domingo, 30 de dezembro de 2018

Paletó e eu: relatando uma leitura

Paletó e eu: relatando uma leitura

Faustino Teixeira


livro de Aparecida Vilaça. Paletó e eu. Memórias de meu pai indígena. São Paulo: Todavia, 2018

Dediquei-me de corpo e alma nesses dias a ler o excelente livro da antropóloga Aparecida Vilaça, Paletó e eu– Memórias de meu pai indígena (São Paulo: Todavia, 2018), que será lançado amanhã – 16/10/2018 – no Rio de Janeiro. Mas claro que estarei presente no lançamento.

            O livro conta a linda história de uma relação de mais de três décadas. Vejo neste livro uma das mais lindas experiências etnográficas que pude ler ao longo da vida, e falando de algo que está tão próximo de nós. Um exemplo de antropologia, dedicada sobretudo ao aprendizado e respeito do outro. Foram longas idas e vindas às aldeias dos Wari`, no rio Negro, algumas com seus filhos ainda pequenos. 

O líder Paletó

 E assim tomou contato com o grande líder daquele povo, Paletó (Watakao´), com o qual estabeleceu uma relação única de filiação. E ela o trouxe ao Rio de Janeiro, em sua casa, algumas vezes, encantando-o com os passeios à praia, ao Pão de Açúcar, ao zoológico e também a um concerto de música clássica. Tudo descrito de forma encantadora. Fala também na parte mais dura do livro sobre a triste história do massacre sofrido pela família do Paletó, pelos brancos, onde perdeu parentes queridos, entre os quais seu pai e sua filha. E porque ela escreveu esse livro? Escreveu depois de saber da morte de seu pai indígena, no interior de Rondônia, com mais de 85 anos. 

Diz ela logo no início do livro: “Ele morreu no interior de Rondônia e eu continuei aqui, tentando imaginar seu corpo, os fios de barba brancos soltos no queixo, os braços forte. Lembro de cada um desses detalhes com muita nitidez e não consigo imaginar nenhuma dessas partes sem vida. Elas se mexem, brilham, falam comigo”. Ela não viajou para Rondônia, nem dava tempo, mas viajou nas suas memórias, nas histórias contadas por seu pai indígena, e resgatas as histórias narradas por ele e os passos da relação que se teceu, sempre com muito carinho e generosidade.

 Ela também diz, ali no início, que ele, Paletó foi “um adulto que guardou o que há de melhor de sua criança, mesmo tendo visto tanta coisa triste, inclusive vários de seus parentes próximos serem alvejados e mortos por seringueiros, sessenta anos atrás”. Diz ainda que perguntou uma vez a ele se tinha ódios dos brancos, e sua resposta veio certeira: “me respondeu que eu e meus parentes não tínhamos nada a ver com isso, pois vivíamos muito longe”. E ela respondeu, com aquele afeto singular: “Sou-lhe grata por esse perdão”. 

E porque o nome Paletó? Por que certa vez ele se encantou com um presente recebido, um paletó, “e o adotou sobre o seu corpo nu”. Um livro que aconselho muito a todos, sobretudo neste momento que vivemos no Brasil, para que possamos entender ao menos um pouco sobre a beleza, a riqueza, o patrimônio único desses nossos povos originários, e o risco que corremos se não fizermos uma escolha adequada nesse segundo turno. Viva Paletó, Viva a professora Aparecida, nesse seu dia.

Os passos da reflexão

Logo na entrada de seu livro sobre Paletó, seu pai indígena, Aparecida Vilaça cita uma bela passagem de Patti Smith: "Eu senti que escrever é quase como fazer essas pessoas vivas novamente. Você as traz de volta de um jeito que outras pessoas podem conhecê-las e compreendê-las enquanto seres humanos". 

