segunda-feira, 2 de maio de 2022

A canção de Siruiz - Grande Sertão: Veredas

 A canção de Siruiz, Grande Sertão: Veredas

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Que coisa bonita, ouvir e ver neste final de domingo, início de maio de 2022, mais um trecho da terceira aula de José Miguel Wisnik no Ateliê Paulista. Vou seguindo o curso com atraso, pois estou concentrado na redação de um artigo sobre o livro de Clarice Lispector: Perto do Coração Selvagem. Deparo-me, com alegria, no trecho do livro em que Riobaldo, na fazenda de seu padrinho Selorico Mendes, presencia a chegada do grande jagunço Joca Ramiro[1]. Ele vinha com seu bando, e junto com ele o Hermógenes e Ricardão. 

 

Vinham de longe, “navegando na sela a noite inteira”. Estavam cansados. Riobaldo pôde perceber aquela presença dos seis jagunços que chegavam, “todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas”. Ele admirou “tantas armas”.  Só de ouvir a voz de Joca Ramiro, ele parou “na maior suspensão”. Percebeu que ele era “um homem bonito, caprichado em tudo”. Viu também que ele “era homem gentil”. 

 

Foi um “grande fato”, numa noite bonita, onde se “escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinhos de estrela, o deduzir dos grilos”. Riobaldo comenta com o interlocutor da cidade aquele fato grandioso, que não lhe escapa mais da memória. Pede desculpa a ele por “estar retrasando em tantas minudências”. 

 

Mas o certo é que aquilo ficou estancado em seu ser. No meio de tantas graças da cavalaria, Riobaldo ouviu então uma canção bonita, uma “toada estranha”, cantada por Siruiz:

 

Urubu é vila alta,

mais idosa do sertão:

padroeira, minha vida –

vim de lá, volto mais não...

               Vim de lá, volto mais não?...

 

Corro os dias nesses verdes

meu boi maço baetão:

burití – água azulada

carnalba – sal do chão...

 

Remanso de rio largo,

viola da solidão:

quando vou p´ra dar batalha,

convido meu coração...

 

Riobaldo lembra de sua mãe ao ouvir a canção, e sinaliza em outro momento do livro que gostaria de ouvir a canção em sua voz.  De forma singela,  Antonio Cândido aplicou às palavras da canção a melodia que ele ouviu de sua mãe, uma melodia anônima, dessas imemoriais, que passam entre as pessoas como recados. Há uma gravação de Antonio Candido cantando essa melodia, que agora vem regravada de forma expressiva e bela por José Miguel Wisnik com sua filha Mariana. Coisa mais linda, não há. 

 

Em sua aula, Wisnik aproveita a ocasião para pontuar o “estatuto psicanalítico” exercido pela voz da mãe. É uma voz primordial, aquela primeira voz que a criança tem contato depois que “sofre” o embate da passagem para a nova forma de vida. A voz da mãe, diz Wisnik, não tem propriamente significado, mas sentido. Tudo o que ela canta é para a criança embalo e acolhida, afeto e ternura, aconchego. 

 

A voz da mãe é na verdade música. Wisnik reforça essa ideia e sublinha que há mesmo quem diga “que toda música que a gente canta a vida inteira não é senão a ressonância da voz da mãe”. Há um trecho de GSV onde se diz que certas coisas faltam nome. Só a canção é capaz de dizer aquilo que falta nome.

 

Percebe-se uma relação entre a canção de Siruiz e a “memória involuntária” que cobre a narrativa de Riobaldo na passagem citada. A canção traz à tona essa memória, numa “lembrança que inclui tudo”. Temos, de um lado os fatos, maravilhosamente narrados por Rosa. Somos levados ao contexto onde se desenrola a canção, e sentimos até o “cheiro” dos cavalos, daqueles “cavalos teúdos”. É como se estivéssemos ali, sentindo de perto o animal que “lambe o freio e mastiga”, que “bate com o pé”; do toque das orelhas, do “couro que raspa em couro”. Tudo emerge na memória como um emaranhado de sentimentos e lembranças. E temos, de outro lado, o significado que tais fatos provocam ao longo da travessia de Riobaldo, acrescentando tantos outros dados, sobretudo afetivos, que servem para compor aquilo que ali ocorreu, mas que ganha um lugar afetivo poderoso na memória.

 

Riobaldo volta-se para o interlocutor tentando passar o clima que viveu naquela noite-madrugada. Ele diz: “Até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade”. É nesse contexto que se dá a canção de Siruiz, como “uma canção enigmática”. Que fica guardada no mais profundo da memória de Riobaldo, como lembra Wisnik: “É como se tudo estivesse contido ali, encapsulado afetivamente naquelas palavras, naquele canto, naquela melodia”. Tudo como um “recipiente da memória afetiva”. 

 

Todos os motivos do livro estão contidos ali, de forma enigmaticamente cifrada. Riobaldo diz que que guarda essa canção no giro de sua memória, e junto com ela, a lembrança daquela especial madrugada “dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d´alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz”,



[1]Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. 22 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Os trechos citados encontram-se nas páginas: 88-93.

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