Tocados pelo ritmo da imanência
Faustino Teixeira
IHU/Paz e Bem
Há uma profunda semelhança entre Clarice Lispector e Hilda Hilst, e das duas com a tradição Zen. Elas focam suas reflexões numa "mística" da imanência. O tempo presente, o instante, a corporalidade do agora, a desconfiança de uma teleologia do além. Estão concentradas, com todas suas energias, no aquém.
No romance Perto do Coração Selvagem, Clarice identifica-se com a personagem Joana, para quem a vida era o que "corria em seu corpo", sem maiores desejos ou esperanças.[1]Também em Água viva, Clarice insiste na centralidade do instante. Dizia ali que o instante era o seu "tema da vida". Reiterava: "Só me comprometo com vida que nasça com o tempo e nele cresça: só no tempo há espaço para mim"[2].
Igualmente Hilda Hilst, em lindo poema do livro: Poemas malditos, gozosos e devotos:
“É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa”.[3]
Esse é um tema muito singular, e que tem provocado minha atenção viva nos últimos tempos, e que tem também um toque zen budista fundamental. A questão foi trabalhada por Byung-Chul Han no livro: Filosofia do zen budismo[4].
Em certo momento, o autor cita o mestre zen Dung-Chan, que teria querido "estraçalhar ´Deus` ´até a morte`com seu ´sabre`"[5]. Aquela imagem recorrente: "Se encontrares Buda, mate-o". O mestre Dôgen debruça-se sobre esse pensamento do mestre Nangaku Daie (677-744) em seu clássico Zazenshin[6].
Matar o Buda significa “cancelar a concepção de Buda”, e deixar aberto o caminho. Não pode ocorrer realização, mas sempre processo. Numa antiga história zen da China antiga, que trata do boi e do pastor, o comentário da figura 8 – que mostra o círculo vazio -, indica-se que devemos passar rapidamente pelo lugar onde vive Buda, visando o lugar onde não vive nenhum Buda[7].
Temos assim uma concepção desprovida de transcendência, e nada de sagrado. Toda a perspectiva se volta para a imanência e para o espírito do cotidiano. O “coração do cotidiano é o caminho”, diz a clássica passagem de Wou-men-kouan[8]. É uma radical virada para a imanência, para o aqui, para o meu corpo, convidado a fazer o repertório do despojamento radical. Os grandes patriarcas do zen viviam simplesmente a realidade cotidiana, “comendo arroz e bebendo chá”. Nada de extraordinário ou transcendente. Uma vez perguntado pelo imperador Wu, a respeito do santo ensinamento do budismo, Budidharma respondeu com simplicidade: “Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade”[9].
Para o zen budista, "o centro está em toda parte", "o inteiro universo floresce em uma única flor de ameixa". Não pode haver fuga de mundo, pois "não há nenhum outro mundo". A eternidade é aqui.
E se pensarmos de forma ainda mais radical, há uma rotunda ruptura com a tradição cartesiana, pois no zen se diz: "Nem penso, nem existo". Nada existe além do mundo fenomênico, concentrado ali naquela pequena flor nazuna à beira da velha sebe ao longo da estrada campesina, como indicou Basho[10]. Em cada pétala da flor, vislumbramos "o mais profundo mistério da vida ou do ser" (Suzuki). Segundo Dôgen, “limitar-se ao fato imediato que está diante dos olhos e não buscar mais a fundo nas coisas não constitui o estudo do budismo”[11]. E necessário estar ali presente, com atenção plena, e avançar no mundo do ver.
A centralidade visada é a do "não pensamento". Como sublinha Byung-Chul Han, há uma suspensão da pergunta pelo fundamento. O foco é no presente, sem nostalgia... É o que também diz Pessoa, no heterônomo Alberto Caeiro: "O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso"[12].
É a tônica do "viver simplesmente", sublinhada pelo grande mestre Lin Chi[13]. O caminho que se abre, tem terrenal, é o caminho do ver em profundidade: "A montanha é simplesmente montanha e o rio é simplesmente rio", sem qualquer simbolização. É a radical nudez da coisa em si, da bambuidade do bambu. Ou como diz Pessoa: "As estrelas não são senão estrelas, nem as flores senão flores"[14].
[1]Clarice Lispector. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2019, p. 73.
[2]Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019, p. 28.
[3]Hilda Hilst. Poemas malditos, gozosos e devotos. 2 ed. São Paulo: Editora Globo, 2005, p. 31
[4]Byung-Chul Han. Filosofia do zen budismo. Petrópolis: Vozes, 2019.
[5]Ibidem, p. 21.
[6]Aldo Tollini. Pratica e illuminazione nello Shôbôgenzô. Roma: Ubaldini, 2001, p. 69.
[7]Vittorio Tamaro (a cura di). Vuoto/pieno. Il bue e il suo pastore: una storia zen dall´antica Cina. Roma-Bari, Laterza, 2013, p. 18.
[8]Passe sans porte. Wou-men-kouan. Paris: 1968, p. 79 (regra 19).
[9]Francis Dojun Cook. Come allevare un bue. La pratica dello Zen como è insegnata nello Shôbôgenzô del Maestro Dôgen. Roma: Ubaldini, 1981, p. 59.
[10]D.T. Suzuki; Erich From; Richard de Martino. Zen budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 10 (Conferências sobre Zen Budismo, Suzuki).
[11]Aldo Tollini. Pratica e illuminazione nello Shôbôgenzô, p. 66 (Zazenshin).
[12]Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1990, p. 220 (Alberto Caeiro - Ficções do interlúdio).
[13]Toshihiko Izutsu. Hacia una filosofía del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 17.
[14]Fernando Pessoa. Obra poética, p. 217-218.
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