terça-feira, 15 de abril de 2025

Teilhard de Chardin, presença que permanece

 Teilhard de Chardin, presença que permanece

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Um dos pensadores e místicos mais singulares do século XX foi Teilhard de Chardin. Foi um dos espirituais que muito estudei ao longo da vida, sendo despertado por sua reflexão desde a mais tenra idade, em razão do influxo de meu pai, que era também apaixonado por ele. Meu pai tinha toda a obra de Teilhard e divulgava com os filhos. 

 

Fiz ainda, na adolescência, em Juiz de Fora, alguns cursos sobre Teilhard com a Irmã Aglaé, do Colégio Stella Matutina. Cursos que foram memoráveis. Depois veia a vida, novas trajetórias, mas Teilhard permaneceu... Na Universidade ele sempre estava presente nos meus cursos de mística. Pude orientar uma bela tese de doutorado sobre ele.

 

Teilhard nasceu no dia 01 de maio de 1881 e morreu na Páscoa de 1955, em New York. Estamos celebrando este ano os 70 anos de sua travessia. 

 

É um espiritual que permanece vivo na memória. O seu livro, "O meio divino", de 1926, foi concebido nas trincheiras da I Guerra Mundial. O livro veio completado por outra obra prima, que é  “ A Missa sobre o Mundo”. Teilhard nunca pôde publicar o livro “Meio Divino” em vida, em razão do clima fechado na conjuntura eclesiástica do período, que envolvia a própria Ordem dos Jesuítas. Apesar de todos os esforços empreendidos, nunca conseguiu autorização de seus superiores jesuítas para publicar o livro, que só saiu em 1957. 

 

Na singular introdução do livro “O meio divino”, Teilhard  sinaliza que o livro não foi feito para os que estão “bem” situados na igreja, mas para aqueles que estão em busca, que vivem sob a “angústia” ou a “fascinação”, ou seja, os que estão inquietos, seja dentro ou fora da igreja. Diz que o que se encontrará ali é “a eterna lição da igreja, apenas repetida por um homem que sente apaixonadamente com o seu tempo”, e que o que gostaria mesmo era de ajudar a todos o exercício de “ver a Deus em toda parte”. Uma obra que, em verdade, significa uma educação do olhar.

 

Teilhard dizia que “nada é profano para quem sabe ver”. Uma frase que me acompanhou por toda a vida. Para o místico jesuíta, o nosso ser se prolonga pelo mundo. O que precisamos compreender, lembra o jesuíta, é que o sensível está sempre a nos inundar com suas inusitadas surpresas. Daí a importância de saber ler a presença do Mistério seja no trabalho das algas ou na indústria das abelhas, e também em tudo o mais que existe. Tudo existe para ajudar no belo “acabamento do Mundo”. Em toda a obra do momento é ele, o Mistério Maior, que nos aguarda com alegria. Ele está na ponta da caneta, na picareta, no pincel, na agulha e no coração, como tão bem sublinha no seu livro espiritual. A seu ver, com razão, nenhum dos momentos de nossa ação no tempo estão subtraídos à adoração. O Mistério está sempre aí, envolvendo-nos com sua fragrância.

 

Para evitar controvérsias, o jesuíta foi enviado para bem longe, no deserto de Ordos, onde concebeu o livro “A missa sobre o mundo”. Permaneceu ali, como um “exilado”. Mesmo depois de morto, a controvérsia em torno de sua obra permaneceu, e foi “punido” pelo “Monitum” (advertência) do Santo Ofício, em 30 de junho de 1962. Pasmem!

 

No Ofertório da “Missa Sobre o Mundo”, Teilhard, começa dizendo:

 

“Visto que, uma vez mais, Senhor, agora não nas florestas do Aisne, mas nas estepes da Ásia, não tenho nem pão nem vinho nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até a pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso padre, sobre o altar da Terra inteira, o trabalho e a fadiga do Mundo”. E complementa: “O meu cálice e a minha patena são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, num intante, vão se elevar de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito”.

 

Teilhard foi um apaixonado pela MATÉRIA do mundo, antecipando em décadas a reflexão cristã de acolhida positiva do mundo. Em sua reflexão sobre "a potência espiritual da matéria" falou:

 

"Para compreender o Mundo, o saber não basta; é preciso ver, tocar, viver na presença, beber a existência quente no próprio seio da Realidade (...). Até o último instante dos séculos, a Matéria será jovem e exuberante, resplandecente e nova para quem quiser (...). Não, a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo".

