quinta-feira, 28 de maio de 2015

O campo religioso brasileiro no Censo de 2010

O campo religioso brasileiro no Censo de 2010

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Introdução

            Os primeiros números do Censo de 2010 sobre as religiões no Brasil foram publicados pelo IBGE no final de junho de 2012. Uma divulgação que ocorreu quase dois anos depois da aplicação dos questionários pelos recenseadores. Uma abordagem ampla sobre esse tema veio destacada no livro que organizei junto com Renata Menezes: Religiões em movimento. O Censo de 2010[1]. O que pretendo fazer aqui é retomar a análise dos dados que desenvolvi no artigo de abertura desse mencionado livro.

            No prefácio da obra, Religiões em Movimento, Pierre Sanchis confirma essa “reemergência” do sagrado na vida social e na experiência pessoal, que se dá “ao lado e articuladamente com a secularização”. Constata ainda o crescente interesse pelo fenômeno religioso no âmbito da academia. Dentre as linhas de mudança apontadas por ele, destacam-se a emergência do indivíduo e a crescente desinstitucionalização.[2]  O autor indica que o universo das experiências religiosas deixa hoje de ser regido por estruturas sólidas e reguladoras, tornando-se mais fluido, pontuado agora por relações menos totalizantes entre os fiéis e as suas instituições religiosas de pertença. Fica assim, cada vez mais difícil, a afirmação rígida das declarações de pertença religiosa, exigindo do analista uma reflexão mais afinada para dar conta dessa complexidade.

            Isso tem uma direta repercussão no debate sobre o lugar e a importância do censo para aferir com exatidão o campo religioso brasileiro. Analistas desta questão, como Renata Menezes e Clara Mafra, tratam da complexidade envolvida no debate sobre o uso dos dados de religião nos censos ocorridos no Brasil. Como argumenta Sanchis, o censo não é senão “um instantâneo sobre a situação que ele visa” e o quadro que ele indica “é dependente das categorias escolhidas”, exigindo atenção do analista para aventar suas hipóteses[3]. Há muita riqueza nessa “memória acumulada” do censo, envolvendo 130 anos de história, desde 1872[4]. Ele traduz “uma fotografia da autodeclaração religiosa em determinado contexto”[5], ajudando no “refinamento do estudo da religião”[6]. Mas trata-se de um instrumento que necessita de “exploração qualificada”, de pesquisas qualitativas que possam agregar outras variáveis para a análise empreendida.

            Com respeito aos dados sobre religião apresentados pelo Censo de 2010, diversas críticas foram tecidas por analistas, relacionadas à sua metodologia[7], à sua dificuldade para  captar a “dinâmica religiosa” do país[8], à sua imprecisão no afinamento do instrumental para compreender o campo protestante, bem como o fenômeno das múltiplas pertenças, dos fluxos e trânsitos religiosos ou os sincretismos menos visíveis[9]. Não há dúvida sobre a ajuda fornecida pelo censo para “visualizar as macrolinhas das transformações de uma década”, mas mostra-se limitado para “qualificar a mudança, ou entender suas nuances”. Só com a ajuda da abordagem qualitativa abre-se o acesso aos “processos mais sutis de transformações e combinações nas esferas dos valores e das crenças”[10].

            Apesar de seus limites, o Censo do IBGE apresenta dados que são muito importantes para sinalizar tendências no campo religioso brasileiro. Um dos traços que vem se delineando desde o Censo de 2010 é a progressiva pluralização e diversificação do campo em questão. Destaca-se também a intensificação do trânsito religioso, da provisoriedade da adesão e a dinâmica da privatização da prática religiosa. Em linha de continuidade com o censo anterior, verifica-se uma queda percentual católica, uma continuidade no crescimento evangélico e em ritmo menor, dos sem religião.

Católicos e evangélicos

            O catolicismo romano é ainda preponderante, mas perde a cada década sua centralidade, passando a se firmar como “religião da maioria dos brasileiros”, mas não mais a “religião dos brasileiros”. E pela primeira vez, no Censo de 2010, a queda percentual dos declarantes católicos refletiu-se em números absolutos, com o ritmo de crescimento menor dos católicos com respeito ao crescimento da população brasileira[11]. Sinalizam com razão, Ronaldo de Almeida e Rogério Barbosa, que essa nova situação do catolicismo foi um dos efeitos da pluralização em curso. Fragiliza-se o peso da tradição e vem reforçada a busca de alternativa individual no processo de afirmação da identidade religiosa[12].  

Mesmo assim, como mostrou Pierucci, apesar desse “declínio moderado, mas constante”, a presença católico-romana é ainda muito grande: “é católico que não acaba mais”[13]. O censo revela a presença de 123.280.172 milhões de declarantes católicos, ou seja, 64,63% da população total. A retração do catolicismo não reflete na diminuição do cristianismo, já que o crescimento dos evangélicos vem se acentuando a cada década. Mudanças são, de fato, visíveis no cenário religioso brasileiro, com sinais patentes de pluralização, mas o traço da hegemonia cristã permanece aceso: “O Brasil não está deixando de ser um país cristão, embora seja menos católico, protestante tradicional ou ´evangélico de missão` em 2010”[14]. Somando os católicos com os evangélicos chega-se a uma porcentagem de 86,8%, quase 90% de toda a população brasileira declarante. Há que sublinhar também o traço peculiar do catolicismo brasileiro, com suas malhas largas e seu perfil plural. Um catolicismo que acolhe e convive com a diversidade, “em que Deus pode ter muitos rostos”. Sublinha-se que “talvez seja o exemplo mais fiel de uma tradição religiosa – dentro e fora do cristianismo – de um sistema de sentido pluri-aberto, multi-cênico e em constante transformação”[15].

