Um caminho sem retorno: o trauma de Belo Monte
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
No seu belo livro, Estar vivo, o antropólogo Tim Ingold define de forma extraordinária o que entende por atenção. Ele diz: “Estar atento significa estar vivo para o mundo”[1]. É ao longo da vida que vamos tecendo nossas trilhas e delineando o mundo vital. Para isso, o que há de mais fundamental são nossas relações. Elas também compões o ritmo e a alegria da nossa vida. Nesse itinerário de construção identitária, o habitar encontra um lugar decisivo. Para Tim Ingold, habitar é um verbo intransitivo, algo que “concerne à maneira como os habitantes, isolados e em conjunto, produzem as suas próprias vidas”[2]. Na visão desse antropólogo, com base em Heidegger, o habitar é o modo como os seres ganham inserção no mundo. Só na medida em que somos capazes de habitar é que podemos construir. Antes de pensar em qualquer empreendimento de construção é necessário verificar as condições que favoreçam verdadeiramente o habitar.
Não é, infelizmente, o que ocorreu no processo de instalação da hidrelétrica de Belo Monte, construída na bacia do rio Xingú. Ontem à noite, dia 07 de novembro de 2018, assisti com lágrimas nos olhos o esplêndido documentário dirigido por Eliane Brum: Eu + 1[3], de 2017. Foi um empreendimento magnífico, envolvendo um grupo de voluntários da área de psicologia com o único objetivo de escutar os “refugiados de Belo Monte”, ou seja as pessoas que foram desalojadas de suas casas e instaladas na periferia de Altamira, em condições precárias de existência. O projeto ganhou um nome singular, “Clínica de Cuidado”, e só ganhou vida pela ação voluntária da ajuda de 1.305 pessoas que apoiaram sua realização. O documentário, nas palavras de Eliane Brum, “percorre um delicado itinerário pela experiência singular de cada voluntário, faz uma expedição íntima por desejos e percepções durante a atuação no território”. O objetivo do trabalho foi criar um espaço de discussão sobre o que Belo Monte significa, e o que ele provocou nas pessoas ribeirinhas. Um documentário para ser compartilhado e debatido nos mais variados espaços: “na casa, na sala de aula, na associação comunitária, no boteco da esquina”.
O documentário foi dedicado a João Pereira da Silva, tendo nascido a partir de sua voz, de sua dor. Ele talvez seja a expressão mais viva das consequências de Belo Monte. No dia 04 de setembro de 2015 ele convocou sua família e anunciou que iria se matar na ilha queimada, sendo impedido por sua mulher, Raimunda. Ele dizia: “Quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou”. No último dia de agosto de 2015, sua casa tinha sido incendiada pela Norte Energia, uma das empresas responsáveis pelo empreendimento. Quando Raimunda foi buscar seus pertences na casa, o que encontrou foram cinzas. Daí em diante começou o calvário da família, como de outras tantas. Em sua dor ela dizia para o técnico da Norte Energia: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí, moço. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela”. Tudo está devidamente registrado no artigo de Eliane Brum, publicado em 10 de maio de 2016 em coluna do Jornal El País[4].
A hidrelétrica de Belo Monte, nomeada na região como “Belo Golpe”, vem apresentada como a quarta maior hidrelétrica do mundo, com 11.233 megawatts de capacidade instalada. É um “monstro” no meio da região. Como diz Eliane Brum,
“o que o governo costuma esquecer de citar é que, na temporada de seca do Xingu, a produção de energia baixa drasticamente. Assim, na média, Belo Monte vi produzir de fato 4.571 megawatts, o que a coloca como uma das hidrelétricas menos produtivas na relação entre a capacidade instalada e energia firme”[5].
Para os que denunciam o massacre, o Partido dos Trabalhadores consumou na verdade o “rompimento do Estado de Direito”, realizando o que o governo militar não conseguiu durante a ditatura instalada no país. No dia 05 de maio de 2015, data de inauguração de Belo Monte, era o dia em que João da Silva completava 64 anos. Nas palavras de Dilma, era o tempo da chegada do progresso na região:
“Com Belo Monte nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar a disposição das empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola, podem vir aqui, porque não vai faltar energia”[6].
Em outro artigo de Eliane Brum, de 14 de setembro de 2015[7], ela relata a dor da maior liderança popular do Xingu, Antonia Melo, também arrancada de seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte. A história relatada por Eliane Brum é mesmo dramática e revoltante. Delineia como Antonia Melo foi “encurralada” por essa obra brutal. Essa mulher guerreira “estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa da Gaza”[8]. Assim como sua família, outras tantas foram “cuspidas de seus lares pela hidrelétrica” naquele tenebroso setembro de 2015. E dizia Antonia Melo:
“Dinheiro nenhum paga uma casa (...). Aqui é o lugar que eu escolhi para morar, criei meus filhos. A maioria deles nasceu aqui e já estão crescendo aqui. Então, indenização nenhuma paga a casa de uma pessoa. A casa que eu vou comprar com esse dinheiro nunca será a minha casa. Uma casa é como plantar uma árvore. As raízes vão profundamente embaixo da terra, lá embaixo elas se agarram, para que o vento, vendaval, tempestade, e até mesmo uma alagaçãoo, não a derrubem”.
Antonia Melo foi indenizada, outra famílias não, porque suas casas não eram consideradas casas, pois não atendiam ao padrão estabelecido pelo empreendedor como “moradia”. No rosto de Antonia, a dor de um povo... Roubaram parte de seus sonhos mais bonitos. E chora sua mágoa: “Eu não me sinto bem quando eu vou ao rio, vejo o que está acontecendo, as ilhas derrubadas. Não. A minha casa é tudo isso. Era, o rio livre. As ilhas lindas, verdes. Para mim, é tudo ligado. É uma tristeza só”. E continua: “Aqui eu construí, é uma pertença muito grande. As mãos, a cabeça... o pensamento está todo aqui. É a pertença”[9].