O encantador livro fala de muitas coisas: da decisão da antropóloga em dedicar-se ao tema dos Wari`, depois de ter feito um lindo trabalho de mestrado sob a orientação de Eduardo Viveiro de Castro, "Comendo como gente" (Rio de Janeiro: Mauad); do encontro de Aparecida com Paletó; a descrição das casas dos Wari`; das investidas dos brancos contra eles; do processo de identificação com eles; da experiência dos filhos - Francisco e André - na aldeia, do carinho com que foram acolhidos e dos aprendizados ali; das guerras com os brancos e o canibalismo da raiva; do aprendizado com os xamãs, aqueles que têm os "olhos soltos"; das esposas de Paletó; dos primeiros encontro dos Wari` com os brancos; o processo gradual de "pacificação"; o medo dos brancos: "Tínhamos muito medo dos brancos, minha filha! Achávamos que eles iam nos matar a todos"; do modo como os Wari` lidavam com o sexo: "Falar livremente sobre o sexo é uma característica dos Wari`" ; o traço do cuidado com o outro entre os Wari`: "Me dei conta de que o acesso não mediado por palavras à cabeça dos outros era de fato uma deliciosa particularidade dos Wari`"; a relação peculiar com o corpo; os contatos com o catolicismo e a missão protestante americana; as epidemias que foram surgindo, e que tanto mataram, no contato com os brancos; os resultados problemáticos da chegada do trem na região; tudo que esteve relacionado ao processo de catequização dos Wari`; o tornar-se crente na vida de Paletó e o modo cuidadoso como Aparecida lidou com esta questão; as viagens de Paletó ao Rio de Janeiro; a sua linda visão sobre o mar: "Ali é que é água grande. Parece que a água se mistura com as nuvens, não se vê onde deságua, não se vê o fim"; As reações de Paletó ao visitar o Jardim Zoológico no Rio de Janeiro: "Os animais que são gente". E ao final do livro, a grande despedida do pai indígena: "Eu já vou; deixo você ir".
Um lindo livro.

O ritmo da violência

No capítulo 10 de seu livro, Paletó e eu, Aparecida descreve o horror que acompanhou o massacre aos Wari` a partir da descrição de seu pai indígena:

"Paletó e a esposa, carregando os filhos, tentaram correr, mas os brancos acertaram a menina To´o Em, que ficou caída no chão. Ela gritava: ´Pai, pai, o inimigo me acertou!. ´Como era linda a minha filha que o branco matou!`, exclamou Paletó."

"Paletó, com o filho pequeno no colo, continuou a correr, acabou batendo com a cabeça num galho e, desnorteado, pensou ter sido atingido por um tiro. O filho gritava pensando que o pai estava morto. A esposa, ao ver a filha caída, parou de correr e resolveu voltar, rastejando-se pelo chão para tentar evitar as balas, com um braço dobrado sobre o rosto na tentativa de se proteger. Um dos atiradores, ao perceber que a mãe retornava, parou de atirar até que ela se agarrou à filha, para então acertá-la. Atirou na sua vagina, mas ela não morreu naquele momento. Ficou apenas deitada..."

Num outro relato de Aparecida, dito por um homem do subgrupo OroMon:

"Lembra-se de que os branco jogavam as crianças Wari` mortas para o alto, para que caíssem sobre os terçados e fossem cortadas ao meio".

A tênue paz

Tudo "tão longe"... Tudo tão perto...

Aparecida diz em seu livro que "a paz que se supõe dar hoje a tônica da relação dos Wari` com os brancos é muito tênue, pois a tensão aflora em várias ocasiões desse convívio. No comércio da cidade, os Wari` são estigmatizados por sua aparência e por sua dificuldade com a língua portuguesa. Em algumas ocasiões recente, seringueiros entraram à noite em aldeias Wari` situadas nas margens de sua reserva e os ameaçaram com armas, causando tanto pânico que uma das aldeias, Ocaia II, foi abandonada..."

O que vem com o desenvolvimentismo... O exemplo do que acompanhou a ferrovia Madeira-Mamoré. Num trecho do Jornal O Imparcial (sic!) em 01/01/1961:

"É necessário ação e muita ação. Entrevistas chorosas não dão vida nem saúde aos que labutam em nossas matas, à busca de recursos para suas sobrevivências. É preciso protegê-los de fato contra essa horda de assassinos frios que as infestam, protegidos por leis absurdas e que privam regiões como esta de um efetivo desenvolvimento"

Tudo acontecendo ali, nas imediações de Guajará-Mirim

Como assinala Aparecida em seu relato, no livro Paletó e eu: 

"Embora Paletó vivesse muito longe dali e não tenha participado dessas expedições ao trem e aos arredores de Guajará, foi levado a essa cidade para assegurar aos brancos de que agora ´estavam bonzinhos`"

Tudo tão atual...