A continuidade do crescimento evangélico esteve também evidenciada nesse Censo de 2010. Na avaliação de Cecília Mariz e Paulo Gracino Jr, em artigo sobre o tema, ocorreu um significativo incremento na presença evangélica nas últimas décadas, com um salto de 6,6% em 1980 para 22,2% da população geral em 2010[16]. Nada menos do que 42.275.440 milhões de evangélicos para uma população brasileira de 190.755.799[17]. Esse crescimento não se deve aos evangélicos de missão, que permaneceram quase estacionados na última década, na faixa dos 4% de declaração de crença[18]. Deve-se, sobretudo, aos pentecostais, que respondem por 13,3% da população brasileira, ou seja, 25.370.484 milhões de adeptos[19]. Num divertido exercício, Leonildo Campos assinala que os evangélicos conquistaram na última década cerca de 4.408 novos fiéis por dia, e os de origem pentecostal, cerca de 2.124 por dia, sendo a Assembleia de Deus responsável por 1.067 adesões diárias[20]. 

É extraordinário esse crescimento pentecostal em termos absolutos, na faixa de 17 milhões de fiéis entre os anos de 1991 a 2010. Mas os analistas advertem que o crescimento evangélico, incluindo os pentecostais, não pode ser muito otimizado, já que na última década, de 2000 a 2010, esse crescimento foi menor do que o ocorrido na década anterior. Como mostrou Paulo Ayres, o crescimento dos evangélicos entre 1991 e 2000 foi de 120%, enquanto na última década, de 2000 a 2010, esse crescimento foi de aproximadamente 62%[21]. Vale registrar, no campo pentecostal, o decréscimo de fiéis – em números absolutos - ocorrido na última década em igrejas importantes como a Congregação Cristã do Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja do Evangelho Quadrangular. Incremento importante teve, por sua vez, a Assembleia de Deus, a maior do campo pentecostal – com 12,3 milhões de adeptos -, que registrou um aumento de 4 milhões de fiéis na última década[22].

A dificuldade de precisão analítica na apreensão correta dos dados sobre os evangélicos deve-se, em parte, ao significativo número de fiéis evangélicos classificados na categoria de “evangélicos não determinados”. Nada menos do que 9,2 milhões de pessoas, perfazendo 21,8% de todo o contingente evangélico, num patamar que envolve 5% de toda a população brasileira. Alguns analistas os identificam como “evangélicos genéricos” ou “evangélicos sem igreja”, indicando a afirmação de uma diversidade interna no campo evangélico, seja mediante caminhos diversificados de assunção da pertença evangélica, seja no exercício de crença fora das instituições, ou na múltipla pertença evangélica.  A inserção desse item classificatório no Censo de 2010 acaba dificultando a aferição analítica do real crescimento evangélico, seja dos evangélicos de missão ou dos evangélicos pentecostais[23].  Para o teólogo luterano, Walter Altmann, esse grande contingente de evangélicos não determinados “já alteraria substancialmente os números referentes a igrejas de origem pentecostal, mas extraordinariamente os referentes às igrejas de missão que muito possivelmente ficaram subcontabilizados”[24].

Sem-religião

Em artigo publicado em 2004, Antônio Flávio Pierucci buscava explicar o “declínio das religiões tradicionais no Censo de 2000”. Ao tratar do refluxo do catolicismo, justificava a situação com o clima instaurado nas sociedades pós-tradicionais, com a crise das filiações tradicionais:

“Nelas os indivíduos tendem a se desencaixar de seus antigos laços, por mais confortáveis que antes pudessem parecer. Desencadeia-se nelas um processo de desfiliação em que as pertenças sociais e culturais dos indivíduos, inclusive as religiosas, tornam-se opcionais e, mais que isso revisáveis, e os vínculos, quase só experimentais, de baixa consistência. Sofrem, fatalmente, com isso, claro, as religiões tradicionais” [25] .

            A crescente afirmação dos sem religião nos dois últimos censos pode encontrar uma pista de interpretação nessa abordagem de Pierucci. Os declarantes que se encaixam nessa categoria estão mesmo desencaixados de laços institucionais, situando-se, melhor, como peregrinos do sentido. São pessoas que, como bem expressou Sílvia Fernandes, estão “em redefinição de identidade”. Dentre os tipos predominantes de sem-religião encontram-se aqueles que se desvincularam de uma religião tradicional e afirmam sua crença com base em rearranjos pessoais; aqueles que passaram por diversos trânsitos mas que não se encontraram em nenhum deles; aqueles que mantêm uma espiritualidade leiga ou secular; aqueles que mantêm uma filiação fluida em razão da indisponibilidade de participação religiosa regular e aqueles que se definem como ateus ou agnósticos[26].

            No Censo de 2010, foram cerca de 15,3 milhões de pessoas classificadas nessa categoria de sem-religião, ou seja, 8% da população geral.[27] E curiosamente, o grupo dos agnósticos ou ateus não é o mais expressivo dentre os declarantes, envolvendo respectivamente 124,4 mil (0,07%) e 615 mil (0,32%) pessoas. Regina Novaes, em artigo esclarecedor, destacou nessa categoria uma presença jovem, sendo a idade média em torno de 26 anos. Daí ter privilegiado esse recorte para o desenvolvimento de seu trabalho. São jovens que “vivem sobretudo nas cidades” embora não estejam ausentes no campo, com boa representação no Sudeste. A autora identificou em suas pesquisas a presença, entre os jovens, de “histórias de conversões e de desconversões, de trânsitos e combinações no interior de suas famílias multireligiosas”. Em sua pertinente análise, Regina reconhece que na trajetória dos jovens entrevistados pelo IBGE existem, de fato, experiências de desfiliação ou mesmo desafeição religiosa, mas que é problemático generalizações apressadas, pois para muitos jovens as instituições religiosas não perdem o seu valor de locus de agregação, motivação ou afirmação de sentido. O que ocorre, na verdade, é a redefinição de vínculos ou pertencimentos, que se firmam de outros modos, e nem sempre “por dentro dos circuitos institucionais, mas também fora e à margem”. Nesse sentido, “declarar-se ´sem-religião` pode ser um ponto de partida, um interregno entre pertencimentos ou um ponto de chegada onde se realiza sínteses pessoais combinando elementos de diferentes tradições religiosas e esotéricas”[28].