 

Teilhard era alguém apaixonado pela "imensa simplicidade das coisas". Na "Missa sobre o Mundo" dizia que o que adorava era o "Deus paupável", o Deus que podia ser tocado "por meio de toda a superfície do Mundo da Matéria". Teilhard reveste-se da seiva do Mundo em sua experiência espiritual. Sua visão é clara:

 

"Subo para o Espírito que me sorri para além de toda conquista, vestido com o esplendor concreto do Universo". O essencial para ele era a Diafania de Deus no Universo.

 

Durante toda a sua vida sofreu tremenda pressão conservadora da igreja católica. Dizia para uma amiga filósofa, Leontine Santa, em carta de janeiro de 2027: "Espero que pouco a pouco nos vamos aproximando do tempo em que os homens serão capazes de não amar ´nada senão a Terra`. Tudo o resto é demasiado pequeno para nós". Complementa ainda que é a própria Terra que nos enviará para o amor de algo maior.

 

Comenta com a amiga, Leontine, que passou por grave crise de "antieclesiasticismo" no inverno de 1929, e foi salvo pela força do Espírito. Comenta com ela que o olhar não pode estar unicamente voltado para a igreja, como se ela fosse "a única coisa no mundo" habitada pelo Espírito. Via isso como um grande equívoco. Lamentava ainda com ela que as igrejinhas não faziam senão nos esconder a beleza da Terra.

 

A espiritualidade de Teilhard estava também prenhe da presença feminina. Em sua obra, "O coração da Matéria", sublinha que o elemento feminino é o que garante o traço unitivo do Universo. Indica que sua visão interior não seria a mesma sem essa presença feminina iluminadora: sem ela faltaria uma "atmosfera essencial" para o seu trabalho. Entendia que nada poderia ser bem desenvolvido sem o influxo feminino. Era ele que poderia garantir a riqueza do olhar.

 

Sua amizade com Lucile Swan foi das coisas mais lindas, e isto está expresso na obra: Pierre Teilhard de Chardin & Lucile Swan. Correspondence. Bruxelles: Lessius, 2009. Vale muito a pena ler. Uma preciosa obra sobre sua vida e trabalho: Patrice Boudignon. Pierre Teilhard de Chardin. Sa viu, son oeuvre, sa réflexion. Paris: Cerf, 2008.

sábado, 12 de abril de 2025

Alguns pontos sobre o Labo

 Alguns pontos de reflexão sobre o Labô

 

Começo minhas ponderações falando um pouco sobre o que é o Labô – Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo. Trata-se, como vem apresentado em sua página oficial, de “um espaço de ensino e pesquisa, subordinado à Secretaria Executiva da Fundação São Paulo com a finalidade de gerar conhecimento público e institucional, atuando como instância produtora de reflexão e pesquisa livre, em diálogo com a sociedade”. Não está vinculado, propriamente à PUC-SP, mas à  Fundação São Paulo, da Arquidiocese paulista. O Laboratório está, portanto, diretamente vinculado à mantenedora da PUC-SP, a Fundação São Paulo, que tem na sua frende o cardeal Odilo Pedro Scherer. Depois de sair do Departamento de Teologia da PUC-SP, Pondé veio convidado pela Fundação São Paulo a fazer um trabalho particular junto à Fundação, e assim veio fundado o Labô, que não tem a ver nem com o Departamento de Teologia da PUC, nem com o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, do qual Pondé fez parte durante anos. O Labô vem dirigido por Pondé, tendo como assistente acadêmica Andréa Kogan, que é doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP.

 

O Labô funciona com Grupos de Pesquisa, cujos colaboradores atuam de forma gratuita e militante. Não há recursos disponíveis para os responsáveis ou atuantes nos Grupos de Pesquisa. Estão atuantes em 2025, 17 grupos de pesquisa: Ateísmo e Apologética; Ética da Tecnologia; A crise do amadurecimento na contemporaneidade; A experiência mística e conhecimento; A palavra é imagem: arte sacra contemporânea – história e religião; Comportamento Político, Cultura do Consumo; Sociedade e Tendências; Morte e Pós-Morte; Diálogos da Diáspora – racismo e antissemitismo; Judaísmo e Filosofia da Religião; Jung e a Filosofia da Religião; Núcleo de Filosofia Medieval; Núcleo de Filosofia Política; O Vazio Existencial na contemporaneidade e as possibilidade de realizar sentido; Teologia Cristã e Religião Contemporânea; Cinema, Filosofia e Religião.

