sábado, 2 de abril de 2022

No emaranhado das teias da vida

 No emaranhado das teias da vida

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

Estudando aqui os livros de Tich Nhat Han, para um curso que estou dando na Vozes, deparo-me com questões que estão em profunda sintonia com os estudos que venho fazendo, como, por exemplo, os desenvolvidos por Emanuelle Coccia[1]

 

A ideia de que nascimento e morte estão sempre relacionadas a movimento. Coccia sublinha que "nascer significa esquecer o que já fomos antes"[2]. Nascer não é novidade, mas apenas o "acrescentar um elo na corrente de transformação da vida". As espécies existentes não são senão “metamorfose de todas aquelas que vieram antes”[3]. A metamorfose é, fundamentalmente, “essa potência de todo ser vivo de chocar em seu seio a capacidade de fazer variar a vida que o anima”[4]. Os seres vivos, em sua singularidade, expressam "a vida do planeta inteiro, passado, presente e futuro"[5]. Cada nascimento, diz Coccia, é a "penetração em um corpo estranho"[6]

 

Levando a sério o que o papa Francisco diz na Laudato si, de que todos somos terra e que nosso corpo "é constituído pelos elementos do planeta"[7], somos provocados a superar o mundo das superfícies e compreender que nós mesmos não somos diferentes de tudo aquilo que nos rodeia. Estamos num emaranhado de laços que configuram uma irmandade cósmica, ou um inter-ser, como gosta de dizer Tich Nhatr Hanh[8]. A “textura do mundo” é modelada pelo “emaranhamento de trilhas entrelaçadas”[9]. Qualquer ideia de superioridade não passa de uma ilusão, o que não significa negar o valor das singularidades. Não estamos à parte, mas somos parte do todo.

 

Assim como o nascimento não é o começo, a morte não é também o fim. O "cadáver" não está isolado dos outros seres vivos. Ele também entra, de outra forma, na ciranda da vida[10]. A ressurreição pode ser vista como um "distorção" dessa compreensão mais ampla, quando deslocada desta perspectiva de inter-relação. 

 

Como mostra Coccia, no cadáver também brilha a vida, sob outra forma. Ele diz: "Afirmar que não há nada depois da morte, que a vida que anima um corpo termina com a transformação deste último, significa pronunciar um ato de fé que pretende reinscrever a subjetividade do ser vivo na imagem que nós nos fazemos do corpo humano"[11]

 

Ainda seguindo a reflexão de Coccia: "É fácil imaginar a continuidade material do universo: não temos problema nenhum em admitir que a nossa carne vem de outro lugar, que habita este planeta há muito mais tempo do que nosso nascimento. Todos os nossos átomos deram um corpo a milhares de vida antes das nossas - humanas, vegetais, bacterianas, virais, animais - e darão realidade a outras numa dança que nunca poderá ser interrompida".

 

Por isso Gilberto Gil contestou Caetano Veloso, quando na oração ao tempo disse que nós sairemos do "círculo do tempo", e que "não serei nem terá sido". Para Gil, diversamente, o que vai ocorrer é uma "transformação": a transformação das "velhas formas do viver". Ainda melhor: "Tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos"[12].

 

O mestre zen Tich Nhat Han trabalhou o tema num livro maravilhoso: Sem morrer, sem temer[13]. Com base na tradição budista, sublinha que a natureza da pessoa é, de fato, "uma natureza sem nascimento e sem morte"[14]. Se você perde uma pessoa amada, diz o suave monge, basta caminhar em meditação, e olhar em profundidade para poder identificar a pessoa em "todas as folhas, pássaros e gotas de orvalho"[15]. Os nossos amados permanecem sempre conosco. Em verdade, nunca há realmente morte, mas continuação[16].

 

Para Thay, todos os fenômenos, "inclusive nós mesmos, são compostos. Somos constituídos de outras partes. Somos constituídos de nossos pais e mães, avôs e avós, do nosso corpo, sentimentos, percepções, formações mentais, da terra, do sol e de inúmeros elementos que não são nós mesmos". Em verdade, "tudo o que já existiu, existe ou existirá é interconectado e interdependente"[17].

 



[1]Emanuelle Coccia. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes, 2020.

[2]Ibidem, p. 24.

[3]Ibidem, p. 15.

[4]Ibidem, p. 80.

[5]Ibidem, p. 31.

[6]Ibidem, p. 32.

[7]Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 2.

[8]Tich Nhat Hanh. Caminhos para a paz interior. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2021, p. 91-95.

[9]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 120-121.

[10]Emanuelle Coccia. Metamorfoses, p. 124.

[11]Ibidem, p. 124.

[12]Carlos Rennó. Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 344-345.

[13]Tich Nhat Hanh. Sem morrer, sem temer. Sabedoria confortante para a vida. Petrópolis: Vozes, 2020.

[14]Ibidem, p. 17.

[15]Ibidem, p. 17.

[16]Ibidem, p. 34.

[17]Ibidem, p. 23.

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