Espíritas e afro-brasileiros

            As taxas de crescimento nominal, no Censo de 2010, também vigoraram para a declaração espírita. Houve na última década um acréscimo vigoroso de adeptos do espiritismo kardecista, que passaram de 1,3% em 2000 para 2,02% em 2010. São hoje cerca de 3,8 milhões de seguidores do espiritismo no Brasil. Como mostra Bernardo Lewgoy, “o espiritismo brasileiro passou, nas últimas décadas, por um processo de transformação, de minoria religiosa perseguida para alternativa religiosa legítima, que oferece explicação de sucessos, conforto para aflições e cura espiritual de infortúnios, a partir de uma doutrina que se pretende simultaneamente científica e religiosa”[29].

A presença espírita na sociedade brasileira não consegue ser captada satisfatoriamente pelos dados do censo, que traduzem simplesmente um olhar de “superfície”. Lewgoy chama a atenção para “as dinâmicas e estratégias de mobilidade e afiliação religiosa concreta dos atores sociais” que só com o aporte de pesquisas qualitativas, com bons recursos hermenêuticos, conseguem ser delineadas.[30] Ha que sublinhar, igualmente, um dado reiterado por analistas das ciências sociais a propósito da “impregnação espírita da sociedade brasileira”. Como mostrou Gilberto Velho, entre outros, o “transe, possessão e mediunidade são fenômenos religiosos recorrentes na sociedade brasileira”. E não só no espiritismo, mas também nas religiões afro, no pentecostalismo e outros grupos religiosos. Esse autor chega a sugerir que em torno da metade da população brasileira “participa diretamente de sistemas religiosos em que a crença nos espíritos e na sua periódica manifestação através dos indivíduos é característica fundamental”[31]. 

O sociólogo Cândido Procópio de Camargo, com base nos Censos de 1940 a 1960, sublinhava o papel singular do “gradiente Espiritismo-Umbanda” como “beneficiário” do processo de transição religiosa em curso no Brasil[32]. Reginaldo Prandi lembra essa previsão de Cândido Camargo, e mostra como ela, de fato, não se realizou. O que se destaca nos últimos Censos é um “declínio constante” do conjunto das religiões afro, sobretudo da umbanda, mantendo-se no reduzido patamar de 0,3% da população brasileira. Prandi reconhece que na última década houve uma “pequena reação da umbanda”, que passou de 397.431 adeptos, em 2000, para 407.331, em 2010. Mas adverte que “o fraco crescimento observado foi insuficiente para recuperar as perdas sofridas anteriormente”. Trata-se de uma perda que se revela progressiva, desde o Censo de 1991, quando a umbanda e o candomblé passaram a contar com estatísticas separadas. O mesmo não ocorre com o candomblé, que em 2000 contava com 139 mil adeptos e ganha um acréscimo de 28 mil adeptos em 2010, passando a 167 mil declarantes.[33]

Mas assim como ocorre no aferimento da declaração dos espíritas, também com respeito às religiões afro-brasileiras há dificuldades precisas de detectar a real presença da umbanda e do candomblé no Brasil. Como indica Prandi, o Censo “sempre ofereceu números subestimados dos seguidores das religiões afro-brasileiras, o que se deve às circunstâncias históricas nas quais essas religiões se constituíram no Brasil e a seu caráter sincrético daí decorrente”. Continua vigente a tendência de adeptos das religiões afro-brasileiras camuflarem sua identidade registrando uma declaração de crença distinta, seja na rubrica católica ou espírita[34].

Numa abordagem mais otimista sobre os rumos das religiões afro-brasileiras, as pesquisadoras Luciana Duccini e Miriam Rabelo reconhecem que apesar de sua reduzida expressão numérica, essas religiões “jogam um papel importante em debates sobre formação da sociedade brasileira e na política identitária de segmentos desta sociedade”[35]. Na análise dessas autoras, o que o Censo de 2010 revela é “uma recuperação no crescimento dessas religiões, que até então vinham perdendo adeptos”. Se houve um crescimento negativo entre os anos de 1991 e 2000, os dados do último Censo revelam um “incremento de 12,5%”, sobretudo em razão do crescimento do candomblé, que foi da ordem de 31,2%, bem como da umbanda, na ordem de 2,5%.[36]

Tradições indígenas e outras religiões

            Os dados indicados pelo Censo de 2010 com respeito às tradições indígenas no Brasil revelam um crescimento com respeito à década passada. Enquanto em 2000 os números indicavam 10.723 adeptos de tradições indígenas, no ano de 2010 esse número passou para 63.082. Uma importante observação feita pela pesquisadora Elizabeth Pissolato em artigo sobre o tema, diz respeito à inadequação da utilização da categoria “raça ou cor” para favorecer o auto-reconhecimento indígena para muitos dos adeptos que se autodeclararam indígenas, mesmo não reconhecendo tais critérios como indicativos dessa pertença. Isso denota um componente de “valorização cultural” implicado na inclusão da categoria “tradições indígenas” na pesquisa censitária a partir de 2000.[37] Dentre outros destaques de sua interpretação vale registrar a presença significativa de indígenas que se autodeclararam sem religião, em torno de 14,5%; bem como o crescimento daqueles que se autodeclaram evangélicos (25%). Quanto aos que se autodeclaram católicos (51%), que é uma porcentagem alta, houve um decréscimo na última década, já que em 2000 eram 58,9%. A autora sublinha como um traço importante o “aumento extraordinário” ocorrido na última década, e destacado no Censo, das declarações de indígenas em favor da “tradições indígenas” como religião, de 1,4% dos declarantes em 2000 para cerca de 5,3% em 2010.[38]

            Com base nos dados do Censo de 2010 não há como negar a força do referencial cristão na sociedade brasileira. Mas já se começa a perceber nele uma diversificação cada vez mais evidenciada. Junto com essa multiformidade interna ao campo cristão, verifica-se também  uma pluralização religiosa cada vez maior, com visibilização crescente. As outras religiões, que no Censo de 2000 concentravam 1,8% da declaração geral de crença, passam agora a responder por 2,7% dessa declaração[39]. Essas outras religiosidades podem ser abordadas em quatro frentes: religiões orientais, islamismo, judaísmo e circuito neo-esotérico.

