pp. 136-137.
[11] Ibidem, p. 137. Em mesma linha de reflexão, o teólogo Adolphe Gesche sublinha: “O Deus cristão não é indiferenciado, como Absoluto da percepção comum. Rico de uma unidade de relações, ele não é nem o Uno do monoteísmo estrito, de tipo plotiniano, nem o Muitos do politeísmo. Trata-se de um monoteísmo que integra o plural, a diferença. Um monoteísmo que integra, ousaríamos dizer, a inquietação, o rumor e a riqueza do plural”: A.GESCHÉ. A         destinação. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 171-172.
[12] C.DUQUOC. Un dio diverso, p. 138.
[13] Id. O cristianismo e a pretensão à universalidade. Concilium, v. 155, n. 5, 1980, p. 69.
[14] Ibidem, p. 69. É o mesmo Duquoc que diz, em outra obra, que o Reino de Deus é também o “tormento” da Igreja, na medida em que ele relativiza o instituído e o dinamiza, sem, porém, desconsiderar sua importância: Id. “Credo la Chiesa”, pp. 24-25. O teólogo salvadorenho, Jon Sobrino, em linha semelhante de reflexão, assinala que o medo do terceiro mundo é um “Cristo sem Reino”. Chama a atenção para o risco que representa a concentração no mediador (Jesus Cristo ressuscitado), quando desacompanhada da atenção e exercício da mediação (a realização da vontade, o Reino de Deus nas palavras de Jesus, as esperanças messiânicas): J.SOBRINO. Messias e messianismos. Reflexões a partir de El Salvador. Concilium, V. 245, n. 1, 1993, p. 134.
[15] C.DUQUOC. O cristianismo e a pretensão à universalidade, p. 71. Ver também: Id. O único Cristo, p. 168.
[16] C.DUQUOC. O único Cristo, p. 88.
[17] Duquoc distancia-se, em parte, com sua hipótese, das propostas defendidas por K.Rahner, J.Dupuis, C.Geffré e H.Küng. Com respeito à metáfora do Reino, para dar um exemplo, sinaliza que ela “suscita reservas”, sobretudo por gozar de menor poder de universalidade, ao mover-se num “espaço bem definido”: C.DUQUOC. O único Cristo, p. 89. Ver tb p. 88.
[18] C.DUQUOC. O único Cristo, p. 167.
[19] Ibidem, p. 168.
[20] Ibidem, p. 176 e tb p. 168.
[21] Ibidem, p. 166.
[22] Ibidem, p. 91.
[23] Ibidem, p. 93. E tb p. 92.
[24] Reagindo a Duquoc, Geffré pondera que sua posição teológica é menos cética em relação ao dominicano de Nantes. Sintoniza-se com a idéia da presença de um pluralismo religioso insuperável, mas indique que através do diálogo interreligioso começa a acontecer um aprendizado novo, de aproximação distinta à verdade que se almeja: C.GEFFRÉ. Le symphonie différée. In: Hommage au frère Christian Duquoc, p. 80.
[25] Ibidem, p. 170.