A questão da religião

Para concluir a minha reação ao livro de Aparecida Vilaça: Paletó e eu - Alguns trechos que abordam a questão da religião:
No capítulo 18 de seu livro, Aparecida Vilaça trata da questão da presença da igreja católica na região. Nos primeiros tempos a coisa era bem complicada:
"Padre Bendoraites visitava Sagarana esporadicamente, deixando os cuidados diários da colônia nas mãos de um jovem rapaz boliviano chamado Antenor, que usava técnicas violentas para atingir os seus objetivos. Ameaçava os índios com arma, construiu uma cadeia com porta e cadeado para trancar aqueles que cometiam infrações, como roubo de galinhas, e amarrava com correntes as mulheres que praticavam aborto..."
Naquele início, não havia ainda, praticamente, catequese, como assinala Aparecida:
"Antenor e o padre não falavam a língua Wari`, mas havia missas, que Paletó descreve assim:
´Davam para nós um pedaço de pamonha (hóstia) que, quando colocávamos na boca, sumia. Tinha também bebida realmente alcoólica (para o padre), acendiam-se muitas lamparinas, ajoelhava-se. Sentávamos e também se cantava em Sagarana. Eu não entendia o nome da música. Só ficava com os olhos fechados. Depois, Amém`"
Bem depois veio a missão do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), com outra perspectiva, nas redondez de Ji-Paraná (Rondônia). Aparecida cita, entre outros, o exemplo do padre Roberto Arruda, que depois se tornou bispo. Esse sim, tinha uma grande admiração pelos Wari`: "Os Wari` se referiam a ele como ´nosso avô`".
Mas, como assinala Aparecida, "muitos equívocos" aconteceram ao longo dos encontros com os Wari`. Os crentes também vieram atuar na região, através da missão norte americana da New Tribes Mission. Nos primórdios da catequese evangélica os índios não entendiam muito o que falava o missionário Royal: que achavam uma conversa "muito estranha".

Como relata Aparecida:

"O que finalmente levou Paletó a se declarar crente foi, segundo ele, o medo do fim do mundo, mais especificamente o medo de ser abandonado pelos seus conterrâneos e parentes, muitos deles crentes desde o fim dos anos 1960, que, por isso, seguiriam para o céu. O que se passaria com os que ficassem na terra, segundo lhe dizia Royal, era digno de um filme de terror: ´Se vocês não acreditarem, vão ficar na terra e a onça vai comê-los. Vai haver todo tipo de espírito de bicho (...). ´Tinhamos muito medo`, disse Paletó. Muito mais que o encanto pelo céu, um lugar meio sem graça, onde todos são iguais, não fazem sexo nem festas, bebem água, comem pão e passam todo tempo a escrever, é o medo do inferno que os move em direção a Deus. Longe do céu iriam queimar para sempre, ficar com a pele cheia de feridas, e sentir muita sede, que não poderia ser saciada".

Paletó chegou a largar Deus, em certo Momento, e retornou à crença crente depois de mais velho, por volta de 2001. Dizia: "Voltei para Deus. Atualmente acredito direito. Sou velho. Velhos não vivem muito".

O que detonou esse retorno foi a visão na televisão comunitária do que ocorreu em 2001, no ataque dos aviões ao World Trade Center. Como relata Aparecida: "Entenderam por meio das exegeses dos pastores, que uma guerra mundial iria acontecer, sinal da proximidade do fim do mundo".

É aqui que se revela a qualidade de antropóloga de Aparecida Vilaça, de seu cuidado em lidar com esta questão:
Ela diz em seu relato:
"Foi então que descobri que ele (Paletó) não queria que eu soubesse que estava frequentando a igreja pois temia a minha reprovação. Ciente do que se passava, comecei a acompanhar esses cultos e conversar muito come os Wari` sobre Deus, que chamavam de ´o verdadeiro invisível`, sobre Jesus, seu filho, e sobre o Espírito Santo, o ´duplo` de Deus". 

Mas Aparecida diz com clareza no livro a sua posição: "Embora seja totalmente contrária ao trabalho de conversão religiosa, sempre fui respeitosa em relação à escolha dos Wari`. Isso não me impedia, entretanto, de explicitar as minhas razões para não ser crente, mesmo causando consternação a Paletó. De todo modo, por mais que explicasse, o fato de eu frequentar a igreja era um claro sinal na direção oposta, ou seja, de que estava sim me tornando crente, especialmente considerando o fato de que as ações são, para ele, muito mais importantes do que as palavras. E eu estava na igreja".

Aparecida relata, entretanto, que os Wari` eram "naturalmente moldados à aceitação da multiplicidade de visão", e "radicalmente não dogmáticos".


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