            No livro As religiões em movimento, os números relativos às religiões orientais foram trabalhados por Frank Usarski[40]. Nessa classificação estão envolvidas a tradição budista, hinduísta, as novas religiões orientais (igreja messiânica mundial e outras novas religiões orientais) e as outras religiões orientais. Como assinala o autor, essas tradições religiosas nunca alcançaram um “patamar quantitativamente significante” no Brasil.[41] Permanecem como “minoria religiosa” no país, envolvendo a estreita parcela de 0,22% da população brasileira[42]. Dentre essas tradições, destaca-se o budismo, com 0,13% da população brasileira[43]. Segundo Usarski, “a adesão a uma das ´religiões orientais` é um fenômeno relativamente incomum entre brasileiros”, ainda que o cotidiano da nação seja penetrado por símbolos e técnicas culturais provenientes do Oriente. Esse envolvimento não vem, porém, traduzido em disponibilidade de adesão específica a determinada religião oriental. Com respeito ao Censo de 2000, houve um crescimento na adesão a uma das religiões orientais, expresso no aumento de 32.902 pessoas declarantes. Em termos de localização geográfica, estas tradições religiosas estão melhor representadas no Sudeste, envolvendo 78,5% dos budistas, 66,91% dos adeptos de uma das chamadas novas religiões orientais e 46,4% dos seguidores das outras religiões orientais. Na avaliação de Usarski, a sociedade brasileira, sensível à interlocução da alteridade, “oferece boas condições para a ´evolução` das ´religiões orientais`”, embora a afirmação dessa presença religiosa parece ainda improvável num futuro próximo, tendendo a manter sua condição de minoria religiosa.

            Quanto ao islamismo, que tem uma pujante irradiação mundial,  encontra-se no Brasil com presença mais modesta. Há, porém, que destacar o seu crescimento no país entre os dois últimos censos. No Censo de 2000, o número de declarantes muçulmanos foi de 18.592, passando para 35.167 no Censo de 2010. Trata-se de um crescimento considerável, mas que no quadro geral da população brasileira representa apenas 0,02%. A análise destes dados foi trabalhada por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto[44]. O autor sublinha que os dados apresentados pelo Censo não coincidem com os índices apresentados pelas instituições islâmicas presentes no Brasil ou suas lideranças, que indicam um número bem maior, estimado entre 1 a 3 milhões de adeptos. O que se observa, na verdade, indica o autor, é um real crescimento das instituições islâmicas no país, que chegam a quase 100 em 2012, com maior concentração nas regiões Sul e Sudeste. O islamismo no Brasil tem um traço bem urbano e um índice importante de presença masculina, com presença mais destacada em São Paulo (42% dos muçulmanos declarados) e Paraná (27%). Registra-se ainda outro dado importante, que é o aumento do número de conversões de brasileiros ao islã[45].

O tema do judaísmo foi desenvolvido por Monica Grin e Michel Gherman. Os dados apontados pelo Censo indicam a presença de 107 mil adeptos desta tradição religiosa[46], com um leve aumento com respeito a 2000, quando estavam representados por 101 mil seguidores. Os autores destacam a complexidade da identidade judaica, que não se esgota nos limites da religião, indicando que aqueles que se declaram judeus ao responderem ao censo não são “necessariamente ´praticantes do judaísmo`”. Sublinham que o traço característico do judaísmo no Brasil é a sua diversificação plural, abarcando desde o judaísmo ortodoxo, que vem aos poucos se consolidando, até comunidades mais inovadoras, influenciadas por práticas da New Age. Trata-se de um judaísmo “mais multifacetado em suas manifestações do que apenas uma religião monoteísta e de fronteiras tradicionalmente fechadas à conversão de não-judeus”[47].  A comunidade judaica no Brasil, que se destaca dentre as outras comunidades desta tradição nas américas do sul e central, concentra-se sobretudo nos grandes centros urbanos.

O Censo de 2010 sinalizou também a presença das tradições esotéricas no Brasil, com um registro minguado de 0,04 de declaração de crença, mantendo o mesmo patamar indicado no Censo de 2000, com um aumento reduzido: de 67 mil declarantes em 2000 para 74 mil em 2010. A abordagem desse circuito neo-esotérico foi desenvolvida por Leila Amaral[48]. A autora mostra com pertinência a tendência hoje em curso para o aumento de disponibilidade dos indivíduos para a “experimentação religiosa, para além de seus limites institucionais”. Como parte dessa cultura religiosa errante, inserem-se aqueles que emigraram das religiões institucionais, aqueles de religiosidade não determinada ou núcleos daqueles que foram classificados entre os sem religião. Na visão de Leila Amaral, o número reduzido de declarações nesse campo tem também a ver com o fato de que as pessoas que se inserem no circuito neo-esotérico não se definem ou se reconhecem nessa rubrica. Ou seja, a classificação escolhida pelo IBGE para situar esse “circuito” religioso não dá conta de captar com precisão o fenômeno desses “buscadores da nova era”. Em tentativa de explicação, a autora arrisca-se a dizer que os adeptos desse circuito, com base nas pesquisas acadêmicas e qualitativas, estariam “pulverizados por entre as diversas categorias identificadas no Censo de 2010”. [49] Para além de sua inserção no campo definido das tradições esotéricas, estariam também presentes entre os espiritualistas[50], os sem religião, e também entre aqueles situados nas tradições religiosas tradicionais, como as cristãs, e no catolicismo em particular. O traço peculiar dessa “cultura religiosa errante” é a experimentação e o trânsito. O que há nela de central “é a suspensão dos comprometimentos identitários que possam se apresentar como um obstáculo para a experimentação de sentido”.[51]

(Publicado na Revista Convergência (CRB), n. 483 – Julho/Agosto 2015, p. 533-544)



