sexta-feira, 8 de maio de 2015

Eu creio em que?



Eu creio em que? Com base no que eu creio, eu espero que...



Faustino Teixeira



Sou das Minas Gerais, nascido entre as montanhas, numa família que marcou sua cadência pela presença do religioso. Sinos, velas, incenso e imagens faziam parte das histórias de minha infância e juventude. Foi nesse ambiente religioso que cresci, numa cidade que tinha o ritmo da tradição. Minha crença foi se tecendo embalada pelo exemplo familiar e pelas presenças que fui encontrando pelo caminho, algumas singulares. Recordo-me do exemplo bonito que encontrava entre mulheres e homens de fé, e isso causava um impacto muito vivo em minha trajetória. Ocorre que acabei fazendo a opção pelas ciências da religião e a teologia, num tempo que tinha as marcas da teologia da libertação. O que desde aquela época movia o meu interesse eram valores fundamentais, como a solidariedade, a fraternidade, a hospitalidade e a justiça. Via ao meu redor a presença de comunidades de fé que buscavam encarnar esses valores e tudo isso aquecia o meu coração.

Mesmo tentado a assumir uma caminhada de agente pastoral, resolvi, não solitariamente, seguir um rumo um pouco diferente, voltado para a pesquisa e o ensino universitário. Foram anos de formação teológica, iniciadas em Juiz de Fora, com continuidade no Rio de Janeiro e em Roma. Tenho que reconhecer que minha experiência de fé foi sempre muito pontuada pela dúvida e pela interrogação.  Daí quando vejo o papa Francisco reconhecer a importância dessa humildade na experiência da fé, sinto-me profundamente irmanado com ele. Dizia o papa na entrevista com o pe. Spadaro, em agosto de 2013, que ninguém pode encontrar Deus  “com certeza total”. Quando isso ocorre, adverte, “não está bem”. Assim aconteceu com os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, que sempre “deixaram espaço para a dúvida”.

Na minha trajetória de formação tinha dificuldades em acolher perspectivas teológicas ou doutrinais vigentes que entendiam a fé como um “depósito” enclausurado, rígido e intocável. Consegui “sobreviver” aos ventos romanos, gregorianos, sem me deixar abalar pelas inclinações dogmáticas. Com as artimanhas latino-americanas busquei seguir pistas teológicas que me ajudassem trilhar um caminho alternativo, em melhor sintonia com o horizonte de abertura que alimentava minhas expectativas. E confesso que dei muita sorte, pois encontrei tanto no Rio (PUC-RJ) como em Roma (Gregoriana) um espaço de acolhida e incentivo para a perspectiva que almejava. Os tempos eram propícios, apesar da conjuntura eclesiástica adversa. Mesmo estando inicialmente vinculado ao campo da eclesiologia, tema que envolveu minha tese doutoral, fui aos poucos me direcionando para outros temas, que favoreciam uma abertura mais destacada, como o tratado da graça. Daí um passo para a teologia das religiões, a área que marcou minha inserção profissional, já no final de minha presença no Rio e o início de minhas atividades no departamento de Ciência da Religião da UFJF. Muita água correu nesses vinte e cinco anos de atuação acadêmica em Juiz de Fora, num programa de pós-graduação que reúne profissionais de várias áreas do saber, como filosofia, teologia, antropologia, sociologia, letras e história. Tudo isso também contribuiu para provocar minha teologia e levantar novas questões. Mas claro que também ajudou, e muito, a presença de outros circuitos de reflexão que pude acompanhar ao longo dos anos.