Essa liderança da região é conhecida como “a maior árvore do Xingu”, por sua força e por sua raça. Seu sofrimento dava continuidade a tantos outros, como o de sua companheira de luta, Dema, ou mesmo a irmã Dorothy Stang, que tombaram em razão de uma luta em favor da floresta e do rio. Antônia também entrou na lista obscura dos ameaçados de morte em razão dos conflitos de terra na Amazônia. E resistiu, com apoio precioso de amigos como o então bispo de Xingu Dom Erwin Kräutler, também tão ameaçado: por mais de uma década, enquanto era bispo efetivo, tinha que andar com escolta policial.
Em seu artigo, Eliana Brum assinala que a violência ganhou lugar na vida de Antônia, e não podia ser simplesmente simbolizada, pois “virou uma literalidade que perfurou o coração de uma mulher que a tudo havia resistido”. Como diz Eliane, “O desencontro entre Brasis tornou-se trágico no processo de expulsão das famílias de Belo Monte. A empresa concessionária, a Norte Energia, e o governo federal preferem dar a essa ação o nome técnico de remoção”[10]. O que houve, na verdade, foi violência e devastação. Com empenho, força e decisão, Antonia conseguiu resistir. Dizia:
“Cada vez que eu olho o que eles estão fazendo, destruindo as casas, destruindo o rio, destruindo as vidas, mais eu me fortaleço nessa resistência, mais eu crio coragem e forças para dizer ´não` e continuar resistindo. Para mim, Belo Monte não é fato consumado. Eu luto contra esse modelo de destruição e morte de gerar energia, luto contra esse modelo chamado desenvolvimento. Belo Monte é um crime contra a humanidade”[11].
Antônia relata o fatídico dia de encontro com a então ministra de Minas e Energia, ainda no primeiro mandato de Lula, quando testemunhou o gesto decisivo de Dilma Rousself em favor da nova usina. Ela, Antônia, estava no grupos de lideranças que viajou para Brasília negociar com o governo. Assim que expôs suas preocupações, recebeu como resposta o gesto inusitada da então ministra: “Dilma interrompeu-a com um murro na mesa. E um berro: ´Belo Monte vai sair`”. Em seguida, Dilma “levantou-se, deu as costas a todos e foi embora”[12].
E o projeto ganhou corpo e história. Como assinala Brum, “mais de uma década depois, Belo Monte é um monstrengo alienígena esmagando o Xingu com suas patas de concreto, aniquilando milhares de vidas humanas, animais e vegetais”[13]. Em livro emocionante sobre o grito da Amazônia, Dom Erwin Kräutler também destaca em capítulo a longa história de violência que acompanhou o nascimento de Belo Monte[14]. Dizia ao final do capítulo:
“A quem interessa Belo Monte? Ao Brasil? Será que melhorará o teor de vida dos habitantes do Pará, do Xingu, dos cidadãos de Altamira, de Vitória do Xingu, de Souzel, de Anapu, da Transamazônica, do Baixo Xingu? A energia, a quem será destinada? Sabemos todos que mais uma vez beneficiará as multinacionais que vivem às custas do Brasil, com todas as vantagens fiscais e as facilidades energéticas”[15].
E agora estamos vivendo um outro e mais assombroso momento, com a entrada em cena de Jair Bolsonaro. A situação que se anuncia é muito mais dolorosa e desastrosa. Estamos diante de um risco ainda mais aniquilador: da entrega da Amazônia, como expressou também Eliane Brum em outro artigo no Jornal El País[16]. Como mostra Brum,
“esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousself já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo Lula. Figuras como Katia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que até 2016, quando foi afastada por impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas”[17].
O futuro que se anuncia para a Amazônia com Bolsonaro é terrível. Como indica o monitoramento divulgado pelo Instituto Socioambiental, neste ano de 2018, só na Bacia do Xingu foram cortadas 150 milhões de árvores. A floresta amazônica chega ao final deste ano com um desmatamento de 20%, correndo um grave risco de chegar a um ponto irrevogável de inflexão, caso o desmatamento ultrapasse os 25%. As mudanças seriam desastrosas, com efeitos perversos sobre a biodiversidade. E Bolsonaro já prepara as condições para se tornar um agente perverso do antropoceno, com uma atuação que ameaça não apenas ao Brasil, mas a todo o planeta.
[1]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 13.
[2]Ibidem, p. 34
[4]E o título da Coluna: Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/09/opinion/1462804348_582272.html.
[5]Ibidem.
[6]Ibidem.
[7]No artigo: O dia em que a casa foi expulsa da casa: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html.
[8]Ibidem.
[9]Ibidem.
[10]Ibidem.
[11]Ibidem.
[12]Ibidem.
[13]Ibidem.
[14]Erwin Kräutler. Ho udito il grito dell´Amazzonia. Diritti umani e creato. La mia lotta di vescovo. Bologna: EMI, 2015 (com prefácio de Leonardo Boff). O livro tinha saído antes no Brasil: Servo de Cristo Jesus. Dom Erwin Kräutler. Memórias de luta e espera. São Paulo: Paulinas, 2009 (organizado por Paulo Suess).
[16]Em sua coluna regular: “Bolsonaro quer entregar a Amazônia”. El País, 07 de novembro de 2018: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/07/politica/1541597534_734796.html.
[17]Ibidem. Tema também desenvolvido em outro artigo, de 18 de outubro de 2018, “Bolsonaro é uma ameaça ao planeta”: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/17/opinion/1539799897_917536.html.
Nenhum comentário:
Postar um comentário