[1] Livro publicado pela editora Vozes, em 2013.
[2] Pierre Sanchis. Prefácio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 11-16.
[3] Ibidem, p. 16.
[4] Clara Mafra. O que os homens e as mulheres podem fazer com números que fazem coisas. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 40.
[5] Renata Menezes. Censo 2010, fotografia panorâmica da vida nacional. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, 2012, p. 42. Ver também: Id. Às margens do Censo de 2010: expectativas, repercussões, limites e usos dos dados de religião. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 329-346.
[6] Silvia Regina Alves Fernandes. Os números de católicos no Brasil – mobilidades, experimentação e propostas não redutivistas na análise do censo. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 112.
[7] Walter Altmann. Censo IBGE 2010 e religião. Horizonte, v. 10, n. 28, out./dez. 2012, p. 1126; Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 203-218.
[8] Renata Menezes. Censo 2010, fotografia panorâmica da vida nacional, p.  44. Ver também: Jose Ivo Folmann. Trânsito religioso e o “permanente peregrinar”. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, 2012, p. 14.
[9] Leonildo Silveira Campos. “Evangélicos de missão” em declínio no Brasil: exercícios de demografia religiosa à margem do Censo de 2010;  Bernardo Lewgoy. A contagem do rebanho e a magia dos números: notas sobre o espiritismo no Censo de 2010; Ronaldo de Almeida & Rogério Barbosa. Transmissão religiosa nos domicílios brasileiros. Todos esses artigos publicados no livro: Religiões em Movimento, e as referências citadas estão respectivamente nas p. 129-130; 194-195 e 311-312.
[10] Renata Menezes. Censo 2010, fotografia panorâmica da vida nacional, p. 42.
[11] Como mostrou Silvia Fernandes, os dados do IBGE indicam “que a população católica cresce a um ritmo sempre inferior ao crescimento populacional em cada região brasileira, ao contrário do conjunto de evangélicos que possui crescimento sempre acima da população”: Sílvia Regina Alves Fernandes. Os números de católicos no Brasil, p. 115. Ver também: Marcelo Camurça. O Brasil religioso que emerge do Censo 2010: consolidações, tendências e perplexidades. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 63-64.
[12] Ronaldo de Almeida & Rogério Barbosa. Transmissão religiosa nos domicílios brasileiros, p. 314-315.
[13] Antônio Flávio Pierucci. O crescimento da liberdade religiosa e o declínio da religião tradicional: a propósito do Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 58.  É o país, com a maior presença de católicos em âmbito mundial, seguido pelo México, Filipinas e Estados Unidos.
[14] Leonildo Silveira Campos. “Evangélico de missão” em declínio no Brasil: exercícios de demografia religiosa à margem do Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 155-156. Isso também já tinha sido apontado por Antônio Flávio Pierucci: Cadê nossa diversidade religiosa? In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. As religiões no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 50.
[15] Carlos Rodrigues Brandão. Catolicismo. Catolicismos? In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 92. Essa categoria “transformação” é chave para entender não só o campo católico, mas todo o campo religioso mais amplo. Pierre Sanchis acentuou a sua importância para entender e explicar o “advento, desta vez inegável, da pluralidade religiosa” no Brasil: Pierre Sanchis. Pluralismo, transformação, emergência do indivíduo e suas escolhas. IHU em formação. Ano VIII, n. 43, 2012, p. 37.
[16] Cecília Mariz. As igrejas penteconstais no Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 161. Em âmbito mundial, é o quarto país com a maior presença de evangélicos (protestantes) no mundo, depois dos Estados Unidos, Nigéria e China.
[17] Como indicam Mariz e Gracino Jr., levando-se em conta as últimas três décadas, o crescimento evangélico foi de aproximadamente 540%: de 7.886 milhões em 1980 para 42.275 milhões em 2010. Cf. As igrejas penteconstais..., p. 161.
[18] Houve, na verdade, um pequeno decréscimo dos evangélicos de missão na última década, que passaram de 4,1% para 4% dos declarantes, ou seja, uma queda de 7.686.827 milhões de adeptos.
[19] Marcelo Camurça enfatiza a vitalidade dos pentecostais, e em particular da Assembleia de Deus, no sentido de “acompanhar a capilaridade da geografia social e a mobilidade e o trânsito de populações para lugares mais recônditos e inalcançáveis do país, através de organismos ágeis, múltiplos e funcionais”: Marcelo Ayres Camurça. O Brasil religioso que emerge do Censo 2010: consolidações, tendências e perplexidades, p. 78-79.
[20] Leonildo Silveira Campos. “Evangélicos de missão” em declínio no Brasil, p. 147. No caso do catolicismo ocorreu o contrário, com uma sangria diária na ordem de 465 adeptos por dia na última década. Daí se dizer, com acerto, que o catolicismo é um “doador universal”, o “principal celeiro” da arregimentação de adeptos pelos outros credos ou pelos sem religião: Paula Montero & Ronaldo de Almeida. O campo religioso brasileiro no limiar do século. In: Henrique Rattner (Org.). Brasil no limiar do século XXI. São Paulo: Fapesp/Edusp, 2000, p. 330.
[21] Paulo Ayres Mattos. A relevante queda de crescimento evangélico revelado pelo Censo de 2010. Cadernos IHU em formação, Ano VIII, n. 43, 2002, p. 30.
