Vida e metamorfoses
Faustino Teixeira
Incrível as repercussões concretas que reflexões como a de Emanuelle Coccia trazem para a nossa cosmovisão. No meu caso particular, o contato com seus livros e a reflexão sobre suas entrevistas promoveram um turbilhão interior sem precedentes.
No Brasil saíram publicados três livros seus: Metamorfoses (2020, com segunda tiragem em 2021 – Dantes Editora), A vida sensível (2018 – Cultura e Barbárie Editora), A vida das plantas (2018 – Cultura e Barbárie).
Tudo está ligado à revolução animal e vegetal que está no circuito das reflexões atuais.
Vendo agora a recente entrevista de Emmanuela Coccia, concedida por ocasião do lançamento no Brasil de seu livro Metamorfoses, disponível no Youtube[1], constato que o autor conseguiu resumir com muita felicidade as grandes teses apresentadas em seu livro.
Ele indica já no início do livro que todos partilhamos a mesma vida, ainda que com diversificadas maneiras de existir. Cada ser vivo “não começa com seu próprio nascimento” pois a vida é bem mais antiga[2]. E o nosso sopro, complementa o autor, “não vai esgotar-se em nosso cadáver: vai alimentar todos aqueles que encontrarem nele uma ceia para celebrar”[3].
A nossa vida é em verdade um “prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior”. O nascimento é um acréscimo, um “elo na corrente da transformação da vida”, e o nosso umbigo “marca nossa ligação com a Terra e com todos os seres vivos, e não apenas com o corpo de nossa mãe”[4]. Em cada ser vivo está presente “a vida do planeta inteiro”. Como indica Coccia, “nós carregamos em nós mesmos, nossos pais, nossos avós, os pais deles, os macacos pré-humanos, os peixes, as bactérias, até os mínimos átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio, azoto etc”[5].
Assim como a vida não é o ponto de partida, também a morte não é o ponto terminal, mas o “limiar de uma metamorfose”[6]. Não há nada de novo no que habita em nós. O autor leva a sério a teoria evolucionista de Darwin e dá a ela um colorido especial com as repercussões filosóficas implicadas. Para o autor, “a metamorfose é, acima de tudo, essa potência de todo ser vivo de chocar em seu seio a capacidade de fazer variar a vida que o anima”[7].
Interessante na entrevista a reflexão sobre identidade. Segundo Coccia, nossa identidade não é senão um mosaico, um patchwork, uma mistura de identidades anteriores. Trata-se de uma identidade efêmera, carregando em si identidades distintas.
Como ele sublinha, “há uma continuidade absoluta entre todos os indivíduos que pertencem à mesma espécie, e a prova disso é aquela metamorfose que cada um de nós atravessa com o nascimento. Nascer significa se apropriar de um corpo. Na verdade, de corpos que já viveram”[8].
Na visão do autor, “cada um de nós é uma enorme reciclagem genética e também anatômica. O nosso corpo já viveu e ele é muito mais antigo que nossa mesma idade. Nossa carne tem nó mínimo tantos anos quanto tinha a nossa mãe quando fomos concebidos, mas como nossa mãe, por sua vez, era a carne de um corpo que já vivera antes...” .
Tocou-me também em particular a sua reflexão sobre a fragilidade da ideia de excepcionalidade humana. Com base no que ocorreu com a presença do coronavirus, Coccia fala que a ideia de supremacia humana é bem problemática.
Pudemos verificar a força de uma criatura minúscula, que se mostrou capaz de ameaçar a vida da espécie. A experiência pela qual estamos passando comprovou, em verdade, que mesmo a potência destruidora não está exclusivamente ligada ao homem humano, mas uma “potencia distribuída de forma extremamente generosa na natureza, e acima de tudo, independente das qualidades anatômicas e cerebrais. Não é preciso ser grande e forte, ter um cérebro, para gerar efeitos incríveis no planeta. E essa é a chave da vida”.
Esses estudos recentes sobre as plantas e a virada vegetal, mostram-se fundamentais para quebrar não só a ideia da excepcionalidade humana, mas também para indicar a fantástica interconexão de tudo com todos.
[1]https://www.youtube.com/watch?v=NlHwW7DvAk8(acesso em 13/02/2022)
[2]Emanuelle Coccia. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes, 2022, p. 13.
[3]Ibidem, p. 14.
[4]Ibidem, p. 30.
[5]Ibidem, p. 53.
[6]Ibidem, p. 111.
[7]Ibidem, p. 80.
[8]https://www.youtube.com/watch?v=NlHwW7DvAk8(acesso em 13/02/2022). As citações seguintes referem-se a tal entrevista.
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