Como me vejo hoje nesse âmbito da crença ? Uma questão que é complexa e difícil de expressar. Posso, porém, rabiscar algumas perspectivas. Digo com certa tranquilidade que nunca passei um período marcado por crise mais substantiva nesse campo. Talvez em razão mesma da forma como compreendo a fé, que a meu ver deve sempre abraçar o movimento de busca e redefinição. Assim vivo minha experiência, e com muita alegria. Em que acredito ? Um de meus guias é Guimarães Rosa, que por meio do jagunço Tartarana, no Grande Sertão: Veredas, expressa um pouco o que sinto: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza (...). As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas”. Continuo firme a acreditar na beleza do sentido, na dinâmica dos valores, na presença palpitante do Mistério, que a cada dia vejo acontecer e brilhar por todo canto, sem se restringir ao território restrito das religiões.  Nossa grande tarefa não consiste em responder ou resolver o enigma do mundo, mas simplesmente aprender a viver no tempo, adentrando-se nas suas entranhas. Em linda oração ao tempo, Caetano Veloso sublinha que ele “um dos deuses mais lindos”, sendo nossa tarefa “entrar em acordo” com ele. A eternidade não é um para além da história, mas a vivência do tempo na sua integralidade e profundidade. Aqui e agora se abre a possibilidade de nossa realização fundamental.

Como canta Gilberto Gil, “mistério sempre há de pintar por aí”. É ele o que existe de mais evidente. Em razão de minha substantiva inserção no campo do diálogo das religiões e da mística comparada, sinto-me leve e livre para poder lidar com essa presença gratuita do Mistério. E sobretudo estar muito alerta para captar o canto das coisas. Já dizia Simone Weil, “a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade”. Busco assumir isso como essencial em minha caminhada no momento atual: estar presente no tempo e manter aceso todos os sentidos para captar com respeito a pluralidade dos caminhos que levam ao Enigma maior. Daí insistir com tanta frequência no valor sagrado da diversidade, na abertura ao pluralismo de princípio, como um dom rico e gratuito. E acrescento ainda algo mais: o encontro com o diferente me faz perceber dimensões do Mistério que escapam à minha visada. O diálogo firma-se assim como essencial, na medida em que nos leva a descobrir facetas inusitadas e novidadeiras. Como dizia Jacques Dupuis, em razão do diálogo os cristãos encontram a linda oportunidade de descobrir, com maior profundidade, dimensões do mistério divino que escapam à ocular cristã. Nesse sentido, ser cristão hoje significa ser inte-religioso, mas também inter-relacional. E assim me coloco nesse momento atual: como alguém que se sente domiciliado na tradição cristã, com tranquilidade e liberdade para lidar com o mundo da diferença. Em linha de sintonia com o buscador jesuíta, Paolo dall´Oglio, é em razão de minha tranquilidade na fé em Jesus Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito, que vejo com alegria esse horizonte dialogal.

Torne-se para mim cada vez mais essencial viver essa abertura respeitando o sagrado destino espiritual de cada ser humano. Um destino que pode envolver a escolha religiosa, mas que pode igualmente ocorrer em caminhos não religiosos, mas pontuados pelo exercício de qualidades espirituais fundamentais. Dentre essas qualidades, o amor radical para com o próximo. Como lembrou o grande arquiteto da teologia católica, Karl Rahner, na experiência deste amor já acontece implicitamente “toda a relação salvífica do homem para com Deus e para com Cristo”. Dizia também a grande mística, Teresa de Ávila, em suas Moradas, que quanto mais avançamos no amor ao próximo, mais próximos estamos do amor de Deus. Nós, no cristianismo, temos a alegria de contar com uma Presença que fascina, que é Jesus de Nazaré: alguém que nos transmite uma força interior impressionante. Alguém que viveu o diálogo na sua radicalidade, e que contagia luz, saúde e esperança. Como sublinhou José Antonio Pagola, é um exemplo que não se restringe ao mundo dos cristãos, mas que constitui um “patrimônio da humanidade”.

Com base nessa minha experiência de fé,  espero que essa nova sensibilidade espiritual possa ecoar por todo canto, e que as pessoas sigam com alegria o caminho da profundidade, para além dos enrijecimentos identitários. Não vejo outra saída possível. Pelos meandros da profundidade é que acessamos a liberdade espiritual essencial para viver no tempo a possibilidade de uma acolhida generosa da diferença. E quanto mais aprofundamos nossa identidade, domiciliados com liberdade em nossa tradição, mais seremos capazes de celebrar a presença do Mistério em toda parte.

(Publicado no IHU-Online n. 462, Ano XV – 30/03/2015, p. 42-43)




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