[22] Mas mesmo com esse incremento, houve um recuo no peso percentual com respeito ao grupo evangélico, como assinalaram Mariz e Gracino Jr, “passando de 68,65% em 2000 para 60,01% no último censo”: As igrejas pentecostais no Censo de 2010, p. 168.
[23] Cecília Mariz & Paulo Gracino Jr. As igrejas pentecostais e o Censo de 2010, p. 163-165.  Segundo Ricardo Mariano, em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 30/06/2012, “o inchaço da categoria ´evangélica não determinada` reduziu artificialmente o crescimento pentecostal” (Em marcha, a transformação de demografia religiosa do país ).
[24] Walter Altmann. Censo IBGE 2010 e religião, p. 1128.
[25] Antônio Flávio Pierucci. “Bye bye, Brasil” – o declínio das religiões tradicionais no Censo de 2000. Estudos Avançados USP, v. 18, n. 52, setembro/dezembro 2004, p. 19.
[26] Dentre os analistas que buscaram classificar os sem-religião cf. Sílvia Fernandes. “A (re)construção da identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença. Cadernos IHU em formação, ano VIII, n. 43, 2012, p. 24. E também Denise dos Santos Rodrigues. Os sem religião nos censos brasileiros: sinal de uma crise do pertencimento institucional. Horizonte, v. 10, n. 28, out./dez. 2012, p. 1137.
[27] É curioso constatar o crescimento dos sem religião (também chamados de não afiliados) em âmbito mundial: eles abrangem cerca de 16,3% da população mundial, em torno de 1,1 bilhão de adeptos. Sua presença é mais forte na China, Japão e Estados Unidos.
[28] Regina Novaes. Jovens “sem religião”: sinais de outros tempos. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 175-190 (a citação está na p. 189).
[29] Bernardo Lewgoy. A contagem do rebanho e a magia dos números: notas sobre o espiritismo no Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 199.
[30] Ibidem, p. 200.
[31] Gilberto Velho. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 53-54. Ver também: Pierre Sanchis. O repto pentecostal à ´cultura católico-brasileira”. In: Alberto Antoniazzi et al. Nem anjos nem demônios. Interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 37; José Jorge de Carvalho. Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In: Maria Clara L. Bingemer (Org). O impacto da modernidade sobre a religião. São Paulo: Loyola, 1992, p. 146.
[32] Cândido Procópio F. de Camargo. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 24.
[33] Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras no Censo de 2010, p. 208.
[34] Ibidem, p. 204. Ver também: José Ivo Folmann. Trânsito religioso e o ´permanente peregrinar`. Cadernos IHU em formação, Ano VIII, n. 43, 2012, p. 14. E igualmente o singular livro de Denise Pini Rosalem da Fonseca & Sonia Maria Giacomini. Presença do Axé. Mapeando terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Pallas, 2013. As autores trazem dados bem interessantes a respeito da presença de “Casas de Axé” em nove regiões do Estado do Rio de Janeiro (847 casas pesquisadas).
[35] Luciana Duccini & Miriam C.M. Rabelo. As religiões afro-brasileiras no Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 219.
[36] Ibidem, p. 220.
[37] Elizabeth Pissolato. “Tradições indígenas” nos censos brasileiros: questões em torno do reconhecimento indígena e da relação entre indígena e religião. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 240.
[38] Ibidem, p. 242.
[39] IBGE. Censo demográfico 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. IBGE: 2012, p. 92. Há que sublinhar também os dados relativos à declaração de múltipla religiosidade no Censo de 2010, envolvendo 15.379 pessoas, ou seja, 0,01%. Já os dados relacionados às religiões não determinadas ou mal definidas, envolvem 628.219 pessoas, ou seja, 0,33%.
[40] Frank Usarski. As “religiões orientais” segundo o censo nacional de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 253-265.
[41] Ibidem, p. 253.
[42] De forma pormenorizada: budismo (243.966 – 0,13% ), hinduísmo (5.675 – 0,003%% ), igreja messiânica mundial (103.716 – 0,05%), outras novas religiões mundiais (52.235 – 0,03%) e outras religiões orientais (9.675 – 0,005% )
[43] Com respeito ao Censo de 2000, houve um acréscimo de 29.093 adeptos.
[44] Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Islã em números: os muçulmanos no Censo Demográfico de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 267-282.
[45] Conversões que tiveram um extraordinário crescimento após 2001, em sintonia com a maior visibilidade alcançada pelo islã na sociedade brasileira, em razão de diversos fatores, entre os quais a novela O Clone. E isso pode ser visto, em diferentes proporções, sobretudo nas comunidades muçulmanas do Sudeste. Cf. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Islã: religião e civilização. Uma abordagem antropológica. Aparecida: Santuário, 2010, p. 195-219.
[46] O que representa 0,06% da população geral.
[47] Monica Grinn & Michel Gherman. Judaísmo e o Censo de 2010. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 283-294 (a citação está na p. 284).
[48] Leila Amaral. Cultura religiosa errante. O que o Censo de 2010 pode nos dizer além dos dados. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. Religiões em movimento, p. 295-310.
[49] Ibidem, p. 303-304.
[50] Houve um crescimento na declaração de crença espiritualista na última década: de 39.840 declarantes em 2000 para 61.739 declarantes em 2010, e agora representam 0,03% da população geral.
[51] Leila Amaral. Cultura religiosa errante, p. 306.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O evangelho da alegria