 

O Labô realiza dois seminários ao ano, quando os vários Grupos de Pesquisa se encontram para tratar de uma programação prévia, sempre coordenada por Luiz Felipe Pondé. Em 2025 começou também um Estágio de Pós-Doutorado, que tem como objetivo contribuir para o conhecimento dentro da universidade e no mercado de trabalho, promover estudos de alto nível, consolidar as linhas de pesquisa do Laboratório e reforçar os grupos de pesquisa existentes. É o que aparece na descrição oferecida pelo Labô. A iniciativa já começa em 2025 com 8 alunos aprovados.

 

Eu tenho um conhecimento razoável do Labô, tendo atuado por diversas vezes ali, a convite de amigos que fazem parte do Laboratório, incluindo Luiz Felipe Pondé. Entendo como sério e responsável o trabalho que vem sendo ali realizado desde o início. Vejo como principal valor, o trabalho gratuito que ali vem exercido por tantos colaboradores. Trata-se de missão louvável. Porém, nos últimos tempos, venho me preocupando com certos caminhos tomados pelo Labô, não por todos os membros dos vários núcleos de pesquisa, mas por algumas pessoas em particular, que estão vinculadas à coordenação geral. Isso vem me preocupando muito, pois tenho grandes amigos e amigas que atuam ali, com muita generosidade, empenho e profissionalismo. 

 

O motivo maior de minha preocupação, que venho percebendo por alguns sinais em curso, é a crescente sintonia do Labô com reflexões que defendem a atual política de Israel com respeito aos Palestinos. Vejo isto em posicionamentos bem precisos de membros do Labô, a começar pelo seu diretor, Luiz Felipe Pondé. Em artigos de jornais e entrevistas que ele vem dando na imprensa nacional, a posição pró-Israel firma-se com muita clareza. 

 

Fiquei particularmente impressionado com o artigo escrito por Pondé na FSP de 16 de março de 2025. Ali ele já mostrou ao que veio nesse tipo de posicionamento crítico à Palestina. No artigo, Pondé expressa sua preocupação com a “infiltração” de ideias problemáticas, de agentes da esquerda, que influenciam e envenenam os jovens nas universidades e redes sociais. Para ele, tudo se resume, em síntese, em práticas antissemitas. Aliás, a expressão anti-semita passou a ser lugar comum nas críticas a todos os que defendemos a Palestina e reagimos ao massacre que vem ocorrendo na Faixa de Gaza. Para Pondé, não, o que ocorre é uma justa reação de Israel ao que aconteceu em outubro de 2023, que ele identifica como um planejado pogrom. 

 

E agora, no dia 09 de abril, mais uma entrevista, a meu ver, muito infeliz de Pondé, onde ele ataca a esquerda brasileira e, ao final, aborda o tema do antissemitismo. Começa com a sua tradicional ironia, dizendo que Jesus era judeu. Complemento, porém, que Jesus era, sim, judeu, mas de uma abertura à diferença que dificilmente encontramos hoje no circuito sionista judeu, do qual Pondé partilha. 

 

Nessa entrevista, Pondé praticamente justifica a atuação desastrosa de Netanyahu, e diz que ele não é assim um desastre total, pois tem conseguido “impor uma derrota política ao Hamas”. Aliás, esse fenômeno “Hamas” é o motivo mais forte das iracúndias reações de Pondé em torno da Palestina. A seu ver, estamos numa situação precisa onde não há saída possível, a não ser matar ou morrer. Isto ele tem dito com recorrência. Trata-se de uma guerra, e a solução tem que ser militar e não dialógica. É o que ele vem defendendo por todo canto. E que pensa diferente, como eu, vem logo enquadrado no perfil de antis”semita.