O evangelho da alegria

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF


Ao avaliar os dois primeiros anos do pontificado de Francisco alguns traços se evidenciam para mim. Vejo, em primeiro lugar, que Francisco recuperou para a igreja católica a alegria do evangelho, depois de mais de três décadas de período sombreado, onde os aspectos doutrinais e disciplinares da vida eclesial marcaram uma centralidade muito mais decisiva. A ênfase agora recai sobre a alegria, como vemos estampado na Evangelii Gaudium (A alegria do evangelho – EG). O que há no evangelho é um permanente convite à alegria (EG 5). O que faz Francisco, e com muita felicidade, é abrir o evangelho e narrá-lo para a igreja, recuperando a fabulosa memória e lembrança que Jesus deixou para os seus. Tudo muito simples, singelo e delicado, como está estampado na narrativa neo-testamentária. Francisco nos evidencia, com seu toque particular, que o que Jesus trouxe para todos, e contagia com vigor, é saúde e vida, no sentido de apontar a regeneração da pessoa a partir de suas raízes fundamentais. Enfatiza também que a razão de ser da missão evangelizadora da igreja é manter aceso esse espírito da alegria, e de forma simples, profunda e irradiante: levar aos outros o hálito misericordioso de Deus. A pedagogia para isso, a do Bom Pastor, “que não procura julgar, mas amar” (EG 125).  Vejo, em segundo lugar, que Francisco nos aponta para um Deus que sempre vem, que é novidade permanente e que nos convida a romper com os muros da indiferença e a nos deixar habitar pelo mistério da alteridade. Indica com alegria a presença viva de um Deus misericordioso, que está presente por toda parte, sobretudo no clamor dos que mais sofrem. Em singular discurso proferido na explanada das mesquitas, em Jerusalém (26/05/2014), Francisco assinalou que “diante do mistério de Deus somos todos pobres, e sentimos o dever de estarmos sempre prontos para sair de nós mesmos, dóceis à chamada que nos dirige, abertos ao futuro que Ele que construir para nós”. E esse Deus, diz Francisco, não é um Deus que se restringe ao Deus do mundo católico, mas um Deus Mistério - de “sabedoria infinita e multiforme”-, que se revela de forma inusitada e novidadeira nos vários ritmos da experiência da criação e do humano. E Ainda insiste Francisco na ideia de que o caminho para acessar esse Deus-sempre-aí é o caminho do despojamento e da simplicidade. Em encontro com o episcopado brasileiro, em julho de 2013, assinalou que a lição recebida pela igreja é muito simples: “Não pode afastar-se da simplicidade, caso contrário, desaprende a linguagem do Mistério”. Vejo, em terceiro lugar, a riqueza de seu espírito dialogal, e a ênfase numa igreja desafiada pelo plural. Como diz com acerto, “a diversidade é bela” (EG 230) e a variedade é sempre um enriquecimento. Sua oposição ao proselitismo é recorrente e seu apelo à abertura e ao diálogo um traço sempre sublinhado. Como disse na entrevista a Eugenio Scalfari, em outubro de 2013, “o mundo é percorrido por estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem ao Bem”. A dimensão de profundo respeito ao outro, e ao universo de sua consciência acompanham Francisco em seu itinerário apostólico. Um dos traços mais ricos e audazes de seu pensamento relaciona-se com essa clara oposição a qualquer ingerência espiritual na vida pessoal do outro. Na visão de Eugenio Scalfari, que compartilho, essa insistência de Francisco na “obediência à própria consciência” talvez seja uma das “passagens mais corajosas” defendidas pelo papa. Ao lado desses três aspectos fundamentais do pontificado de Francisco, poderia também assinalar três desafios que permanecem acesos para os próximos anos. Continuar com coragem e altivez o precioso e  paciente trabalho em favor das mudanças e reformas na igreja, imprescindíveis para retomar a sua credibilidade no tempo atual.  Manter viva e calorosa a voz profética da igreja contra as injustiças e em favor da paz, seguindo sempre com atenção o caminho indicado pelo “Príncipe da Paz”, que transforma as espadas em relhas e as lanças em podadeiras (Is 2,4). E igualmente reforçar o cuidado para com o meio ambiente e a luta em favor de sua conservação. O papa Francisco nos alerta para um risco muito presente: a perda da “atitude do encanto, da contemplação, da escuta da criação”. Na linha aberta pelo livro do Gênesis, Francisco nos adverte que a razão que motivou Deus na dinâmica da criação, foi colocar o ser humano como o guardião do cultivo e conservação de tudo o que existe (Gn 2,15). Nada mais essencial que o respeito à natureza, e quando ela vem judiada, não perdoa. Gaia não é apenas uma “mãe” bondosa, mas sabe reagir quando atacada. Os efeitos devastadores de catástrofes naturais que circundam o nosso tempo, constituem desafios à responsabilidade humana. E Francisco lembra um adágio popular: “Deus perdoa sempre, nós às vezes, mas a natureza – a criação – nunca perdoa quando é maltratada”.  A questão ecológica coloca-se assim no centro da atenção do presente pontificado. Como lembrou Francisco, em discurso de outubro de 2014 no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, não pode haver terra, não pode haver trabalho, não pode haver teto, sem a imprescindível luta em favor da paz e da defesa do planeta. Como tarefa essencial de todos os “povos da terra”, adverte Francisco, a luta em defesa “destes dois dons preciosos: a paz e a natureza”.

(Publicado no IHU-Online n. 465 – Ano XV – 18/05/2015)



sexta-feira, 8 de maio de 2015

Eu creio em que?



Eu creio em que? Com base no que eu creio, eu espero que...



Faustino Teixeira



Sou das Minas Gerais, nascido entre as montanhas, numa família que marcou sua cadência pela presença do religioso. Sinos, velas, incenso e imagens faziam parte das histórias de minha infância e juventude. Foi nesse ambiente religioso que cresci, numa cidade que tinha o ritmo da tradição. Minha crença foi se tecendo embalada pelo exemplo familiar e pelas presenças que fui encontrando pelo caminho, algumas singulares. Recordo-me do exemplo bonito que encontrava entre mulheres e homens de fé, e isso causava um impacto muito vivo em minha trajetória. Ocorre que acabei fazendo a opção pelas ciências da religião e a teologia, num tempo que tinha as marcas da teologia da libertação. O que desde aquela época movia o meu interesse eram valores fundamentais, como a solidariedade, a fraternidade, a hospitalidade e a justiça. Via ao meu redor a presença de comunidades de fé que buscavam encarnar esses valores e tudo isso aquecia o meu coração.

Mesmo tentado a assumir uma caminhada de agente pastoral, resolvi, não solitariamente, seguir um rumo um pouco diferente, voltado para a pesquisa e o ensino universitário. Foram anos de formação teológica, iniciadas em Juiz de Fora, com continuidade no Rio de Janeiro e em Roma. Tenho que reconhecer que minha experiência de fé foi sempre muito pontuada pela dúvida e pela interrogação.  Daí quando vejo o papa Francisco reconhecer a importância dessa humildade na experiência da fé, sinto-me profundamente irmanado com ele. Dizia o papa na entrevista com o pe. Spadaro, em agosto de 2013, que ninguém pode encontrar Deus  “com certeza total”. Quando isso ocorre, adverte, “não está bem”. Assim aconteceu com os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, que sempre “deixaram espaço para a dúvida”.

Na minha trajetória de formação tinha dificuldades em acolher perspectivas teológicas ou doutrinais vigentes que entendiam a fé como um “depósito” enclausurado, rígido e intocável. Consegui “sobreviver” aos ventos romanos, gregorianos, sem me deixar abalar pelas inclinações dogmáticas. Com as artimanhas latino-americanas busquei seguir pistas teológicas que me ajudassem trilhar um caminho alternativo, em melhor sintonia com o horizonte de abertura que alimentava minhas expectativas. E confesso que dei muita sorte, pois encontrei tanto no Rio (PUC-RJ) como em Roma (Gregoriana) um espaço de acolhida e incentivo para a perspectiva que almejava. Os tempos eram propícios, apesar da conjuntura eclesiástica adversa. Mesmo estando inicialmente vinculado ao campo da eclesiologia, tema que envolveu minha tese doutoral, fui aos poucos me direcionando para outros temas, que favoreciam uma abertura mais destacada, como o tratado da graça. Daí um passo para a teologia das religiões, a área que marcou minha inserção profissional, já no final de minha presença no Rio e o início de minhas atividades no departamento de Ciência da Religião da UFJF. Muita água correu nesses vinte e cinco anos de atuação acadêmica em Juiz de Fora, num programa de pós-graduação que reúne profissionais de várias áreas do saber, como filosofia, teologia, antropologia, sociologia, letras e história. Tudo isso também contribuiu para provocar minha teologia e levantar novas questões. Mas claro que também ajudou, e muito, a presença de outros circuitos de reflexão que pude acompanhar ao longo dos anos.

Como me vejo hoje nesse âmbito da crença ? Uma questão que é complexa e difícil de expressar. Posso, porém, rabiscar algumas perspectivas. Digo com certa tranquilidade que nunca passei um período marcado por crise mais substantiva nesse campo. Talvez em razão mesma da forma como compreendo a fé, que a meu ver deve sempre abraçar o movimento de busca e redefinição. Assim vivo minha experiência, e com muita alegria. Em que acredito ? Um de meus guias é Guimarães Rosa, que por meio do jagunço Tartarana, no Grande Sertão: Veredas, expressa um pouco o que sinto: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza (...). As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas”. Continuo firme a acreditar na beleza do sentido, na dinâmica dos valores, na presença palpitante do Mistério, que a cada dia vejo acontecer e brilhar por todo canto, sem se restringir ao território restrito das religiões.  Nossa grande tarefa não consiste em responder ou resolver o enigma do mundo, mas simplesmente aprender a viver no tempo, adentrando-se nas suas entranhas. Em linda oração ao tempo, Caetano Veloso sublinha que ele “um dos deuses mais lindos”, sendo nossa tarefa “entrar em acordo” com ele. A eternidade não é um para além da história, mas a vivência do tempo na sua integralidade e profundidade. Aqui e agora se abre a possibilidade de nossa realização fundamental.

Como canta Gilberto Gil, “mistério sempre há de pintar por aí”. É ele o que existe de mais evidente. Em razão de minha substantiva inserção no campo do diálogo das religiões e da mística comparada, sinto-me leve e livre para poder lidar com essa presença gratuita do Mistério. E sobretudo estar muito alerta para captar o canto das coisas. Já dizia Simone Weil, “a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade”. Busco assumir isso como essencial em minha caminhada no momento atual: estar presente no tempo e manter aceso todos os sentidos para captar com respeito a pluralidade dos caminhos que levam ao Enigma maior. Daí insistir com tanta frequência no valor sagrado da diversidade, na abertura ao pluralismo de princípio, como um dom rico e gratuito. E acrescento ainda algo mais: o encontro com o diferente me faz perceber dimensões do Mistério que escapam à minha visada. O diálogo firma-se assim como essencial, na medida em que nos leva a descobrir facetas inusitadas e novidadeiras. Como dizia Jacques Dupuis, em razão do diálogo os cristãos encontram a linda oportunidade de descobrir, com maior profundidade, dimensões do mistério divino que escapam à ocular cristã. Nesse sentido, ser cristão hoje significa ser inte-religioso, mas também inter-relacional. E assim me coloco nesse momento atual: como alguém que se sente domiciliado na tradição cristã, com tranquilidade e liberdade para lidar com o mundo da diferença. Em linha de sintonia com o buscador jesuíta, Paolo dall´Oglio, é em razão de minha tranquilidade na fé em Jesus Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito, que vejo com alegria esse horizonte dialogal.

Torne-se para mim cada vez mais essencial viver essa abertura respeitando o sagrado destino espiritual de cada ser humano. Um destino que pode envolver a escolha religiosa, mas que pode igualmente ocorrer em caminhos não religiosos, mas pontuados pelo exercício de qualidades espirituais fundamentais. Dentre essas qualidades, o amor radical para com o próximo. Como lembrou o grande arquiteto da teologia católica, Karl Rahner, na experiência deste amor já acontece implicitamente “toda a relação salvífica do homem para com Deus e para com Cristo”. Dizia também a grande mística, Teresa de Ávila, em suas Moradas, que quanto mais avançamos no amor ao próximo, mais próximos estamos do amor de Deus. Nós, no cristianismo, temos a alegria de contar com uma Presença que fascina, que é Jesus de Nazaré: alguém que nos transmite uma força interior impressionante. Alguém que viveu o diálogo na sua radicalidade, e que contagia luz, saúde e esperança. Como sublinhou José Antonio Pagola, é um exemplo que não se restringe ao mundo dos cristãos, mas que constitui um “patrimônio da humanidade”.

Com base nessa minha experiência de fé,  espero que essa nova sensibilidade espiritual possa ecoar por todo canto, e que as pessoas sigam com alegria o caminho da profundidade, para além dos enrijecimentos identitários. Não vejo outra saída possível. Pelos meandros da profundidade é que acessamos a liberdade espiritual essencial para viver no tempo a possibilidade de uma acolhida generosa da diferença. E quanto mais aprofundamos nossa identidade, domiciliados com liberdade em nossa tradição, mais seremos capazes de celebrar a presença do Mistério em toda parte.

(Publicado no IHU-Online n. 462, Ano XV – 30/03/2015, p. 42-43)