 

Mas minha proposta ao Labô, na medida em que esse Laboratório define-se como um espaço voltado para a geração de conhecimento público, atuando como “instância produtora de reflexão e pesquisa livre, em diálogo com a sociedade”, é a de abrir concretamente um espaço dentre os grupos de pesquisa para um núcleo específico de reflexão sobre a temática da Palestina. Isso iria harmonizar a perspectiva em curso, onde o tema do “racismo e antissemitismo” ocupar um lugar de grande destaque.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O amor na teia da perplexidade: em torno a um poema de Drummond

 O amor na teia da perplexidade: em torno a um poema de Drummond

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Tivemos um lindo encontro ao final da aula sobre os poemas de Drummond, no Instituto Humanitas da Unisinos (IHU). Isso ocorreu em 09 de abril de 2025. Na primeira aula de cada mês, para coroar o dia, um grupo pequeno se encontra para abordar alguma questão refletida. Nesse dia, estavam 7 pessoas: eu, Paula, Alexia, Ana Maria, Mercia, Amauride e Vânia. Esse é um grupo que vem acompanhando os cursos que dou no IHU desde o primeiro semestre de 2021, depois da pandemia. Os encontros são de muita intimidade e de riqueza inaudita.

Na aula do dia, que era a terceira do curso, iniciado em 12 de março de 2025, tinha como livro de referência “O brejo das almas” (1934). Esse livro de Drummond, ao contrário de outros, não teve assim grande projeção, nem foi objeto de muitos estudos teórico. Isto talvez se deva ao fato dele ter saído entre dois livros de muito peso: Alguma poesia (1930) e Sentimento do mundo (1940). Alguns o consideram o “primo pobre” de Drummond, uma vez que se situou entre dois grandes marcos, mas isso não é absolutamente verdade. O livro é de beleza singular e traz em seu bojo reflexões que são fundamentais. 

No encontro com o pequeno grupo, a reflexão não ficou presa ao livro Brejo das almas, mas partiu, sim, de uma indagação presente num dos poemas do livro: 

“O amor no escuro, não, no claro,

é sempre triste, meu filho, Carlos,

mas não diga nada a ninguém,

ninguém sabe nem saberá

Não se mate”[1].

 

No debate, Alexia, lembrou uma passagem maravilhosa do livro de Nizami (sec XII), da tradição sufi, que aborda a dolorosa história de Layla & Majnum, que viveram uma experiência de amor falida, em razão de muitos impedimentos. Os dois passaram a vida separados. Quando, depois de muito tempo, ocorre a oportunidade do encontro entre ambos, há uma interdição que vem do mundo interior de Layla. No momento propício, que podia suscitar o enlace, ocorre algo inesperado. Majnun, que aguarda Layla sob uma palmeira, ardendo de amor e desejo, espera o sinal positivo do velho, que ficou de indicar para Layla o momento oportuno. Por sua vez, Layla não deu conta de avançar rumo ao amado querido. Ela ficou paralisada, e seu corpo inteiro tremia, como se ela estivesse profundamente enferma. Ao tentar conduzi-la com o braço em direção ao amado, ela recuou, com cortesia, e disse:

 

“Nobre senhor, nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumida completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”[2].

 

Um texto que escrevi, ao preparar a aula, serviu de ponto de arranque para a reflexão. Ele se inicia com um poema de Drummond, Mineração do outro, publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em julho de 1959, e  apareceu no livro Lição de coisas (1962). 

 

Mineração do Outro

 

“Os cabelos ocultam a verdade.

Como saber, como gerir um corpo

alheio?

Os dias consumidos em sua lavra

significam o mesmo que estar morto.

 

Não o decifras, não, ao peito oferto,

mostruário de fomes enredadas,

ávidas de agressão, dormindo em concha.

Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,

e cada abraço tece além do braço

a teia de problemas que existir

na pele do existente vai gravando.

 

Viver-não, viver-sem, como viver

sem conviver, na praça de convites?

Onde avanço, me dou, e o que é sugado

ao mim de mim, em ecos se desmembra;

nem resta mais que indício,

pelos ares lavados,

do que era amor e, dor agora, é vício.

 

O corpo em si, mistério: o nu, cortina

de outro corpo, jamais apreendido,

assim como a palavra esconde outra

voz, prima e vera, ausente de sentido.

Amor é compromisso

com algo mais terrível do que amor?

— pergunta o amante curvo à noite cega,

e nada lhe responde, ante a magia:

arder a salamandra em chama fria”[3].

Sem dúvida, estamos diante de um poema complexo e de riqueza singular. Um grau de dificuldade que nos faz lembrar outro poema enigmático de Drummond, chamado Áporo, que foi desvendado por Davi Arrigucci Jr no livro Coração Partido[4]. Para Arrigucci, esse poema de Drummond é um dos que mais se destaca em sua obra, tratando o tema do amor. Ele revela “um momento a uma só vez ímpar e irradiante, pela alta complexidade, pela firmeza com que enfrenta o difícil, pela luz que lança nos demais que tratam do mesmo tema”[5].

O poema de Drummond é um instrumento fértil e seguro para a compreensão do enigma do outro, ajudando-nos a mergulhar no oceano inatingível da alteridade. A poeta e romancista, Lia Luft, expressou com clareza esse traço em reflexão no livro, Mar de dentro. Na sua visão, que concordo, há um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”[6]. A poesia de Drummond toca em pontos de sintonia com Lia Luft:

“Os cabelos ocultam a verdade.

Como saber, como gerir um corpo

alheio?”

 

“Não o decifras, não, ao peito oferto,

mostruário de fomes enredadas,

ávidas de agressão, dormindo em concha.”

 

“e cada abraço tece além do braço

a teia de problemas que existir

na pele do existente vai gravando”

 

“O corpo em si, mistério: o nu, cortina

de outro corpo, jamais apreendido”

 

Temos aqui vários indícios de uma “incomunicabilidade” com o universo daquele que está diante de nós. O outro é sempre “alheio”, estranho, estrangeiro. Lembrei-me aqui de uma reflexão profunda de Alain Montandon no “Livro da Hospitalidade”. Ele aborda o tema da “hospitalidade”[7]. Sublinha que o hóspede é sempre um estranho. A complexa relação com o outro que nos visita começa já no início: “naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se abrir para um rosto desconhecido”[8]. Diz o filósofo que o “território do outro” vem sempre resguardado por uma “sensibilidade escrupulosa”. Sem dúvida: devemos “bater devagar”, com cuidado e fineza na porta do outro. A hospitalidade jamais quebra a distância, que permanece acesa.

O trabalho do amor é complexo, sutil, delicado, desafiador. Ele pressupõe uma disponibilidade de avançar no universo do desconhecido. Há, como lembra Arrigucci, o empenho de “escavar”. Escavar de forma semelhante ao inseto no poema “Áporo” (1945)[9], que “cava, sem alarme, perfurando a terra”, mas que se defronta com um “país bloqueado”, ou com o “enlace da noite”.

Adentrando-me no poema de Drummond, Mineração do Outro, vejo que há, de fato um mistério indecifrável na experiência do "peito oferto". Quando nos "ofertamos" ao outro, sabemos, desde o início, que ele jamais será decifrado; esse outro que vem animado por um complexo "mostruário de fomes enredadas". E... curioso, suas fomes estão "ávidas de agressão", e ele dorme "em concha". E apesar de todos os abraços, de nosso movimento que convida, permanece acesa a "a teia de problemas", que não é qualquer oferta que consegue solucionar. 

Em sua lúcida reflexão, Arrigucci relaciona o trabalho do amor ao empenho de escavar, visando uma decifração possível. Ele vê no poema de Drummond, o anseio por penetrar “através de barreiras da terra, do corpo e da própria linguagem até o limite do indizível, quando, reproduzindo  a situação dramática do amante diante da noite, seu discurso se converte em imagem”[10]. Como aponta Arrigucci, na visão de Drummond o amor não é algo cordato, mas contrariado. O poeta quer, antes de tudo, inquirir a qualquer custo para debruçar-se no enigma. E ele recorre à imagem que também está no poema Áporo, que fala em cavar e perfurar a terra, visando desvendar o labirinto:

 “O amor é então aqui mineral; é físico, mas também metafísico, pois corresponde ao desejo de ir além da matéria em que penetra, na busca vã da alteridade em que mais se fragmenta e aniquila do que se reúne ao que já de antemão era perdido”[11].

Daí o recurso à bela imagem da mineração do outro, que invoca o “movimento inquiridor e sofrido a caminho do objeto fugidio que o atrai e impede de passar, mantendo-o cativo do mágico fascínio que se enreda e perde o próprio pensamento”[12]

Nesse itinerário em direção ao outro, ocorre também um trabalho do mundo interior. Não há dúvida. Somos trabalhados em nossa interioridade nessa difícil viagem rumo ao mistério do outro. Daí a imagem feliz da "mineração". Meditar sobre o amor, como mostra Arriguci, é também meditar sobre "a história da relação humana dos seres que o vivem"[13]. É árduo o trabalho de ir além do que está aí, presente na matéria:

"O esforço de minerar até o derradeiro obstáculo que se antepõe a quem ama e quer saber pode chegar a diversas consequências: a inacessível transcendência da mineração por mais que se aprofunde; o dilaceramento patético que vivem os amantes; a inevitabilidade terrível  que acompanha seu percurso com o risco do trágico; o caráter incognoscível extremo daquilo mesmo que nos atrai com o fascínio do inexplicável"[14].

Toda essa reflexão é de uma profundidade singular, que merece de nossa parte um meditar demorado. Não há como responder a isso, mas fazer como aconselha Rilke em suas "Cartas a um jovem poeta". Há que ruminar, primeiro, as perguntas, em profundidade, de forma que elas possam viver em nós. E talvez, quem sabe, mais distante, conseguiremos encontrar uma resposta plausível[15]. Trata-se de algo que envolve um caminho da vida interior, que requer paciência.

Rilke diz ainda que o amor é, radicalmente, "solidão"[16]. E ele tem razão. Diz ele que o amor não é antes de tudo o entregar-se, o confundir-se com outra pessoa. Isso não é possível. O amor é, melhor, uma ocasião bonita para o amadurecimento pessoal. Os amantes, como todos em geral, estão inseridos num mundo que é limitado, frágil, vulnerável. Trata-se, como diz Rilke na segunda elegia de Duíno, de um universo de contingência:

"E aqueles que são belos, oh, quem os deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto e se dissipa. Tal o orvalho da manhã e o calor do alimento, o que é nosso flutua e desaparece"[17].

Rilke desvela, com pasma lucidez os traços da temporalidade “que corrói todos os  esforços humanos de realização e plenitude ontológicas”[18]. Nada escapa à dinâmica do tempo, nem os impulsos do coração, os estases e a beleza. A verdade mais dura é a de que "nós passamos", e as árvores permanecem.

Pobres amantes, diz Rilke. São marcados por uma sede insaciável, são movidos pelo movimento irrefreado do gozo, que, também é contingente. Nessa busca do ápice do prazer, lembra Rilke, chega um momento em que um dos dois diz: basta! Os amantes não dão conta de um gozo abissal, e retornam à realidade cotidiana. É impossível estar diante do mundo aberto e transparente. Não há como se "dissolver" no mundo do outro. Os místicos mesmo tentaram isso, sem sucesso. Mesmo os mais ousados, como os sufis, perceberam a impossibilidade do passo unitivo. Quando o amante pousa seu lábio no outro, buscando o vinho mais límpido, acaba retornando,  sem sucesso, pois não é possível reter uma "duração pura". Nenhum amplexo é capaz de oferecer eternidade[19].



[1] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962. Edição crítica. São Paulo: Cosac & Naify, 2012, p. 188 (Não se mate).

[2] Nizami. Layla & Majnun. A clássica história de amor da literatura persa. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 162.

[3] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962, p. 832.

[4] Davi Arrigucci Jr. Coração partido. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[5] Ibidem, p. 112.

[6] Lya Luft. Mar de dentro. 3 ed. São Paulo: ARX, 2002, p. 30.

[7] Na raiz mesma da palavra hospitalidade encontra-se outra: hostilidade.

[8] Alain Montandon (Ed.) O livro da hospitalidade. A acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac, 2011, p. 32 (Prefácio de Montandon).

[9] Carlos Drummond de Andrade. Poesia 1930-1962, p. 356 (A rosa do povo)

[10] Davi Arrigucci Jr. Coração partido, p. 115.

[11] Ibidem, p. 138.

[12] Ibidem, p. 140.

[13] Ibidem, p. 142.

[14] Ibidem, p. 144.

[15] Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 38.

[16] Ibidem, p. 55.

[17] Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno . 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 21.

[18] Ibidem, p. 98 (comentário de Dora Ferreira da Silva).

[19] Ibidem, p. 23.